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A TEOLOGIA NA PRÁTICA DE
JOSÉ COMBLIN
da escuta à escrita
THE THEOLOGY IN
JOSÉ COMBLINS PRACTICE
from listening to writing
Lucy Terezinha Mariotti*
Resumo: A Igreja em saída reivindica discípulos missionários para ser
coerente em meio aos desafios contemporâneos. Encontramos no teólogo
Pe. José Comblin e em sua ação missionária uma metodologia que
conseguiu de forma eloquente a articulação entre teologia e prática. A
partir de uma análise bibliográfica e de testemunhos, o presente texto
busca destacar o seu fazer teológico, considerando três dimensões: do
missionário aberto a encontrar e conviver em novos espaços; atento aos
“sinais dos tempos” que inspiraram práticas ousadas e na permanente
escuta do Espírito que sopra onde quer e preferentemente em meio aos
pobres. Seguindo este itinerário assumimos a hipótese de validar este
como método teológico urgente na igreja em saída, missionária e profética
como tem escrito e testemunhado Papa Francisco.
Palavras-chave: Escuta. Sinais dos tempos. Espírito. Pobres. Metodologia.
Abstract: The Church which goes forth calls for catholic missionary
disciples in order to be coherent amidst contemporary challenges. We can
find in theologian Fr. José Comblin and his missionary action, a
methodology that eloquently achieved an articulation between theology
and practice. Based on a bibliographic analysis and testimonials, this essay
seeks to highlight Fr. Comblin’s theological practice by taking three
dimensions into consideration: the missionary who was willing to find
and live in new spaces; his attentiveness to the “signs of times” that
inspired bold actions; and his permanent listening to the Spirit that blows
where it pleases, preferably among the poor. Following this route, we
assume the hypothesis of validating this as an urgent theological method
in the missionary and prophetic Church that goes forth, as it has been
written and witnessed by Pope Francis.
Keywords: Hearing. Signs of times. Spirit. Poor. Methodology.
v. 39, n. 133, Passo Fundo,
p. 41-49, Jul./Dez./2022,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v39i133.106
* Mestra em Teologia pela PUC-SP,
Especialista em Arquitetura e Arte para
Liturgia pelo Pontifício Instituto Litúrgico -
Ateneu Santo Anselmo, Roma; membro do
Grupo de Pesquisa José Comblin, PUC-SP.
E-mail: lucymariotti@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-2045-7836
Recebido em 19/07/2022
Aprovado em 30/09/2022
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INTRODUÇÃO
O presente artigo pretende encontrar o que embasou a Teologia e a ação missionária
de Comblin por meio de alguns de seus escritos e depoimentos registrados por pessoas que
o conheceram ou com ele conviveram. O padre belga deixou uma vasta obra para ser lida,
degustada e analisada em centenas de entrevistas, 420 artigos e mais de 70 livros, além de
cartas a amigos, ex-alunos, familiares, bispos, sacerdotes e missionários. O seu método do
fazer teológico revela, em poucas amostras de seus escritos, um vestígio de um projeto de
vida que antecede o método e que foi considerado pelos testemunhos. Revisitamos textos
do autor do ano 74, após a experiência do Seminário rural enquanto era assessor de Dom
Hélder Câmara, dos 80 quando retorna do Chile onde esteve exilado e textos dos anos
2000, dentre os seus últimos escritos. Para responder à questão adentramos em três
direções, destacando o teólogo missionário de Jesus Cristo; a sua atenção aos “sinais dos
tempos” e a vida no Espírito. Um minimum fundamental que permeia o seu jeito de ser e de
fazer Teologia, aquilo que o tornou uma voz profética e incômoda, mas reconhecidamente
necessária na Igreja, em especial na América Latina.
1 O TEÓLOGO MISSIONÁRI O
A Igreja pós Concílio Vaticano II, Povo de Deus, Igreja toda missionária, tem em Pe.
