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FRATERNIDADE E EDUCAÇÃO
A Campanha da Fraternidade numa
abordagem freiriana do método Ver-Julgar-Agir
FRATERNITY AND EDUCATION
The Fraternity Campaign in a Freirean
Approach to the See-Judge-Act Method
Rogério L. Zanini*
Humberto Maiztegui Gonçalves**
Resumo: O presente texto, tomando por substrato o método Ver-Julgar-
Agir, busca analisar como esta metodologia continua desafiando e
contribuindo como chave para uma leitura crítica dos contextos,
especialmente no desafio de suplantar o senso comum, e com isso,
contribuir para a superação de leituras limitadas e alienantes. Partindo dos
referenciais teórico-bibliográficos, elegemos aspectos do método Ver-Julgar-
Agir julgando sua implicância, tendo em vista um processo educativo
crítico e uma evangelização que tenha como alicerce a prática de Jesus.
Como conclusão se afirma que o método Ver-Julgar-Agir, depois de ter
passado por crises e aplausos no percurso da história da Igreja, ganha com o
pontificado do Papa Francisco uma atualização na Tradição da Igreja.
Palavra-chave: Método. Educação. Paulo Freire. Transformação.
Abstract: The present text, taking as substrate the See-Judge-Act Method,
aims to analyze how this methodology continues to challenge and
contribute as a key to a critical reading of the contexts, especially in the
challenge of overcoming common sense and, with that, contribute to
overcoming limited and alienating readings. Based on theoretical-
bibliographic references, elements of the See-Judge-Act Method were
chosen judging their implication with a view to a critical educational
process and an evangelization that has as a foundation the practice of Jesus.
In conclusion, it is stated that the See-Judge-Act Method, after having gone
through crises and applause in the course of Church history, with the
Pontificate of Pope Francis, gets an update on Church Tradition.
Keywords: Method. Education. Paulo Freire. Transformation.
v. 39, n. 133, Passo Fundo,
p. 10-18, Jul./Dez./2022,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v39i133.107
* Padre da Diocese de Chapecó/SC. Doutor e
Mestre em Teologia pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
PUCRS. Especialista em Metodologia Pastoral
pela Universidade Regional Integrada do Alto
Uruguai e das Missões - URI. Graduado em
Teologia pelo Instituto de Teologia e Pastoral
(Itepa) e em História pela Universidade do
Oeste de Santa Catarina - UNOESC. Professor
da Faculdade de Teologia e Ciências Humanas
de Passo Fundo.
E-mail: zaninipastoral@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0001-8771-3799
** Possui graduação no Instituto Superior de
Educação sica de Uruguai (1986), graduação
em Teologia - Seminário Teológico da Igreja
Episcopal Anglicana do Brasil (1990),
mestrado em Teologia (2001) e doutorado em
Área de Concentração Bíblia (AT) pelas
Faculdades EST (2005). Atua como professor
na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade
Franciscana em Exegese e Hermenêutica,
Antigo e Novo Testamentos, Questões de
Gênero, Interpretação Bíblica decolonial.
E-mail: humbertox@uol.com.br
https://orcid.org/0000-0003-4720-8282
Recebido em 19/07/2022
Aprovado em 17/10/2022
11
INTRODUÇÃO
Embora não faça referência diretamente, ao método Ver-Julgar-Agir na proposta da
Campanha da Fraternidade de 2022
1
, o Secrerio Executivo das Campanhas da Fraternidade,
Pe. Patriky Samuel Batista, ao apresentar a proposta para a 58ª Assembleia Geral da CNBB,
afirmou que o percurso da Campanha acontece dentro do método do ver na perspectiva de
escutar; o agir segue no caminho do propor; e o julgar volta o olhar para o discernimento.
