Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
A MISSÃO DA IGREJA NO BRASIL
JUNTO ÀS PERIFERIAS
uma reexão socioteológica
THE MISSION OF THE CHURCH IN
BRAZIL TO THE PERIPHERIES
a sociotheological reection
Ari Antônio dos Reis*
Anderson Pereira**
Resumo: Este artigo tem por objetivo abordar a missão da Igreja Católica
Romana junto às periferias e a necessidade da presença da Igreja nesses
locais. Nesse sentido, faz-se mister pensarmos uma metodologia pastoral
em consonância a uma Igreja que deve sair para as periferias, a fim de
reafirmar a sua missão evangelizadora. O processo geral de urbanização
influenciou o surgimento das periferias e a configuração social que esses
lugares foram assumindo com o passar do tempo. Este artigo expõe e
desenvolve esta temática a partir de embasamentos sociológicos e
geográficos sobre o tema da periferia, pautado em especialistas sobre o
assunto, como, por exemplo, o geógrafo Milton Santos e também a partir
das propostas teológicas e pastorais do Papa Francisco. Os temas principais
desenvolvidos neste artigo são: 1) Esclarecimentos conceitual e
etimológico do termo periferia; 2) A construção social das periferias; 3) A
periferia como lugar de ausências e presenças; 4) Por uma Igreja em saída
para as periferias. O presente texto parte de uma metodologia de estudo
que tem como principal fonte a análise bibliográfica, de natureza
hermenêutico-interpretativa, método bastante usual no campo teológico.
Constatar-se-á que, atualmente, com crescimento exponencial de regiões
periféricas, a Igreja não pode negligenciar esses espaços como “novos
areópagos”, isto é, lugares eclesiais, sociais e históricos privilegiados para o
anúncio do Evangelho.
Palavras-chave: Pastoral. Igreja. Periferia. Evangelização.
Abstract: This article aims to address the mission of the Roman Catholic
Church in the peripheries and the need for the Church's presence in these
places. In this sense, it is necessary to think about a pastoral methodology
in line with a Church that must go out to the peripheries in order to
rearm its evangelizing mission. The general process of urbanization has
influenced the emergence of the peripheries and the social configuration
that these places have assumed over time. This article exposes and
develops this theme based on sociological and geographical foundations
about the theme of the periphery, based on specialists on the subject, such
as the geographer Milton Santos, and also based on the theological and
v. 40, n. 134, Passo Fundo,
p. 90-106, Jan./Jun./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI
:dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i134.127
* Mestre em Teologia Pastoral pela PUC/SP.
Professor da área de Teologia Pastoral e
Teologia da Revelação e professor do Curso
de Bacharelado em Teologia da Itepa
Faculdades de Passo Fundo - RS.
E-mail: reis.abt@gmail.com
https://orcid.org/0009-0000-2096-6193
* Mestrando em Teologia Dogmática pela
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC/SP). Especialista em Sagradas
Escrituras pela Faculdade Claretiana e
Especialista em Ciências da Religião pela
Faculdade UnyLeya.
E-mail: pereira-anderson1@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0001-9557-6026
Recebido em 05/10/2022
Aprovado em 01/02/2023
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
pastoral proposals of Pope Francis. The main themes developed in this
article are: 1) Conceptual and etymological clarifications of the term
periphery; 2) The social construction of the peripheries; 3) The periphery
as a place of absences and presences; 4) For a Church going forth to the
peripheries. The present text is based on a study methodology that has as
its main source the bibliographical analysis, of hermeneutic-interpretative
nature, a very usual method in the theological field. It will be noted that
today, with the exponential growth of peripheral regions, the Church
cannot neglect these spaces as “new areopaguses”, that is, privileged
ecclesial, social and historical places for the proclamation of the Gospel.
Keywords: Pastoral. Church. Periphery. Evangelization.