José Comblin um de seus mais fervorosos defensores e animadores. Ao falar sobre a
teologia da missão, Comblin
1
argumenta que a teologia parte da prática missionária que
em um dado momento será explicitada, examinada criticamente e sintetizada em conceitos
científicos. O autor entende a missão não como recrutamento de novos membros para a
Igreja, uma atividade de grupos institucionalizados, que parte ou está em função da Igreja,
mas como ação inspirada nos próprios atos de Jesus Cristo. “Jesus dirige-se aos que estão
fora, fala para denunciar, anunciar, provocar, chamar à transformação de vida, libertar do
passado, da sinagoga, do peso dos escribas e das tradições”
2
. Não é, portanto, fazer
proselitismo. Assim também vemos Papa Francisco exortar a sair, a tomar a iniciativa e
chegar até os últimos:
Naquele “ide” de Jesus, estão presentes os cenários e os desafios sempre novos
da missão evangelizadora da Igreja, e hoje todos somos chamados a esta nova
“saída” missionária. Cada cristão e cada comunidade de discernir qual é o
caminho que o Senhor lhe pede, mas todos somos convidados a aceitar esta
chamada: sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as
periferias que precisam da luz do Evangelho (EG 20).
Sair é um verbo que caracterizou a vida de Comblin que era professor na Bélgica,
mas optou por ser missionário no Brasil; chegou em Campinas (SP) em 30 de junho de
1958, onde atuou como professor; mas após três anos e meio mudou-se para o Chile e, em
1965 para Recife (PE), a convite de dom Hélder Câmara, de quem foi assessor. Escolheu o
Nordeste como lugar para viver sua vida de teólogo missionário, onde priorizou a
formação das lideranças da Igreja por acreditar que é delas que depende a sua renovação
em igualmente renovados métodos de evangelização; elaborou subsídios e cursos direcionados
a diferentes públicos com o intuito de que todos pudessem compreender o Evangelho.
Durante as férias, segundo a sua biógrafa Monica Maria Muggler, viajava por toda a
América Latina para conhecer a realidade social, econômica, política, as culturas e seus
1 José COMBLIN, Teologia da missão, p.10-16.
2 José COMBLIN, Teologia da missão, p.2.
MARIOTTI, Lucy Terezinha
A teologia na prática de JoComblin: da escuta à escrita
Revista Teopráxis,
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povos, o que o colocou em contato igualmente com diferentes experiências pastorais.
“Desde o México até o Chile de testemunhar as buscas e os ensaios daquilo que daria
fundamento a uma teologia especificamente latino-americana”
3
.
A disposição de encontrar o diferente, o novo, encontrar pessoas e desafios fazem
parte do cotidiano de Comblin. Ele se inspira e realça a vinda de Jesus ao mundo; um mundo
concreto, feito de pessoas. Cada pessoa é um lugar deste encontro: “Jesus Cristo veio para
dirigir a palavra a Pedro, João, André, e a todos os Pedros, Joões, Antônios ou Severinos da
hisria
4
. Essa vinda ao mundo e o ir ao encontro de homens e mulheres significa penetrar
não no íntimo de cada pessoa, mas chegar às grades das estruturas sócio-econômico-
culturais que se impõem escondendo e oprimindo as pessoas. Assim também, a Igreja é
convocada a fazer essa viagem, a caminhar, a sair para encontrar; a correr o risco de não ser
acolhida ou compreendida. E isso o nosso autor vivenciou. Foi expulso duas vezes: pela
ditadura Pinochet no Chile e governo Médici no Brasil por sua perspicia e lucidez na
análise da realidade nos tempos em que rondava, na Igreja e nos governos antidemocráticos,
o fantasma do comunismo. Também ele foi identificado como uma ameaça; mas, mesmo
exilado, mantinha a comunicão com pessoas e grupos que participavam dos seus projetos
de formão para lideranças e comunidades eclesiais de base.
Em um livro intitulado “O Enviado do Pai”, Comblin mostra a centralidade da
missão no quarto Evangelho. Começa argumentando que o Evangelho de João quer dar
uma resposta à pergunta: quem é Jesus? Mas “Jesus não diz quem ele é: diz donde vem e
aonde vai”
5
. Jesus é aquele que vem, que foi enviado pelo Pai (cf Jo 7,28). É a própria
mensagem do Pai e se identifica com a sua missão; “Ele existe na condição de missionário.
Nele se revela justamente o modo de ser humano que é o ‘ser missionário’”.