2
Neste artigo não se tem a pretensão de avaliar as vantagens, ou retrocessos na
variação proposta para este método na Campanha da Fraternidade. O objetivo principal é
abordar esta temática tendo por norte o referido método, quando aplicado na educação, a
partir de Paulo Freire, e deixar para quem adentrar na leitura e reflexão deste artigo fazer
o discernimento de até que ponto a presente proposta proporcionou que se ampliassem ou
se alargassem as possibilidades de análises, aprendizados e práxis. Em decorrência, e sendo
fiéis à proposta, o próprio método de abordagem no presente texto, se fixará no caminho
do Ver-Julgar-Agir.
1 O TODO VER -JULGAR-AGIR E O PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM DE CARDIJN
A FREIRE
Lopes em seu artigo: “O Método Ver-Julgar-Agir: genealogia e sua relação com a
Teologia da Libertação”
3
, explana como surge este método, partindo dos “Escritos da
prisão de Saint-Gilles em 1917”, toma forma na visão profético-vocacional do Padre Joseph
Cardijn, e se consolida como prática eclesial na Mater et Magistra (João XXIII) e no
Vaticano II (Gaudium et Spes) (Paulo VI). Sua escolha e utilização pelos grupos de
Juventudes Operárias Católicas (JOC) nos anos 70 e seguintes, serviu para evidenciar
“realidades concretas e suas dificuldades, passando pela iluminação das mesmas por meio
do Evangelho, para se chegar às ações concretas de transformação”.
4
No mesmo artigo, o
autor ressalta o resgate e a aplicação deste método também dentro do Movimento de
Educação de Base (MEB), impulsionado por Paulo Freire e Miguel Arraes, em 1961 – antes
mesmo da realização do Vaticano II dando lugar ao Movimento de Cultura Popular em
Recife. Neste sentido, Lopes afirma:
Nas alturas da década de 1960, a Ação Católica no Brasil estava consolidada e
tinha reaproximado de um jeito esperançoso a Igreja da Escola (instituição),
fazendo com que a caminhada eclesial levasse em conta de novo o apelo
evangélico de ser pobre entre os pobres. Esta caminhada deu frutos libertadores
tanto na Igreja como na Escola, até meados de 1990
5
.
Assim, o método empregado para a conscientização e ação evangélica no meio
operário e popular se mostra, mesmo antes de sua adoção oficial pelo Magistério da Igreja,
um instrumento capaz de popularizar socializar o processo de ensino aprendizagem
sendo o próprio povo (especialmente os mais pobres e excluídos dos processos educativos
dominantes) alçado a sujeito de transformação social e cultural.
1 Tema: Fraternidade e Educação e o Lema: “Fala com sabedoria, ensina com amor” (cf. Pr 31,26).
2 Campanha da Fraternidade 2022: Fraternidade e Educação. 9 de fevereiro de 2022. Disponível em: https://
cb.org.br/campanha-da-fraternidade-2022-fraternidade-e-educacao/
#:~:text=A%20proposta%20foi%20apresentada%2C%20na,de%20Campanhas%20da%20CNBB%2C%20Pe. Acesso
em 8 de junho de 22. No texto base, número 141 encontra-se na verdade uma referência explicita à tríade, porém,
“reinventando” (como se tem feito na América Latina) os passos do método. “Escutar, discernir e agir. Eis o caminho
que a campanha da Fraternidade nos apresenta este ano”.
3 Antonio de Lisboa Lustosa LOPES e Cassiano A. PERTILE, O Método Ver-Julgar-Agir. Razão e Fé. p.34-43.
4 Antonio de Lisboa Lustosa LOPES e Cassiano A. PERTILE, O Método Ver-Julgar-Agir. Razão e Fé. p.35.
5 Antonio de Lisboa Lustosa LOPES e Cassiano A. PERTILE, O Método Ver-Julgar-Agir. Razão e Fé. p.36.
ZANINI, Rorio L.; GONÇALVES, Humberto Maiztegui
Fraternidade e educão: A Campanha da Fraternidade numa abordagem freiriana do todo Ver-Julgar-Agir
Revista Teopráxis,
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O Movimento de Educação de Base, cuja atuação permanece até hoje, mantém o
método Ver-Julgar-Agir dentro dos seus princípios, demonstrando, por meio desta sua
capacidade de articular, no processo educativo, questões como:
Construção de uma sociedade justa e ética, (...) conscientização e vivência da
cidadania e participação social, (...) participação social e comunitária nas
políticas públicas, (...) educação de jovens e adultos na perspectiva da
metodologia ver, julgar, agir, sintonizada com os princípios filosóficos do
educador Paulo Freire. (...) inclusão de homens e mulheres no mundo do
trabalho e na sociedade da informação
6
.