INTRODUÇÃO
A ação evangelizadora da Igreja do Brasil é enriquecida através
de experiências eclesiais múltiplas, que variam nas distintas regiões
do País. A própria Constituição Pastoral Gaudium et Spes tratou de
orientar a inculturação e a atenção aos “sinais dos tempos”, a partir
de cada realidade (GS 4). Ou seja, é necessário adaptar a linguagem e
ação pastoral às realidades locais. Por exemplo, a experiência
pastoral da Arquidiocese de Belo Horizonte na década de 1970/1980,
diante da alteração do cenário urbano, exigiu determinada
reorganização da ação pastoral. Certamente, a experiência da
Arquidiocese de o Paulo, com Dom Paulo Evaristo Arns (1921-
2016), na chamada “operação periferia”
1
, também na mesma década,
foi semelhante em alguns aspectos, mas muita distinta em outros.
Neste sentido, é impossível generalizar a experiência
missionária da Igreja Católica Romana do Brasil nas periferias das
grandes cidades. Nenhuma experiência eclesial é homogênea, assim
como não são homogêneas as periferias do Brasil. Assim, de modo
algum neste texto pretendemos generalizações, mas procuramos
relacionar alguns aspectos comuns a todas essas múltiplas realidades,
levando sempre em consideração suas especificidades, que são
impossíveis enumerá-las por completo.
O presente texto está dividido em quatro partes distintas e
interligadas. A primeira seção apresenta alguns esclarecimentos
conceitual e etimológico acerca do termo periferia. Em seguida, o
apresentadas algumas notas sobre o surgimento das periferias no
contexto de expansão das cidades, a fim de evidenciar as condições
espaciais e sociais a que estão submetidos os indivíduos que ocupam
estes espaços e questionar a complexidade que marca a vivência
nestes territórios.
O texto continua seu percurso refletindo sobre a compreensão
dos processos de construção da realidade periférica em suas
“ausências e presenças”. Em nosso entender, ausências pela
v. 40, n. 134, Passo Fundo,
p. 90-106, Jan./Jun./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
1 Sobre a operação periferia cf. OLIVEIRA, Cláudio de. Operação periferia: um estudo sobre
a operação periferia na Arquidiocese de São Paulo (1970-1980), perspectivas para a missão na
cidade. Dissertação de Mestrado; São Paulo: PFTNSA, 2008. Disponível em: http://
www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=
116772.
92
negligência dos poderes públicos no atendimento às populações de periferia. Presenças,
pela coragem e criatividade das pessoas que se articulam em vista de melhores condições
de vida, fenômeno nem sempre acolhido nos tratados sobre o tema. Este binômio
ausências e presenças é um modo de análise apresentado por nós neste texto. Considera-
se ainda o significado e a relevância da realidade das periferias, as suas características e,
especialmente, a leitura de um espaço que, apesar das dificuldades, é também o lugar da
resistência e do fomento de diferentes formas alternativas de sobrevivência.
Por fim, o texto reflete sobre a necessidade da Igreja de estar em constante saída
missionária para descobrir a sua essência evangelizadora, como tem assegurado o Papa
Francisco, interpelando por uma “Igreja em saída”. Para tanto, propomos uma
metodologia do fazer pastoral, enumerando elementos que julgamos indispensáveis para
uma Pastoral Urbana com foco nas periferias das grandes cidades.
Sem desconsiderar milhares de homens e mulheres que moram nos centros urbanos
como também destinatários da missão evangelizadora da Igreja, optou-se por olhar com
especial atenção a população da periferia
2
. Como o assunto é de grande complexidade e
amplitude, além de exigir domínio sociológico e geográfico sobre o tema da periferia, é
preciso levar em consideração as limitações acerca desta reflexão. Não exploramos
minuciosamente o assunto, tampouco encerramos a questão, todavia lançamos um olhar
provocativo sobre esta realidade.
1 A PERIFERIA COMO CONCEITO
Em princípio, é interessante pensar na etimologia do termo periferia
3
. Dentre os
primeiros significados trazidos pelo dicionário Michaelis da Língua Portuguesa, estão
aqueles que o relacionam com a geometria: “linha que determina o contorno de uma figura
curvilínea” e “linha que delimita qualquer corpo ou superfície
4
”. O conceito refere-se
àquilo que rodeia um determinado centro, como uma zona, um contorno ou um perímetro.