6
Jesus não é em
função de si mesmo, mas é enquanto comunicação, mediação que permite o encontro de
Deus com o mundo. Quem conheceu Comblin pode afirmar: “Comblin fez de sua vida e de
sua teologia um desdobramento dessa centralidade da missão”
7
.
Comblin argumenta que a missão não é acidental, mas é a razão de ser da Igreja: “a
norma, o significado e o próprio conteúdo da missão dos cristãos é a própria missão de
Jesus”
8
. Jesus, o enviado do Pai, entra no mundo das pessoas, enfrenta as estruturas que
escravizam, encontra resistências. Assim como ele, a Igreja, comunidade dos seus
discípulos, faz a mesma viagem que ele fez: do Pai para as pessoas, mesmo quando os
caminhos se apresentam estreitos e árduos. Nesse movimento ela sai de seus limites e se
integra numa cultura, o que não é fixar um discurso eclesiástico em comunidades fechadas
em si mesmas. Seguir Jesus Cristo leva a Igreja a uma permanente flexibilidade; livre do
passado, da dependência de culturas, povos ou circunstâncias que possam obstaculizar a
ação no presente. “Já que a hisria da Igreja é essencialmente a história da missão, importa
reconhecer os tempos da missão e a sua história com os seus sinais visíveis”
9
. Somente
assim a Igreja poderá encontrar as palavras certas para traduzir as palavras dadas por Jesus
a quais precisam ser constantemente reformuladas para chegar ao coração das pessoas.
Diante disso podemos dizer que o método de Comblin provém da contemplação e
assimilação do jeito de Jesus falar e agir: “Vendo o que é Jesus, vemos também o que é o
discípulo e o que é a Igreja”
10
. Por isso, mesmo, tem presente que a mensagem do
3 Monica Maria MUGGLER, Padre Jo Comblin: Uma vida guiada pelo Espírito, p.150.
4 José COMBLIN, Teologia da missão, p.21.
5 José COMBLIN, O enviado do Pai, p.9.
6 José COMBLIN, O enviado do Pai, p.11.
7 Paulo SUESS, Missionário migrante – teólogo militante José Comblin: O retorno do enviado do Pai, p.77.
8 José COMBLIN, Teologia da missão, p.22.
9 José COMBLIN, Teologia da missão, p.73.
10 José COMBLIN, O enviado do Pai, p.13.
MARIOTTI, Lucy Terezinha
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Evangelho - conteúdo da missão da Igreja - não cabe em formulações fixas, em discursos
estáveis que possam ser recitados em todos os lugares e tempos. Daí porque encontramos
em seus escritos uma crítica à burocracia eclesiástica. Nosso autor adverte que é necessário
falar de modo que as palavras sejam compreendidas, para tanto é imprescindível compreender
o presente, ouvir as perguntas, perceber os desafios da realidade, enumerar as características
que distinguem o nosso tempo dos tempos anteriores, ler os sinais dos tempos.
2 A LEITURA DOS SINAIS
As pessoas que conheceram Comblin e a leitura de seus escritos testemunham que
ele era uma pessoa que prescrutava a realidade; ela era o chão a partir do qual contemplava
a vida e a Palavra de Deus e de onde nasciam seus textos e seus projetos de formação,
primeiro nas universidades, na formação do clero e, depois na formação dos leigos.
“Quando chegou na América Latina, Comblin se preocupava em elaborar uma teologia
que levasse em conta as bases sociais e a realidade. Ele considerava a atenção às realidades
terrestres como uma preparação a uma teologia da revolução”
11
. Théologie de la volution:
théorie, é o título do seu livro editado na França no ano de 1974. Em outra obra,
retomando a história da Igreja, argumenta que a teologia se tornou estéril quando se
esqueceu dos pobres, constituindo-se um mundo à parte, com discussões apologéticas e
inúteis. No entanto, o Evangelho é claro, Jesus privilegia os pobres; aos pequenos se revela
(cf. Mt 11,25), porque eles estão abertos a receber a verdade e o esquecimento dos pobres
constitui a ruína da Teologia
12
. Se o critério de toda a evangelização, de toda a ação da
Igreja é a libertação dos pobres, o mesmo vale para a teologia. A verdade liberta: “Se
permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos e conhecereis a
verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8,31-32).