Em que pese o longo caminho percorrido e o decurso do tempo, as origens e o
desenvolvimento do método Ver-Julgar-Agir, continuam sendo objeto de ampla discussão
e tema de diversos artigos e trabalhos monográficos, inclusive obras dedicadas
exclusivamente a ele
7
.
1.1 VER: as barreiras que impedem uma educação libertadora
Quando se propõe ver, nos termos do método “Ver-Julgar-Agir”, se objetiva ir muito
além da superfície do “senso comum”, isto é, daquilo que está posto, ou dado pelas “coisas-
como-são”. Trata-se de munir-se de um “olhar”, uma “percepção” crítica, para “ver” além
do que as aparências demonstram ou se mostram, caso contrário, as possibilidades
transformadoras permanecerão ocultas atrás dos muros da exclusão. Exemplo típico e
muito atual, trata-se do surgimento das chamadas pessoas “invisíveis” da população
brasileira durante o tempo da pandemia. Por que estas pessoas não eram até aquele
momento lembradas ou visibilizadas no Brasil?
Nesta direção, basta ressaltar a observação que os Bispos do Brasil fizeram
recentemente: o rechaço aos pobres, não contribui para a civilização do amor e fere a
fraternidade universal. Na Mensagem ao Povo Brasileiro na 59ª. Assembleia Geral da CNBB ,
os bispos atentamente profetizam dizendo que o “quadro atual é gravíssimo. O Brasil não
vai bem! A fome e a insegurança alimentar são um escândalo para o País, segundo maior
exportador de alimentos no mundo, castigado pela alta taxa de desemprego e
informalidade”. Na sequência, neste mesmo parágrafo, denunciam que “num sistema voraz
de ‘exploração e degradação’ notam-se a dilapidação dos ecossistemas, o desrespeito com os
direitos dos povos indígenas
8
.
Por isso, quando o “ver” ganha contornos de problematização da realidade, logo se
percebe outras dimensões até então ocultas, ou mesmo ocultadas por diferentes
mecanismos sociais, políticos e mesmo religiosos. Faz perceber a premente importância e
a necessidade do desenvolvimento de uma visão crítica da sociedade e dos seus mecanismos
ideológicos. A visão de Paulo Freire, em “Educação como prática da liberdade”, expressa o
potencial desconstrutor e transformador desta percepção crítica dizendo:
Quanto mais crítico um grupo humano, tanto mais democrático e permeável,
em regra. Tanto mais democrático, quanto mais ligado às condições de sua
circunstância. Tanto menos experiências democráticas que exigem dele o
6 Movimento de educação de base (MEB). Metodologia. Disponível em: https://www.meb.org.br/metodologia/. Acesso
em 8 de junho de 22.
7 Deixamos algumas referências para quem deseja aprofundar esta temática: Jorge Boran. O senso crítico e método ver, julgar,
agir. Editora Loyola, 1977; Alfredo Piso. Ver-Julgar-Agir: ensaio de teologia pastoral. Edições, 1991; Antônio de Lisboa
Lustosa Lopes e Jorge Luis Gomes Bonfim. Ver-Julgar-Agir: a leitura pastoral de Francisco. Editora Saber Criativo, 2022.
8 CNBB, Mensagem ao Povo Brasileiro, 59ª Assembleia Geral da CNBB, “A esperança não decepciona” (Rm 5,5).
Disponível em: https://www.cnbb.org.br/mensagem-povo-brasileiro-fe-esperanca-compromisso-vida-brasil/.
Acesso em 11 de maio de 2022. (Grifo nosso).