Periferia define-se como o arredor de algo tido como central e mais importante.
A partir
dessa conceituação, pode-se questionar: por definição, a periferia demarca uma linha que
divide as pessoas? O que há para além dessa linha? É possível transpô-la?
O referido dicionário traz outro significado revelador para análise, indicando o
sentido figurado em que a palavra pode ser empregada: “a parte não essencial ou
fundamental de um assunto em questão”
5
. Costuma-se dizer que, quando um assunto não
foi tratado de modo profundo ou não é interessante, trata-se de algo “periférico”. Portanto,
em sentido pejorativo, o que há para além dessa “linha” são as coisas “menos importantes”.
Ademais, este uso pejorativo na verdade expressa o modo como o poder blico
enxerga os bairros periféricos dentro da cidade, que, conforme também se verifica a partir
2 A abordagem sobre a cidade é sempre ampla porque uma cidade de porte grande ou médio tem várias áreas de
referência e influência e é passível de diversas formas de abordagem. No caso da missão evangelizadora é também
necessário precisar os interlocutores privilegiados em um projeto específico.
3 De acordo com a definição de Allan Johnson, a periferia urbana é definida nestes termos: “Descrita pela primeira vez
nos Estados Unidos em fins da década de 1980, a periferia urbana é um SUBÚRBIO que deixou para trás o padrão
histórico de servir principalmente como comunidade-dormitório de indivíduos que trabalham numa cidade. A
periferia urbana dispõe agora de uma base comercial e manufatureira própria não raro sob a forma de sede de
grandes empresas que concorre com o CENTRO URBANO, abandonado por muitas empresas, e frequentemente
acelera sua decadência. As periferias urbanas são completas: possuem parques industriais e prédios comerciais,
shopping centers e grandes hotéis e restaurantes”. In: JOHNSON, Allan G. Dicionário de Sociologia: guia prático da
linguagem sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p.301.
4 Periferia In: DICIONÁRIO Michaelis de Língua Portuguesa. Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/> Acesso
em: 18/jun./2022.
5 DICIONÁRIO Michaelis de Língua Portuguesa. Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/> Acesso em: 18/jun./
2022.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 90-106, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
REIS, Ari Annio dos; PEREIRA, Anderson
A miso da Igreja no Brasil junto às periferias: uma reflexão socioteogica
93
do verbete, é a “região distante do centro urbano, com pouca ou nenhuma estrutura e
serviços urbanos, onde vive a população de baixa renda”
6
. Em uma abordagem sociológica
urbana, indica o local onde moram os pobres afastados da cidade. Pode-se afirmar que:
O conceito de periferia foi forjado de uma leitura da cidade surgida de um
desenvolvimento urbano que se deu a partir dos anos 1980. Esse modelo de
desenvolvimento privou as faixas de menor renda de condições básicas de
urbanidade e de inserção efetiva à cidade. Essa talvez seja sua principal
característica, migrada de uma ideia geográfica, dos loteamentos distantes do
centro. Mas é preciso lembrar que a periferia é marcada muito mais pela
precariedade e pela falta de assistência e de recursos do que pela localização.
Hoje condomínios de alta renda em áreas periféricas que, claro, não podem
ser considerados da mesma forma que seu entorno, assim como periferias
em áreas nobres da cidade
7
.
De acordo com o autor Álvaro Domingues, enquanto agregado social, a periferia
define-se, “não pela densidade ou pela intensidade do inter-relacionamento interno ao
nível local, mas sim pela dependência, pela subalternidade face às áreas centrais e aos locais
de destino dos habitantes-pendulares”
8
. Tradicionalmente, o termo periferia tem sido
utilizado para designar uma área fora da cidade com características urbanas, construída
com uma lógica diferente daquela estabelecida séculos. A cidade concentra vários focos
de interesses, relações e núcleos diferenciados que permitem perceber a diversidade dentro
de um espaço geográfico não muito extenso. Uma cidade tem os espaços centrais
considerados núcleos de poder e, supostamente, dinamizadores da vida urbana. Comporta
também as regiões de periferia.