O problema, segundo Comblin, está ligado ao fato de que a teologia ainda inspirada
na filosofia grega, segue um esquema medieval ao pretender conectar fórmulas racionais à
verdade. “A teologia grega exalta o valor dos conceitos dos quais se afirma que descrevem a
realidade. Na realidade, os conceitos somente descrevem ou representam algumas porções
de realidade”
13
. No entanto, Jesus se apresenta aos seus discípulos como “o Caminho, a
Verdade e a Vida” (Jo 14,6); a Verdade que se revelava no amor. A verdade não está no
âmbito das ideias ou conceitos, mas significa o que existe e vida, é real. Portanto, seguir
a Jesus é viver na verdade, na coragem da verdade, como Ele viveu. É preciso ter presente
que o embate entre ele e os que o condenaram se inscreve no enfrentamento entre verdade
e mentira. Jesus denuncia a mentira e as autoridades de Israel não acreditaram nele
exatamente porque ele falava a verdade (cf. Jo 8,44-45)
14
.
Neste sentido concordamos com Edelcio Ottaviani que demonstra a aproximação de
Comblin, embora por outras premissas, às pesquisas do filósofo francês Michel Foucault
15
.
O dizer verdadeiro, a fala franca é o que Foucault chama de parresía
16
. O sujeito livre se
apresenta aos olhos dos outros e a si próprio, pronunciando um discurso verdadeiro; assim
se manifesta e assim é reconhecido. A verdade não é retórica porque respaldada pela
existência bela que é articulação ou coerência entre as convicções mais profundas e as
11 Monica Maria MUGGLER, Padre José Comblin: Uma vida guiada pelo Espírito, p.71.
12 José COMBLIN, O que é a verdade? p.53-54.
13 José COMBLIN, O que é a verdade? p.5.
14 Lucy Terezinha MARIOTTI, Ele se vestiu de pastor, mas o revestiram de imperador, p.119-122.
15 Edelcio OTTAVIANI, Busca da verdade versus ideologia no Acontecimento José Comblin, p.71-74.
16 Parressía - do grego - coragem da verdade. Tema desenvolvido por Foucault, em suas aulas, no ano acadêmico 1983-
1984 no Collège de France.
MARIOTTI, Lucy Terezinha
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atitudes
17
Parressía é a coragem da verdade, de assumir os riscos pelo dizer de forma franca
e de aceitar a verdade por parte do interlocutor
18
.
Comblin, um dos expoentes da Teologia da Libertação, pautou sua vida na Palavra
da Verdade, a Verdade que liberta e “considerava a vida cristã do povo de Deus, das
comunidades populares e suas lutas de vida e morte, como o lugar primeiro de toda
teologia cristã e teologia de libertação”
19
. Constatou que a Igreja estava quase ausente do
meio popular e que havia um discurso do pobre, porém vazio. Acreditou que as
comunidades devem ser formadas, conforme o estilo de vida e da cultura, com a
sensibilidade própria dos pobres; comunidades nas quais eles se sentem “em casa”
20
.
Vivendo no meio dos pobres, ouvindo suas perguntas, Comblin vai lendo os sinais, os
“sinais dos tempos” e a partir disso, empreendeu suas ações e na ótica do pobre escreveu
suas reflexões em formato de cursos e livros.
Sinal dos tempos é um conceito encontrado em um único texto, no Evangelho de
Mateus 16,3 e utilizado por João XXIII e pelo Concílio Vaticano II
21
. Em um de seus
artigos com o título “Sinais dos tempos”, o Padre Comblin demonstra as variações do
conceito e a atualidade da sua interpretação: o primeiro sentido, presente nos discursos
daquele Papa, aparece como advertência, atenção; o sinal indica uma realidade o
percebida, mas que exige resposta, o que implica em mudanças na Igreja “que poderiam
estar relacionadas com as mudanças do mundo”
22
. O concílio entendeu que era necessário
conviver com a modernidade.
A análise de Comblin destaca que João XXIII encontrou nos sinais indicações de
novos rumos. “Todas as empresas, todas as instituições devem prestar atenção aos sinais de
mudança que as obrigam a mudar os seus programas”
23
. E retém este como o segundo
sentido, pois o papa convocou a Igreja a olhar para o mundo com otimismo, valorizando o
que existe de positivo na sociedade moderna. Seja por motivação evangélica ou por
instinto de sobrevivência, a Igreja aceitou a modernidade como um sinal dos tempos.