ZANINI, Rorio L.; GONÇALVES, Humberto Maiztegui
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conhecimento crítico de sua realidade, pela participação nela, pela sua
intimidade com ela, quanto mais superposto a essa realidade e inclinado a
formas ingênuas de encará-la. As formas ingênuas de percebê-la. A formas
verbosas de representá-la. Quanto menos criticidade em nós, tanto mais
ingenuamente tratamos os problemas e discutem superficialmente os assuntos
9
.
Com esta visão superando as maneiras e visões ingênuas ou do senso comum - é
perceptível o quanto o povo brasileiro precisa avançar nos direitos elementares
conquistados e garantidos pela própria Constituição Brasileira. O sistema educativo
brasileiro nunca conseguiu refletir o que a Constituição de 1988 sonhou ao proclamar em
seu Artigo 205: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação
para o trabalho”.
Ainda mais se, nesta percepção crítica são colocados os princípios da realização desta
meta constitucional, a saber:
I– igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II– liberdade
de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III–
pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições
públicas e privadas de ensino; IV– gratuidade do ensino público em
estabelecimentos oficiais; V– valorização dos profissionais da educação escolar,
garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente
por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas; VI– gestão
democrática do ensino público, na forma da lei; VII– garantia de padrão de
qualidade; VIII– piso salarial profissional nacional para os profissionais da
educação escolar pública, nos termos de lei federal (Art. 205).
Por isso, pode-se perguntar: Houve, desde 1988, avanços importantes e significativos
neste sentido? Quais? Quais barreiras de exclusão começaram a ser derrubadas? Quais os
instrumentos de participação popular, social e profissional foram construídos e
impulsionaram esses avanços? Chegaram a ser aferidos ou percebidos resultados
concretos? Qual foi o alcance desses resultados, a que parcela da população alcançou? E o
que mais podia e deveria ter avançado?
Mas também, e dialeticamente, será necessário questionar se houve retrocessos,
perdas, estagnações, ameaças, restrições e repressões em relação ao que foi previsto e
determinado na Constituição, ainda vigente, de 1988, e o que, a partir dela, foi construído,
alcançado e sofreu avanços. Como identificar essas novas barreiras e empecilhos? De onde
surgem? Quais são as forças antagônicas que não permitem que se consolide uma educação
que é direito de todas as pessoas e dever do Estado? Por que estas forças contrárias ao
acesso universal à educação como um direito se sentem ameaçadas e tentam impedir que
esta realidade se consolide? Qual é a educação que está sendo proposta e colocada em
prática, no lugar daquela desenhada no texto constitucional?
Certamente haverá uma diversidade de percepções, de hipóteses e respostas, mas
também - por ter um ponto de partida comum – interessa promover a convergência para o
encontro das pessoas que realmente almejam juntar e concretizar os conceitos de
“fraternidade” e “educação” e participam, em diversos lugares de atuação social, da
realidade que se vive hoje no Brasil.
Este “ponto de partidado todo, nas palavras de Paulo Freire, faz com que as pessoas:
9 Paulo FREIRE, Educação como prática da liberdade, p.94-95.
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Revista Teopráxis,
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se identifiquem como seres que caminham para frente (...) como seres a quem o
imobilismo ameaça de morte; para quem o olhar para trás não deve ser uma
forma nostálgica de querer voltar, mas um modo de melhor conhecer o que está
sendo, para melhor construir o futuro. Daí que se identifique o movimento
permanente (...) que é histórico e quem tem seu ponto de partida, o seu sujeito
e o seu objetivo
10
.
Desta forma, o ver é o encontro inicial que compromete com a realidade, como
processo histórico, identificando o que une as pessoas como participantes – militantes – de
um processo de construção coletiva e democrática. Em decorrência, esta forma de ver a
partir da realidade dos “marginalizados”, dos “insignificantes ou “invisíveis” como nos
referimos acima possibilita identificar um problema comum. O ver é isso. Não no sentido
de ver todos os problemas, mas aqueles que se apresentam mais evidentes em contextos ou
lugares de fala e de vida (como afirma na exegese bíblica, em nossos “lugares vivenciais”).