Em uma perspectiva geográfica, compreende-se a periferia como local afastado do
centro da cidade. Tal afastamento implica consequências em várias dimensões. Na
perspectiva sociológica são, geralmente, espaços marcados por grandes dificuldades,
justamente pelo afastamento do centro de influência e dos espaços de tomada de decisão.
Além de dificuldades como falta de digno acesso às condições mínimas de sobrevivência dos
moradores, inserção no mercado formal de trabalho e precário acesso às políticas públicas
9
.
A periferia é entendida não como locus da segregação imposta às classes pobres, mas
também da autossegregação de classes abastadas em fuga do núcleo metropolitano. De acordo
com essa concepção, “as periferias brasileiras estariam cada vez menos vinculadas a um
conteúdo específico de classe, existindo uma ‘periferia pobre’ e cada vez mais, uma ‘nova
periferia rica’, constituída por condomínios fechados, que estaria transformando e dualizando
a periferia tradicional”
10
. A periferia, portanto, se caracteriza pelos diversos afastamentos do
centro da cidade, a saber: territoriais, raciais, sociais, econômicos, simbólicos, dentre outros.
É este grau de afastamento a um centro que traz a ideia de uma posição periférica
11
.
6 DICIONÁRIO Michaelis de Língua Portuguesa. Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/> Acesso em: 18/jun./
2022.
7 SGARIONI, Mariana; TONON, Rafael. O que é periferia? Entrevista com Raquel Rolnik. Disponível em: <https://
raquelrolnik.wordpress.com/2010/06/14/o-que-e-periferia-entrevista-para-a-edicao-de-junho-da-revista-
continuum-itau-cultural/> Acesso em: 18/jun./2022.
8 DOMINGUES, Álvaro. (Sub)úrbios e (sub)urbanos - o mal-estar da periferia ou a mistificação dos conceitos? Revista
da Faculdade de Letras - Geografia. I Série, v. X/XI, Porto, 1994/5, p.5.
9 SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção, p. 21.
10 SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção, p. 30.
11 DOMINGUES, Álvaro. (Sub)úrbios e (sub)urbanos - o mal-estar da periferia ou a mistificação dos conceitos? Revista
da Faculdade de Letras - Geografia. I Série, v. X/XI, Porto, 1994/5, p.5.
12 SANTOS, Milton. O espaço dividido, os dois circuitos da economia urbana nos países desenvolvidos, p.229.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 90-106, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
REIS, Ari Annio dos; PEREIRA, Anderson
A miso da Igreja no Brasil junto às periferias: uma reflexão socioteogica
94
Em termos geográficos, a periferia não será definida pela distância física entre
um polo e as zonas tributárias, mas antes em termos de acessibilidade. Esta
depende essencialmente da existência de vias de transporte e da possibilidade
efetiva de sua utilização pelos indivíduos, com o objetivo de satisfazer
necessidades reais ou sentidas como tais. Mas a incapacidade de acesso a bens e
serviços é, em si mesma, um dado suficiente para repelir o indivíduo e também,
afirma, a uma situação periférica
12
.
Desse modo, muitas vezes a periferia é vista como “o lugar da exclusão, da
marginalidade e da segregação sociais, da anomia, da ausência de uma noção de pertença a
um lugar, do déficit de cidadania, etc”
13
. Os espaços periféricos são construídos como
frutos de uma segregação produzida pelo capitalismo excludente. O que se vê nas periferias
são “aglomerados de casas autoconstruídas, localizadas em espaços distantes dos recursos
econômicos e das decisões políticas”
14
.
Concordamos que a cidade está cada vez mais em uma encruzilhada, fruto da sua
estruturação ao longo dos anos, respeitando a lógica capitalista que acentua o mercado em
detrimento da vida digna da população
15
. De um lado, os grandes condomínios fechados,
com excelente infraestrutura, localizados longe do centro urbano (em nosso entender,
“guetos de isolamento”). Do outro lado, a periferia compreendida como o lugar de
ausências ou carências. Neste caso, a periferia define-se como o lugar com grande déficit de
cidadania no que tange às necessidades básicas do ser humano
16
.