Comblin, neste contexto, observa que existe uma antiga e atual luta a superar entre o
Espírito e a lei. Alguns pensam que para defender a Igreja é preciso condenar e aumentar o
legalismo como muralhas de resistência, mas “João XXIII estava muito consciente do
problema, apesar de o ser teólogo. Estava mais perto do povo e podia entender qual era
o eixo do problema”
24
.
Mas Comblin é propenso em concluir que o Papa aludia ao texto de Mateus, isto é,
“que estamos nos tempos do advento do reino de Deus, reino de misericórdia e apelo
universal [...] tempo para anunciar os sinais do reino de Deus”
25
. O contexto, continua o
nosso autor, é de conflito entre Jesus e as autoridades que não sabem reconhecer os sinais
dos tempos, os tempos messiânicos. Fariseus e saduceus esperavam um Messias de acordo
com um molde por eles desenhado. Jesus anuncia o Reino de Deus no qual o espaço
para templo, lei e um sistema religioso fechado, baseado em privilégios. Entendem a
mensagem de Jesus, mas resistem em reconhecer os sinais. João XXIII anunciou novos
tempos; o final de uma época e o início de outra.
17 M. FOUCAULT, A coragem da Verdade – O governo de si e dos outros II, p.3-4.
18 M. FOUCAULT, A coragem da Verdade – O governo de si e dos outros II, p.13.
19 Luiz Carlos SUSIN, José Comblin, um mestre da libertação, p.128.
20 José COMBLIN, O que é a verdade? p.57.
21 O tema foi igualmente desenvolvido por Clodovis Bo em “Sinais dos Temposprincípios e leituras. São Paulo:
Loyola, 1979.
22 José COMBLIN, Os sinais dos tempos, p.102.
23 José COMBLIN, Os sinais dos tempos, p.105.
24 José COMBLIN, Os sinais dos tempos, p.178.
25 José COMBLIN, Os sinais dos tempos, p.107.
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A análise de Comblin
26
aponta que no Concílio de modo geral e, em particular na
Gaudium et Spes, os pobres não são reconhecidos como o são nos Evangelhos e em todo o
Novo Testamento. Em seu lugar, estava a preocupação pela modernidade e predominou
uma visão otimista e ideológica do mundo, confirmando o sistema estabelecido com
exortações e, por esse motivo, é preciso esclarecer o que significa a “luz da fé”. Não
significa aceitar pontuais verdades bíblicas, mas reconhecer o advento do Reino, “a marcha
do povo de Deus nos nossos tempos”
27
. Porque o Reino é movimento de libertação de
todas as forças opressoras humanas e institucionais que submetem as pessoas por meio de
mentiras, violência, engano. Jesus lutou durante toda a sua vida para libertar o povo da
violência, da injustiça, da mentira. Ele não enfrenta um pecado misterioso escondido nas
consciências individuais; mas luta contra a mais significativa das opressões que é a
dominação religiosa; disfarçada e escondida é a mais perigosa de todas porque invoca a
autoridade de Deus:
A luz da mostra a presença atual da mesma luta de Jesus em cada momento da
história. Ela não mostra simplesmente situações. Ela mostra a marcha do reino de
Deus frente a inimigos tão fortes. Os sinais são as lutas dos pobres, excluídos,
dominados. Pois ali está Deus. Ali está Jesus e se trata de descobrir ou reconhecer
essa presença no nosso mundo. As forças dominantes negam a dominação,
escondem a realidade, fazem discursos bonitos para justificar e consolidar a sua
dominação. Jesus vem tirar essas scaras e manifestar a verdade do mundo
28
.