Então sim, surge o diálogo que não joga para “soluções”, mas “saídas” ou “êxodos” (do latim
“ex” – para fora - e “hodos” – caminhos).
Neste caminho de êxodo nasce a consciência de que nem sempre existe clareza
quanto ao ponto de chegada. vale aquela frase atribuída ao escritor uruguaio Eduardo
Galeano, sobre o horizonte, que ele atribui a um filósofo argentino anônimo: “Para que
serve a utopia? A utopia é como o horizonte, serve para caminhar”. Portanto, o ver deve
proporcionar duas coisas: o ponto de partida (formulação do problema) e a direção
(hipóteses, sonhos, utopias, horizontes). Assim, desconstrói-se a paralisia e o medo gerado
pela tragédia da violência e da morte e se delineia e reconstrói coletivamente o caminho do
reencontro, o diálogo e a partilha.
Neste sentido é relevante observar que o Papa Francisco tem reiterado a defesa da
“cultura do encontro” (FT 30), porque é precisamente uma cultura do encontro que pode
fornecer a base para um mundo mais unido e reconciliado. Somente esta cultura pode
levar a uma justiça sustentável e à paz para todos, bem como a um autêntico cuidado pela
Casa Comum. Segundo a teóloga Maria Clara Bingemer, a intenção do Papa “é combater a
indiferença que prevalece em todos nós, a superficialidade das relações, buscar um
encontro verdadeiro e profundo com o outro”. A teóloga sintetiza o que deseja Francisco
com a cultura do encontro.
Para que isso ocorra é preciso acreditar no outro; acreditar que ele ou ela tem
algo bom para mim, para me ajudar a crescer, para viver plenamente, para dar a
minha medida como ser humano, como filho de Deus. É preciso estabelecer um
diálogo com homens e mulheres para entender suas expectativas, suas dúvidas,
suas esperanças, e para oferecer o Evangelho que é Jesus Cristo. Deus feito
homem, que morreu e ressuscitou para nos libertar do pecado. Este desafio
exige uma profunda atenção à vida, exige sensibilidade espiritual. Dialogar
significa estar convencido de que o outro tem algo bom para dizer, aceitar seu
ponto de vista, as suas propostas. O diálogo não significa desistir das ideias e
tradições. O Papa deixa claro que a experiência do encontro envolve diferenças
e cresce com elas. No encontro com o outro que é diferente de nós podemos
aprender muito e enriquecer toda a igreja e a sociedade, a partir da experiência
e a perspectiva do outro.
11
Dentro deste universo percebe-se a importância do ver e suas implicações que
incidirão nos passos seguintes do método.
10 Paulo FREIRE, Pedagogia do Oprimido, p.48-49.
11 Maria C. BINGEMER. A cultura do encontro. Revista Dom. Disponível em: https://domtotal.com/artigo/
6709/30/05/a-cultura-do-encontro/. Acesso em 12 de junho de 22.
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1.2 JULGAR: critérios para a construção da educação democrática
A percepção crítica da realidade requer um instrumental que permita a apreensão
desse processo de construção coletiva e democrática. Também exige critérios (do grego
krités, que significa julgar, que pode ser entendido como aquela pessoa habilitada para
julgar). De certa forma, o ver despertou o que Paulo Freire fala de “consciência” e esta nova
relação, ou “intencionalidade transcendental” que para com a realidade exigirá critérios
adequados para fazer desta “consciência”, uma “consciência crítica”.
A intencionalidade transcendental da consciência permite-lhe recuar
indefinidamente seus horizontes e, dentro deles, ultrapassar os momentos e as
situações, que tentam retê-la e enclausurá-la. Liberta pela força de seu impulso
transcendentalizante pode volver reflexivamente sobre tais situações e
momentos, para julgá-los e julgar-se. Por isto é capaz de crítica. A reflexividade
é a raiz da objetivação
12
.