Agora, é fundamental temporalizar o processo pelo qual o processo de urbanização
foi produzido no Brasil, quais dinâmicas e agentes impulsionaram-na e a construíram,
com o intuito de circunscrever o surgimento das periferias no tempo e no espaço.
2 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DAS PERIFERIAS NO BRASIL
As periferias no Brasil são resultado de um processo de construção social complexo e
influenciado por fatores políticos, econômicos e culturais. A partir da década de 1950,
houve um aumento da migração de pessoas das regiões rurais para as grandes cidades,
onde ocorreu a expansão da construção de conjuntos habitacionais para abrigar a
população em crescimento. Essas áreas, geralmente localizadas nas bordas das cidades, o
caracterizadas por falta de infraestrutura, serviços públicos insuficientes e elevados índices
de pobreza e violência
.
Em resumo, o processo de construção social das periferias no Brasil é resultado da
combinação de fatores históricos, econômicos e políticos, que levaram a uma concentração
de desvantagens sociais nas regiões periféricas das grandes cidades. Para entender a
construção social das periferias no Brasil precisa-se recorrer ao processo de urbanização
que abrange muitas dimensões da vida cotidiana e até extrapola o espaço geográfico de
uma cidade, assumindo-se como referência também do mundo rural.
13 DOMINGUES, Álvaro. (Sub)úrbios e (sub)urbanos - o mal-estar da periferia ou a mistificação dos conceitos? Revista
da Faculdade de Letras - Geografia. I Série, v. X/XI, Porto, 1994/5, p.7.
14 GUIMARÃES, Leandro da Silva. O modelo de urbanização brasileiro, notas gerais. GeoTextos, Salvador, vol.12, n.1,
julho 2016, p.20.
15 SEIXAS, João. A cidade na encruzilhada. Repensar a cidade e a sua política, p.49. A expressão “cidade na encruzilhada” é
estruturada por um modelo analítico composto por três eixos: a cidade como lugar de relação e das relações; a cidade
como espaço e território; a procura de perspectivas integradas e sistêmicas sobre a cidade.
16 DOMINGUES, Álvaro. (Sub)úrbios e (sub)urbanos - o mal-estar da periferia ou a mistificação dos conceitos? Revista
da Faculdade de Letras - Geografia. I Série, v. X/XI, Porto, 1994/5, p.7.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 90-106, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
REIS, Ari Annio dos; PEREIRA, Anderson
A miso da Igreja no Brasil junto às periferias: uma reflexão socioteogica
95
Destaque-se que atualmente a cultura dominante é a cultura urbana e a
distinção rural-urbano tem realmente uma dimensão geográfica, pois,
sociologicamente, a cultura urbana se impôs como um rolo compressor
empurrando para a periferia a rural, e tornou-se de tal maneira hegemônica que
predomina uma única mensagem: a urbana. O efeito de demonstração exercido
através da mídia, a partir do controle absoluto do urbano, se tornou
absolutamente dominante
17
.
A urbanização é um fenômeno mundial irreversível. Foi constituída a partir da
Idade Moderna, nos séculos XVII e XVIII, com o deslocamento da importância econômica
das atividades agrícolas para as atividades industriais, passando antes pela atividade mercantil
(comércio). O geógrafo Milton Santos afirma que “o fenômeno da urbanização moderna
nos países industrializados acompanhou a Revolução Industrial”
18
. Antes da Revolução
Industrial (séc. XVIII), menos de 10% da população europeia vivia nas cidades. A necessidade
de mão-de-obra para a Indústria emergente provocou o deslocamento do homem
do campo
para as áreas urbanas. No Brasil, assim como na América Latina, se comparado com o
continente Europeu, o processo foi tardio (século XX), contudo mais intenso e profundo.