A luz da é capaz de mostrar o que os meios de comunicação, os discursos
dominantes e até a ciência escondem ou negam, assim afirmou o nosso autor. Os sinais dos
tempos mostram o que está acontecendo e que es intencionalmente oculto, o que os
privilegiados negam, mas que é visível para as vítimas. A luz da revela o que as pessoas
querem esconder e não o que ignoram, porque o contrário de luz são as trevas e não o
ignorar. A luz da fé “não a conhecer todos os mecanismos de funcionamento da sociedade,
mas as motivões secretas que as estruturas querem esconder
29
. Os sinais dos tempos
mostram onde estão os oprimidos e o que realmente importava para Jesus e, hoje, para seus
discípulos: a libertação dos oprimidos. E é este o lugar, a partir do qual Comblin faz a leitura
da realidade e do Evangelho. Neste sentido também afirma Papa Francisco que o anúncio do
Evangelho e o testemunho cristão indubitavelmente passam pela transformão social em
favor dos mais vulneveis (cf. EG 180).
Pe. José Comblin
30
entende que os tempos m seus sinais e que nem todos percebem,
porque para estes a história é apenas continuação do passado. Os sinais dos tempos não são
oportunidades de expansão ou crescimento quantitativo da Igreja, nem revelam em que a ela
deve se adaptar. Sinais dos tempos da missão da Igreja o os passos dados ao encontro dos
outros. “Esses passos o os lugares da manifestação de Jesus Cristo na luz do Espírito
31
; é no
outro que o discípulo missionário encontra o Cristo que pensava conhecer. Os sinais o
oportunidades para que a Igreja possanascer de novo, como Jesus propusera a Nicodemos (cf.
Jo 3,7). As manifestações exteriores desta vocação são sinais dos tempos; é quando o Espírito
convoca a Igreja a sair de si e enfrentar novos desafios, a viver tempos novos da manifestação
de Jesus Cristo. Atento aos movimentos do Espírito, Comblin foi um teólogo missionário
sensível aos sinais dos tempos e em sua prática pedagico-pastoral ousou respostas corajosas.
26 José COMBLIN, Os sinais dos tempos, p.112-114.
27 José COMBLIN, Os sinais dos tempos, p.112.
28 José COMBLIN, Os sinais dos tempos, p.114.
29 José COMBLIN, Os sinais dos tempos, p.114.
30 José COMBLIN, Teologia da missão, p.72-78.
31 José COMBLIN, Teologia da missão, p.73.
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3 A E SCUTA DO ESPÍRITO
As opções de Comblin deixam transparecer a liberdade de alguém que vive como
Igreja e, por isso mesmo, mostra as tensões, seus pontos nevrálgicos enquanto intui e
aponta alternativas nas quais inclui a si próprio e sua ação enquanto teólogo e missionário.
Para ele, a teologia deve “falar” às pessoas; se o o fizer não é teologia: “a teologia é um
ato reflexo, realizado depois das experiências e a partir delas”
32
. Portanto, a vivência, o que
acontece no cotidiano das pessoas são os dados da teologia. Os resultados da investigação
dos sinais dos tempos serão assim integrados na missão da Igreja – Povo de Deus.
Comblin sempre esteve atento à ocasião propícia (kairós) para colocar em
prática o resultado de suas reflexões teológicas e não se poupou dos riscos que
isso implicava. Desde o início do seu ministério, o vemos atento à voz do
Espírito para não deixar escapar o momento favorável de transformar em
práticas (prágmata) o que suas reflexões teológicas, amparadas pelos maiores
pensadores da época, julgaram ser mais sensato
33
.
A leitura de sua produção intelectual mostra embasamento bíblico teológico, nas
ciências humanas e sociais e mais do que isso, deixa transparecer claramente a
contemplação da ação do Espírito. A teologia do Espírito embasou suas análises críticas
frente à instituição eclesial, às doutrinas, à realidade e à prática cristã. “A vida de José
Comblin, sacerdote e teólogo, é um testemunho contundente da ação do Espírito Santo”
34
.
A teologia do Espírito foi um tema priorizado e discorrido por Comblin em cinco de seus
livros. O primeiro: “O tempo da ação ensaio sobre o Espírito e a história” nos permite
entender de onde provinha a sua aguçada crítica e suas corajosas e inovadoras ações.