O julgar exigirá do sujeito ou do grupo a ampliação e aprofundamento daquilo que
foi suscitado no ver. Consequentemente, sempre será necessária a contribuição e utilização
das ferramentas técnico-científicas. O científico, neste sentido, não se torna mais
normativo, ou impositivo, mas orgânico, pois está a serviço da consciência, ou da
percepção da realidade daquelas pessoas que são sujeitos dos processos de transformação
de uma determinada realidade opressora ou desumanizadora. Como saber instrumental, o
julgar oferece ferramentas desta análise.
Para Alfredo J. Gonçalves, em seu artigo sobre a Campanha da Fraternidade 2022,
existem três entraves de caráter histórico e estrutural que impedem o Brasil de oferecer os
direitos ao conjunto da população: a desigualdade social, o descaso do atual governo diante
da cultura e o preconceito racista e excludente.
No caso da desigualdade social, o país caminha com um peso de chumbo atado
aos próprios pés. Trata-se da discrepância que, historicamente, vem cavando
um fosso cada vez mais fundo entre a base e o pico da pirâmide
socioeconômica. O círculo vicioso dessa situação desigual revela-se
extremamente perverso e difícil de romper. A condição de pobreza extrema
impossibilita o acesso integral à rede blica de educação. Sem estudo, sem
diploma e sem capacitação profissional, permanece cerrada a porta para o
mercado de trabalho, o que, por sua vez, levanta sérios obstáculos a outros
direitos, como a habitação, a saúde, o transporte, etc. Perpetua-se desse modo a
condição de exclusão social
13
.
Sob o critério do julgar se percebe, diante dos três elementos destacados pelo Alfredo
J. Gonçalves, o quanto as mudanças são necessárias, principalmente na educação pública,
visto que as diferentes realidades educacionais sofrem influência direta das desigualdades
sociais locais e podem até acarretar problemas de alfabetização. Surge a questão: como os
educadores analisam este contexto e como eles influenciam nos processos educativos?
Paulo Freire em muitas de suas obras, mas particularmente no livro “Pedagogia da
Autonomia”, destaca que um dos elementos norteadores da prática educativa da escola é
promover o desenvolvimento global e harmonioso à luz dos valores sociais, despertando e
estimulando o educando para a verdade, a justiça, o respeito e a solidariedade. Esse ideal da
instituição vai ao encontro da formação e das concepções educacionais de Paulo Freire,
que crê na educação autêntica como o caminho necessário para a justiça e a paz. Desta
12 Paulo FREIRE, Pedagogia do Oprimido, p.9.
13 Alfredo J. GONÇALVES, Campanha da Fraternidade 2022. Disponível em: https://crbnacional.org.br/campanha-da-
fraternidade-2022/. Jan. 6. 2022.
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forma, para Freire, a escola deve estar pautada em um modelo de “pedagogia fundada na
ética, no respeito à dignidade, à própria autonomia do educando”.
14
Nas palavras de Freire,
nas diferentes realidades educacionais, a prática docente deve procurar aguçar a
curiosidade dos educandos, principalmente por meio de pesquisas na troca de saberes. No
ensino/aprendizagem por meio das atividades lúdicas, o conteúdo interage com os
objetivos a serem trabalhados no momento oportuno. Na troca de saberes entre o
professor e os educandos, estes constroem e reconstroem seus saberes desenvolvendo sua
autonomia. “Os educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da
reconstrução do saber ensinado, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo”
15
.
Este mesmo problema se revela nos processos de evangelização. Desde a América
Latina e Caribe, a Teologia da Libertação percebeu que ao julgar a realidade com os valores
do Evangelho, precisava superar os abismos entre as classes sociais. Na visita ao Brasil, do
Papa Bento XVI, no ano de 2007, por motivo da Conferência de Aparecida, referendou a
opção pelos pobres e denunciou o crescente distanciamento “entre pobres e ricos e se
produz uma inquietante degradação da dignidade pessoal com a droga, o álcool e as sutis
miragens de felicidade”
16
.