Assim como nas demais partes do mundo, a urbanização no Brasil também teve
seu período mais acelerado na segunda metade do século passado. Deve-se
destacar, contudo que entre 1940 e 1970 a população urbana mais do que
dobrou seu volume, e em apenas 40 anos (1940-1980) uma inversão da
situação: a taxa de população urbana que era de um terço passa a dois terços,
acontecendo o inverso com a população rural
19
.
A explosão da urbanização, intensa na segunda metade do século XX, implicou em
um redimensionamento das cidades. É o que afirma o texto a seguir:
Durante o século XX, a sociedade brasileira passou por três acelerados
processos de transformação que produziram as cidades atuais: a industrialização
da economia; a explosão demográfica decorrente da queda das taxas de
mortalidade e a urbanização da população, que migrou em massa do campo para
as cidades em busca de melhores oportunidades de vida
20
.
O processo de urbanização brasileiro deu-se, praticamente, no século XX. O Brasil
deixa o século XIX com aproximadamente 10% da população nas cidades
21
. Milton Santos
aponta que no Brasil as cidades cresceram como “flor exótica”, sendo sua evolução atrelada
aos fatores políticos e econômicos
22
. A partir dos anos de 1980, as periferias crescem mais
do que os núcleos ou municípios centrais nas metrópoles
23
. Hoje, nas grandes metrópoles,
as periferias crescem mais do que os bairros ricos (IBGE/2010).
A condição de morador do meio urbano exige uma renda e um local para se viver.
Conforme afirma o teólogo João Batista Libânio, quem vive na cidade necessita de
moradia: ter um barraco próprio, independente do mundo do trabalho, constitui fonte de
orgulho e de autonomia
24
. Contudo, esta é uma condição difícil pelo fato da cidade estar
imersa em uma rede ampla de interesses marcados pelas disputas de mercado, sobretudo o
imobiliário, o que afeta sobretudo os mais pobres.
17 ROSSATO, Ricardo. O Fenômeno da Urbanização: a passagem de Civilização. Palestra realizada no Congresso Teológico
da ITEPA Faculdades, 10 de maio de 2011, Passo Fundo (RS).
18 SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção, p.15.
19 SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção, p.15.
20 CASA VOGUE. Como surgiram as favelas no Brasil. Disponível em: <https://casavogue.globo.com/Arquitetura/Cidade/
noticia/2018/10/como-surgiram-favelas-no-brasil.html> Acesso em: 18/jun./2022.
21 SANTOS, Milton. A urbanização brasileira, p.30.
22 SANTOS, Milton. A urbanização brasileira, p.30.
23 SANTOS, Milton. A urbanização brasileira, p.41.
24 LIBÂNIO, João Batista. As lógicas da cidade: o impacto sobre a fé e sob o impacto da fé, p.33.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 90-106, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
REIS, Ari Annio dos; PEREIRA, Anderson
A miso da Igreja no Brasil junto às periferias: uma reflexão socioteogica
96
Segundo Libânio, “a tendência é ir empurrando e escorraçando as classes mais
pobres para lugares de pior qualidade de vida e distantes, obrigando os trabalhadores a
submeter-se a longos itinerários em meios de transporte deficientes e penosos
25
”. O
território da cidade passou a ser também fruto da especulação capitalista. Mesmo sendo a
moradia um direito, pesa antes a dimensão mercadológica. Isto permitiu a precarização da
vida na cidade, começando pela moradia.
Neste contexto socioeconômico surgiram as cidades atuais e pessoas que não
tinham renda suficiente para pagar o aluguel de imóveis do mercado formal
registrados e licenciados trataram de produzir para si mesmas a habitação de
que necessitavam. Construíram suas casas em loteamentos irregulares,
comprando lotes sem registro de grileiros, ou ocupando terrenos inadequados
como planícies alagáveis e encostas íngremes, principalmente nas periferias da
cidade formal, em regiões desprovidas da infraestrutura e dos serviços
necessários para caracterizar uma cidade: ruas e calçadas, energia elétrica,
abastecimento de água, coleta de esgoto e de lixo, varrição, policiamento,
transporte público, equipamentos de educação, saúde e lazer
26
.