O Espírito, escreve Comblin
35
é que está na origem de todas as nossas ações. E são
elas que fazem a história. O próprio Espírito se faz conhecer ou compreender por aquilo
que faz. Deus é ação e é este o conteúdo da mensagem cristã. “Só podemos compreender o
alcance de nossa ação se a referirmos à sua origem: pois nossa ação é uma expressão de
uma ação do próprio Deus [...]. A ação de Deus é aquela que a mensagem do Novo
Testamento põe em relevo: é o Cristo e o Espírito”
36
. E o Cristo hoje, age pelo Espírito que
habita em nós e age em nós. Agir é entendido por Comblin como salvar-se das pressões,
libertar-se das estruturas, recuperar a autonomia. Ação é o que muda o mundo e aquilo
que fazemos para mudarmos a nós mesmos.
Nosso autor, destaca essa ação, dentre tantas de suas obras, também no livro “O
povo de Deus”, enfatizando a quem Jesus privilegiou: os marginalizados como as mulheres,
os pobres, os abandonados, os doentes, aqueles que o sistema religioso e político
desprezavam. Nessa obra ele postula: “O povo de Deus é povo de pobres”
37
. Foi a partir das
conferências de Medellín e Puebla que a Igreja na América Latina “passou a defender mais
nitidamente que os pobres ocupam o primeiro lugar no povo de Deus, que o povo de Deus
se caracteriza pelo pobre e que a Igreja verdadeira é a Igreja dos pobres”
38
. E Comblin fez
parte da construção desta Igreja com rosto latino americano, sendo um dos seus teólogos
assessores. Para ele, a abertura da Igreja, a partir do Concílio Vaticano II, foi um sinal da
presença do Espírito porque ela saiu de si mesma para se juntar à ação dos homens,
32 José COMBLIN, Teologia da missão, p.7.
33 Edélcio OTTAVIANI, José Comblin: um teólogo contemporâneo e parresiasta, p.179-203.
34 Monica Maria MUGGLER, Padre José Comblin: Uma vida guiada pelo Espírito, p.19.
35 José COMBLIN, O tempo da ação: ensaio sobre o Espírito e a História, p.45-72.
36 José COMBLIN, O tempo da ação: ensaio sobre o Espírito e a História, p.46-47.
37 José COMBLIN, O povo de Deus, p.281.
38 José COMBLIN, O povo de Deus, p.238.
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“conexa ao impulso do Deus que age, do Deus que é Espírito [...]. A Igreja não existe a não
ser no Espírito e sob a movimentação do Espírito”
39
.
Essas convicções tornaram-se vida em Comblin; em toda a sua trajetória leu a
história da Igreja e escreveu a partir da ótica dos mais necessitados, conforme o Espírito de
Jesus. Podemos dizer que era essa a base de seu projeto de vida que buscava realizar
coerentemente. Em uma carta escrita em Talca, Chile, em 6 de agosto de 1973”, Comblin
escreveu: “Procurarei viver o que eu mesmo ensino”
40
.
Suas palavras faladas ou escritas, antes foram escutas de palavras ditas pela realidade.
Atento às perguntas, ele sentava-se em círculos de intelectuais, agentes de pastoral, entre
colegas de sacerdócio, religiosos e religiosas, leigos e leigas para trocar ideias, analisar a
realidade, para discernir os sinais que apontariam ações novas; ensinava a contemplar a
ação do Espírito em meio à “verdadeira Igreja, a Igreja dos pobres”
41
. Luiz Carlos Susin
considera Comblin “um mestre da libertação”
42
ao comparar o seu método à maiêutica
socrática, dado que não ouvia perguntas, mas fazia perguntas provocadoras; por meio
da aporia que cria o impasse, o paradoxo, impede a fixação do sentido - instigava a
discernir, inquietava. Susin mostra a similitude do teólogo com pedagogo crítico Paulo
Freire (filósofo e educador brasileiro) e Ivan Illich (filósofo e educador austríaco, crítico do
sistema educacional).
Comblin acreditava no diálogo, na aprendizagem contínua, liberta de traçados
prontos, na busca coletiva, na ação conjunta. Sua sensibilidade percebia as necessidades no
campo e na cidade, na Igreja e na sociedade e suas respostas foram se diversificando em
palavras compreensíveis a todos, tanto nas universidades quanto nas comunidades eclesiais
de base, nos subsídios e cursos simples elaborados com a intenção de que a mensagem do
Evangelho fosse acolhida e vivida sob o sopro do Espírito.