A pergunta feita por Gutiérrez, anos ats (2003), de onde dormio os pobres?” segue ainda
atual e ela deve ser pronunciada insistentemente como denúncia profética, pois a existência de
estruturas de pobreza, o aumento do número de pobres em nossas cidades e entornos, com
rios rostos, como disse o Documento de Aparecida, rostos que doem em nós (DAp 407-430),
exige de nossa parte uma postura crítica pela teologia, uma postura de denúncia à sociedade e às
estruturas religiosas que não se posicionam de maneira firme contra esta realidade.
1.3 AGIR: a que age pelas obras (Tg 2,20)
O agir está intrinsecamente ligado ao conceito de “práxis” em sua forma germinal,
isto é, como “palavra-ação”. Para Paulo Freire, “produzida pela práxis’, palavra cuja
discursividade flui da historicidade palavra viva e dinâmica, não categoria inerte (...).
Palavra que diz e transforma o mundo”.
17
Em termos teológicos, o agir é a encarnação do
julgar, dentro do ver. De certa forma, se fecha o círculo hermenêutico, comprometendo
essas pessoas como sujeitos de um processo de intervenção e transformação da realidade.
A primeira queso, em termos da luta por essa educão”, cujos cririos foram
analisados no julgar, é quais o as pessoas que se apresentam como sujeitos do processo. O
senso comum pode levar a visualizar o rculo “docente-discente, ou, um pouco mais
ampliado, o conjunto das pessoas cujas atividades profissionais são exercidas no meio educativo
(incluindo funcionários e funcionárias das mais diversas áreas) e, ainda mais ampliado, os
núcleos familiares dos e das estudantes. Mas, se olharmos para a proposta freiriana de
desvelamento ela sempre é aberta, destinada não apenas a uma parte do processo de transformação
(seja esta a educação), mas ao processo como um todo a partir desta parte. Segue Freire:
Aqui, propriamente, ninguém desvela o mundo ao outro e, ainda quando um
sujeito inicia o esforço de desvelamento aos outros, é preciso que estes se
tornem sujeitos do ato de desvelar. O desvelamento do mundo e de si mesmas,
na práxis autêntica, possibilita às massas populares a sua adesão
18
.
14 Paulo FREIRE, Pedagogia da autonomia, p.16.
15 Paulo FREIRE, Pedagogia da autonomia, p.26.
16 Sessão inaugural dos trabalhos da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, na sala de
conferência do Santuário de Aparecida – discurso (13 de maio de 2007).
17 Paulo FREIRE, Pedagogia do Oprimido, p.13.
18 Paulo FREIRE, Pedagogia do Oprimido, p.104.
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17
As pessoas vinculadas aos processos educativos o sujeitos de um desvelamento
transformador de todas as massas populares e estas, por sua vez, de toda a sociedade
humana. Portanto, o agir não pode ser centrípeto (de fora para dentro), mas centrífugo (de
dentro para fora), fazendo com que as diferentes práxis de ensino-aprendizagem
convirjam no grande exercício de todos os direitos.
Segundo o teólogo e filósofo Ellacuría, a “apreensão da realidade” precisa desdobrar-
se em três dimensões: levar em “consideração a realidade” (dimensão intelectiva),
“responsabilizar-se pela realidade” (dimensão ética) e “encarregar-se da
realidade” (dimensão práxica)
19
. E Jon Sobrino acrescenta uma quarta: “deixar-se levar pela
realidade” (dimensão da graça)
20
.
