O ESPAÇO DA CELEBRAÇÃO EM TEMPOS
DE ISOLAMENTO SOCIAL
Ms. Ir. Penha Carpanedo*
DOI: https://doi.org/10.52451/teopraxis.v37i129.12
Recebido: 23 de janeiro de 2019 | Aprovado: 26 de maio de 2019
Resumo:
A casa onde moramos, desponta como lugar seguro em tempo de
isolamento social. Mas ela é, por tradição, um espaço eclesial que abriga a
Igreja doméstica e sua liturgia. No centro da casa está a mesa da comunhão
diária, sustentada pela partilha da refeição, pela convivência, pela memória
das tantas refeições que Jesus fez com os seus.
Palavras-chave:
Casa. Isolamento. Reunião. Mesa. Escuta. Prece.
1 A casa como lugar seguro
Estamos no meio de uma crise sanitária sem precedentes,
agravada por um desgoverno que nega os possíveis e necessários
cuidados, colocando-nos em extrema dificuldade, sobretudo os
pobres que não dispõem de recursos mínimos para manter-se
em isolamento. É uma situação que, de alguma forma, atinge
todas e todos nós. Em cinco meses chegamos ao alarmante número
de cem mil vidas ceifadas, nomes apagados, histórias interrompidas,
entre as quais figuram rostos de pessoas conhecidas, de parentes e
de tantos amigos e amigas. E em meio a este luto coletivo a
instabilidade continua, com a situação econômica e política
piorada, sem qualquer certeza de solução num futuro próximo.
Mas os sábios dizem que nunca se deve desperdiçar uma
crise. Sem escamotear a crise, podemos fazer dela uma fonte de
transformação. A história nos ensina que é possível renascer das
* Pertence às Pias Discípulas do Divino Mestre. Redatora da Revista de Liturgia.
Membro da Rede Celebra de animação litúrgica. Mestre em Liturgia. email:
redacao@revistadeliturgia.com.br
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cinzas. Há quem diga, que depois desta dramática experiência
não seremos mais os mesmos, as mesmas, que o mundo terá que
ser reinventado desde a forma de gerenciar a economia até os
modos de viver dentro de nossas casas.
Na Igreja vivemos a impossibilidade de nos reunir
presencialmente para as diversas atividades pastorais, gritando
mais forte o fato de não podermos participar plenamente da
Eucaristia. Talvez, as alternativas que surgiram para suprir esta
privação, estejam revelando, quão limitada é a nossa
compreensão da ceia memorial do Senhor e isso deverá nos
levar a buscar o sentido mais profundo da eucaristia que inclui o
lava-pés do serviço e do amor fraterno. Aliás, estamos tendo a
oportunidade de contemplar a entrega do Senhor, no trabalho
arriscado de tantos profissionais da saúde, na luta para obter o
auxilio emergencial, na partilha e na solidariedade em socorrer
os mais frágeis, na batalha cotidiana pela sobrevivência em
condições adversas.
E enquanto a instabilidade permanece a palavra de ordem é
ficar em casa para não contrair nem contribuir para disseminar
o vírus. Ninguém deve se arriscar, nem mesmo para ir à Igreja.
A fé pode ser cultivada e celebrada em casa. Este espaço
pequeno, tão pouco importante aos olhos de quem faz os
grandes relatos da história, pouco significativo para a economia
e para a politica, de repente vem à tona como o lugar seguro e
se revela como espaço simbólico, eclesial e litúrgico. Isso de
voltar para a casa, remete ao tempo de Jesus e das primeiras
comunidades cristãs, que tinha a casa como lugar de reunião e
de evangelização.