OBSERVAÇÕES CONCLUSIVAS
A nossa abordagem apresentou um fragmento do que foi motivador na prática
teológica de Comblin. Pudemos destacar, e retemos como atual para a Igreja de nossos
dias, que o seu método provinha do próprio Evangelho, por meio do qual reconheceu e
interpretou a realidade com suas demandas, suas possiblidades e limites; da escuta atenta
das perguntas foi desenhando um caminho novo e coerente com o sentir e o agir de Jesus
Cristo. A partir da escuta dos sinais, com os pés firmes na realidade conseguia
compreender a voz do Espírito. O discernimento, feito sempre em grupo, afluía em
iniciativas inéditas como escolas missionárias para leigos e religiosos e a formação,
contextualizada no meio rural, para sacerdotes, tema que não aprofundamos, mas que vale
a pena ser revisitado.
A centralidade da missão em sua vida, o fez formador de missionários. A vida dos pobres
com suas alegrias, tristezas e sua mística esperançosa foi o universo a partir do qual nascia uma
prática que tinha seu desfecho nos artigos e livros; um saber que dialogava com outros
saberes e era partilhado nas assessorias, nas universidades e nas bases, seu ponto de partida.
O teólogo Comblin soube harmonizar erudição e simplicidade; testemunha do
Espírito como força, movimento, sopro de vida e libertação, apostou numa Igreja
missionária, em saída dos esquemas fixos, sem medo de dar voz e de acreditar no
39 José COMBLIN, O tempo da ação: ensaio sobre o Espírito e a História, p.15.
40 José COMBLIN, Apud Monica Maria MUGGLER, Padre José Comblin: Uma vida guiada pelo Espírito, p.111.
41 José COMBLIN, O povo de Deus, p.238.
42 Luiz Carlos SUSIN, José Comblin, um mestre da libertação. In HOOMAERT, Eduardo (org). Novos desaos para o
cristianismo. A contribuição de José Comblin, p.125-138.
MARIOTTI, Lucy Terezinha
A teologia na prática de JoComblin: da escuta à escrita
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 41-49, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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protagonismo dos pobres. Comblin viveu em sintonia com a Igreja pós Vaticano II,
contribuindo para que ela se redescobrisse em seu semblante latino-americano.
O mesmo Espírito continua inspirando discípulos missionários a perceber os
indicadores de novas práticas que falem com a ação, a voz e a escrita uma mensagem
inteligível. O Espírito de Jesus - Verdade que conduz à vida - desafia a Igreja hoje, em
tempos de fake news, a gritar a verdade que liberta, que traz vida, que responda às
perguntas feitas nas realidades mais gritantes, em todas as periferias: os lugares
privilegiados de escuta.
REFERÊNCIAS BIBLI OGRÁFICAS
COMBLIN, José. A vida em busca da liberdade. São Paulo: Paulus, 2007.
COMBLIN, José. O enviado do Pai. Petrópolis: Vozes, 1974.
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Monteiro. Petrópolis: Vozes, 1982.
COMBLIN, José. Teologia da missão. 2.ed. Petrópolis: Vozes,1983.
COMBLIN, José. O que é a verdade? São Paulo: Paulus, 2005.
COMBLIN, José. Os sinais dos tempos. Revista Concilium – Revista Internacional de Teologia 312, 4,
2005, p.101[525]-114 [538].
COMBLIN, José. O povo de Deus. 3.ed. São Paulo: Paulus, 2011.
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São Paulo: Martins Fontes, 2011.
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atual. São Paulo: Paulus, Loyola, 2013.
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poder e resistência a partir da arte cristã na Antiguidade tardia. Dissertação de mestrado. PUC-SP,
2021. Disponível em: https://tede.pucsp.br/handle/handle/23592.
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Campo: Nhanduti Editora, 2013.
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Religião, v.29, n.1, jan-jun 2015, p.179-203.
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Cultura Teológica. São Paulo. Ano XXVII. Nº Especial I Jornada José Comblin. Out/Nov 2019.
Disponível em: https://revistas.pucsp.br/culturateo/article/view/45265. Acesso em 11-11-2020.
SUESS, Paulo. Missionário migranteteólogo militante Jo Comblin: O retorno do enviado do Pai.
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