Este caminho conduz certamente ao mundo das vítimas, dos samaritanos, da mulher
que ia ser apedrejada, dos “invisíveis” do povo brasileiro; e, também, a descobrir os
salteadores, opressores que continuam fazendo vítimas no mundo atual. A partir deste
diagnóstico práxico aparece uma que busca dar razões de sua esperança fazendo
acontecer o reinado de Deus. Da mesma forma, irrompe um seguimento de Jesus com a
missão de descer da cruz os pobres crucicados. Em outras palavras, se conhece o Pai ao fazer
o Seu Reino. Assim, a ganha em densidade histórica, os pobres e injustiçados tornam-se
sujeitos e protagonistas, porque o libertados, o Reino cresce como grão de mostarda,
combatendo o antirreino os cegos veem “outro mundo possível” e todos entram na ciranda
do amor até doer. Dor que parece estranha quando conectada com um Deus abstrato e
distante dos dramas humanos, mas natural, no entanto, quando se convive com os pobres
e excluídos, porque testemunham um amor mais forte do que a morte. Um Deus de rosto
curtido, de os calejadase disposto a chorar a dor e o sofrimento como uma mãe que
lamenta e geme as dores dos filhos e filhas. Para lembrar o que dissemos: “Deus que
‘sofre no sofrimento’”.
É exigência do processo metodológico sua circulação constante, ou seja, trata-se de
uma perspectiva fundamental do método. Dimensão enfatizada pelo teólogo Luiz C. Susin:
“como é uma trindade em círculo, cada mediação influencia hermeneuticamente a outra”.
Esse círculo de mediações desestabiliza “quem está convicto de que ideias elaboradas em
gabinete mudam unilateralmente o mundo, esta metodologia é julgada não ingênua,
mas perigosa e heterodoxa, até porque quem pensa e quem governa pela doutrina perde a
hegemonia do controle da realidade”
21
.
CONCLUSÃO
O objetivo desta reflexão foi retomar aspectos do método Ver-Julgar-Agir no sentido
de interligar, ou propor a interface entre a educação e evangelização no contexto da
proposta da Campanha da Fraternidade. Desta simples abordagem, perceber ou dar-se
conta de como este método continua interpelando e influenciando os contextos eclesial e
educacional em que estamos imersos.
Por isso, este método conduz e interpela a retomar com assiduidade a dimensão da
educação e da evangelização como caminhos que se cruzam e se exigem à luz das verdades
da fé, pois ambas desejam a transformação do mundo Casa Comum para a humanidade.
Falar de educação e de evangelização é falar de humanidade, como disse o Papa Francisco
na Laudato Si: “Vários são os âmbitos educativos: a escola, a família, os meios de
19 I. ELLACURÍA, Escritos teológicos I. 1ª ed. San Salvador: UCA, 2000.
20 Jon SOBRINO, Fora dos pobres não salvação, p.18.
21 Luiz C. SUSIN, Teologia da Libertação: de onde viemos, para onde vamos, Voices. EATWOT, v.36, p.31.
ZANINI, Rorio L.; GONÇALVES, Humberto Maiztegui
Fraternidade e educão: A Campanha da Fraternidade numa abordagem freiriana do todo Ver-Julgar-Agir
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 10-18, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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comunicação, a catequese, e outros. Uma boa educação escolar em tenra idade coloca
sementes que podem produzir efeitos durante toda a vida” (LS 213).
A Campanha da Fraternidade, especialmente quando vista sob a ótica de Paulo
Freire, revigora o sentido transformador da educação. Exige que todas as pessoas
envolvidas nos processos de ensino-aprendizagem se tornem sujeitos históricos. O método
Ver-Julgar-Agir quando entrelaçado dentro do círculo hermenêutico, é capaz de despertar o
sentido transformador e libertador dos processos educativos e de evangelização.
Este método que sofreu por ostracismos no percurso da história, particularmente
como crítica à Teologia da Libertação, ressurge mais uma vez como “sal” e “luz” para
temperar e iluminar a concretude do reino de Deus nesta hora tão macabra da história
brasileira e da humanidade. Método que atualmente ganha relevância e status teológico no
pontificado do Papa Francisco. Ele tem utilizado com tranquilidade e sem medo este
método, inclusive reformulando nos termos de “contemplar-discernir e propor”
22
.
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22 FRANCISCO, Vamos sonhar juntos, p.153.
ZANINI, Rorio L.; GONÇALVES, Humberto Maiztegui
Fraternidade e educão: A Campanha da Fraternidade numa abordagem freiriana do todo Ver-Julgar-Agir
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 10-18, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.