2 A casa da Igreja
Jesus foi um rabino itinerante, missionário. Com ele
caminhavam os doze, outros discípulos, um grupo de mulheres
(Lc 8,1-3; Mc 15,40s). Em suas andanças parava nas casas que o
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recebiam oferecendo abrigo, alimento, aconchego. Jesus falava
às multidões, mas era na casa que Ele conversava com os
discípulos e discípulas na intimidade. A palavra casa nos
evangelhos é quase sempre uma referência ao lugar onde Jesus
se encontrava com os seus discípulos e discípulas e os formava
(cf. Mc 1,17; 9,28). A última ceia de Jesus foi celebrada numa
casa (Mc 14,15) e foi na casa que depois de sua ressurreição Ele
apareceu aos 11 quando estavam à mesa [Mc 16,14-18] ou
quando estavam reunidos com as portas fechadas (Jo 20,19). A
casa extrapola a família natural. Jesus deixa claro, que a sua
família, sua mãe e seus irmãos são aqueles que ouvem a palavra
de Deus e a põem em prática (Lc 11,28).
Essas casas certamente se tornaram referências para as
comunidades cristãs depois da ressurreição. Imaginemos, por
exemplo, a casa de Marta, Maria e Lázaro, em Betânia, onde
Jesus tantas vezes se hospedou a caminho de Jerusalém (cf. Lc
10,38-42); ou a casa de Pedro em Cafarnaum onde Jesus
morava (cf. Mc 1,2; 3,20). Nas comunidades de Paulo são
conhecidas as casas de Lídia que acolheu Paulo e onde a Igreja
se reunia (cf. At 16,14-15); também a casa de Prisca e Áquila
um casal importante na itinerância missionária de Paulo, que
abriu a sua casa para o apóstolo e na qual a comunidade cristã se
reunia regularmente (cf. 1Cor 16,19). Em Jerusalém, podemos
lembrar a casa de Maria mãe de João Marcos para onde Pedro se
dirigiu depois da sua libertação milagrosa (At 12,12-16). A
Igreja de Jerusalém se reunia nas casas e também no templo, tão
importante para o povo de Israel como lugar de revelação: em
suas casas partiam o pão, compartilhavam a comida com alegria
e simplicidade de coração (At 42,46).
Estas casas cedidas para servir de lugar de reunião da
comunidade, passavam por uma adequação em função do
número de pessoas e das ações que ali se realizavam. Sem perder
a fisionomia da casa abria-se o necessário espaço para abrigar a
comunidade. Não se tinha a intenção de criar um espaço
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sagrado, pois sagrada era a comunidade reunida, ela mesma
lugar da manifestação do Ressuscitado. A mais antiga Casa-
igreja de que se tem notícia, situada na atual Síria, numa cidade
de nome Dura Europos, era uma residência familiar que foi
ampliada para prestar este serviço.
Com o tempo a Igreja foi se estruturando e grandes templos
foram construídos, à medida que a própria Igreja e a sua liturgia
vão se modificando sob o domínio do clero, praticamente sem
participação do povo e sem ministérios leigos. Quanto mais o
povo deixa de ser sujeito e a liturgia já não se configura como
uma ação comunitária da fé, mais o espaço da celebração passa a
atender à necessidade de olhar, em vez de participar ativamente.
Com o movimento de volta às fontes do Concilio Vaticano
II, reabilitando o modelo de Igreja povo de Deus, caminhos se
abriram para as pequenas comunidades. Foi uma verdadeira
revolução do ponto de vista eclesial e litúrgico, em que o povo
passa a ser sujeito eclesial e sujeito também da ação litúrgica.
Aqui na América Latina, a recepção do Concílio, sobretudo a
partir de Medellín, criou espaço para uma experiência concreta
da Igreja povo de Deus nas Comunidades Eclesiais da Base, que
se reúnem em pequenos grupos, muitas vezes nas casas, num
salão comunitário, em espaços mais simples, em movimento
circular. Contudo não é fácil em 50 anos, passar de um modelo
milenar, para um novo jeito de ser Igreja. Há sempre a
tendência de voltar ao velho sistema.
3 A volta pra casa
Com o isolamento social veio à tona uma avalanche de
missas com o padre, mas sem o povo, oferecida via mídia e
recebida como resposta satisfatória por grande parte do povo
católico. No entanto, boa parte dos fiéis tem se perguntado se
em vez disto, não seria mais interessante reunir a família e fazer
da pequena igreja da casa um lugar de encontro com Jesus
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conforme ele mesmo prometeu: Onde dois ou três estiverem
reunidos em meu nome, estarei no meio deles (Mt 18,20).
Aliás, os fiéis nunca deixaram de fazer da casa, de alguma
maneira, um lugar de viver e celebrar a fé. É muito comum
encontrar nas casas, sobretudo dos pobres, um altarzinho, uma
imagem, uma vela e a prática diária da oração, em geral, com
expressões da piedade popular já que a liturgia se tornou
inacessível ao povo. Daqui podemos começar a partir da
herança de nossos pais e avós. Quantos e quantas de nós não se
recorda do diminuto ofício cotidiano, da manhã e da noite,
com Deus me deito, com Deus me levanto, com a graça de
Deus e o Divino Espírito Santo?
Aos poucos podemos ir desenvolvendo uma liturgia
doméstica, feita de pequenos ritos em estilo simples, presidida
pela mãe ou por outra pessoa da família. Por esta celebração
podemos alegrar-nos na presença de Jesus, escutar e meditar a
sua palavra e, junto com Jesus, erguer ao Pai os nossos corações
em preces, partilhar um pão em ação de graças, invocar uma
benção. É uma liturgia que pode renovar a esperança e a
confiança de que Deus não nos abandona, mesmo quando a
morte nos ameaça.
A liturgia doméstica se adapta ao espaço da casa, buscando
nela o melhor para se criar um círculo, seja na sala, ou numa
varanda, ou num terraço, ou no quintal... Em qualquer caso, é
importante cuidar que as pessoas estejam confortáveis e unidas
entre si. Se for dentro de casa é importante estabelecer um
ponto de referência que pode ser uma vela, a bíblia, um ícone
ou a cruz, uma flor, sobre uma mesinha ou sobre um tecido
posto no chão. Não se trata de transportar para a casa o modelo
da igreja maior. Mas o espaço organizado e bonito, ainda que
com toda a simplicidade, corresponde à linguagem própria da
liturgia que expressa a fé por meio de sinais sensíveis (cf. SC 7).
Na casa, talvez o espaço mais sagrado, seja a mesa, onde
todos se encontram para partilhar o pão, dom de Deus e fruto
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do trabalho de cada um, cada uma. Infelizmente já não é tão
comum priorizar a refeição como lugar de convivência. A
televisão, o celular, o trabalho nos capturam e indicam outra
direção. Poderia ser este um bom começo, se não sempre, pelo
menos de vez em quando: preparar uma boa comida, arrumar a
mesa, alguém pode fazer uma prece de agradecimento a Deus
pelo pão nosso de cada dia e pelo dom de estarmos juntos.
Comer e beber na alegria e na comunhão tem enorme sentido
espiritual. Recorda as tantas vezes que Jesus sentou-se com seus
para comer e beber, em ação de graças, sinalizando a chegada
do Reino.
Esta experiência forçada pela pandemia soa como
alternativa, já que não podemos nos juntar à comunidade; ao
mesmo tempo, aponta para um futuro, que já se faz presente, de
uma Igreja que redescobre formas concretas de exercer o
sacerdócio comum dos fiéis, na vida e na liturgia. Oxalá a
experiência de celebrar no restrito ambiente da casa, nos
devolva definitivamente o imprescindível da participação
efetiva e ativa, e livre a Igreja de tratar o povo como mero
espectador (Cf. SC 48).
Referências Bibliográficas
BÍBLIA SAGRADA
. Tradução oficial da CNBB. Brasília: Ed. CNBB, 2018.
DOCUMENTOS DO CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. São
Paulo: Paulus, 2014, 7ªed. In:
Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a
Sagrada Liturgia
, p.33-79.
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