Morar na cidade tem um custo alto devido à necessidade, além da moradia, de
alimentação, transporte, educação, entre outros. São condições de sobrevivência fundamentais.
Nos últimos dois anos, agravada pela pandemia da Covid 19, tem chamado atenção a
realidade de fome nas diferentes regiões do Brasil. Parece-nos que na cidade o problema é
mais grave, porque, diferente do meio rural onde se pode extrair o alimento a partir do
cultivo da terra, na cidade se adquire o alimento, quase sempre, mediante a compra dele.
Para o trabalhador, desempregado ou com baixa renda, os fatores de “peso no orçamento”,
tais como moradia, alimentação, vestuário, são somados, o que acarreta a dificuldade de viver
bem na cidade. Em suma, antes de priorizar o ser humano a cidade prioriza o mercado.
Assim foram se constituindo as periferias e favelas no Brasil. Aparentemente foram
os espaços sobrantes, sem valor de mercado pela ausência dos aparelhos urbanos
27
que
facilitariam a vida das pessoas. Essa lógica é tão perversa que, quando chegam os aparelhos
urbanos, os custos de vida no local inflacionam, impedindo uma parte das pessoas de
continuarem morando ali. Estas se deslocam para outros lugares, muitas vezes em
condições de vida o adversas ou piores em relação ao lugar que viviam. A existência da
periferia, das favelas e dos cortiços tem a ver com um processo de urbanização acelerado,
normalmente visto como entrelaçado à modernização. Entretanto, o processo avançou
privilegiando o mercado e reforçando o histórico de desigualdade marcante no Brasil.
Segundo Ermínia Maricato, urbanização/modernização é apenas para alguns, assim como
a cidadania e o direito
28
.
3 A PERIFERIA COMO LUGAR DE AUSÊNCIAS E PRESENÇAS
Na literatura urbana, o uso do termo periferia foi identificado com o termo ausência,
pois se refere às condições urbanas de marginalidade, subequipamento e subnormalidade.
Neste sentido, o uso da palavra periferia não se dá apenas para designar os espaços externos
à cidade em termos de distância, mas é também utilizada para determinar aqueles espaços
com características de desordem, degradação e baixa qualidade de vida urbana.
25 LIBÂNIO J.B., As lógicas da cidade: o impacto sobre a fé e sob o impacto da fé, p.34.
26 CASA VOGUE. Como surgiram as favelas no Brasil. Disponível em: <https://casavogue.globo.com/Arquitetura/Cidade/
noticia/2018/10/como-surgiram-favelas-no-brasil.html> Acesso em: 18/jun./2022.
27 Por aparelhos urbanos compreende-se as condições de infraestrutura que favorecem a vida dos cidadãos nos locais
onde moram: acesso à educação, áreas de lazer, tratamento de saúde, transporte público.
28 Cf. MARICATO, Ermínia. Urbanização brasileira: conhecer para resolver a cidade ilegal. In: CASTRIOTA, Leonardo
Basci (org.). Urbanização Brasileira – Redescobertas, p.78-96.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 90-106, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
REIS, Ari Annio dos; PEREIRA, Anderson
A miso da Igreja no Brasil junto às periferias: uma reflexão socioteogica
97
Contudo, um olhar menos profundo levaria a ver a periferia, pelas condições
históricas da sua constituição, como um lugar apenas de ausências ou carências. Existe
uma dialética que deve ser percebida nesse contexto. Na periferia, ausência e presença
andam juntas. A negligência dos poderes públicos em proporcionar condições de vida
digna aos habitantes da periferia, fator gerador das ausências ou carências, provoca outras
iniciativas. São as presenças que são erigidas como caminho de sobrevivência.
Esta “presença” consiste em busca de alternativas construídas individualmente ou
coletivamente, em vista da melhoria das condições de vida das pessoas. Ressaltamos que
esta percepção nem sempre é acolhida ou valorizada como alternativas viáveis, contudo
existem e têm se fortalecido. O Documento de Estudos 109, da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB), publicado em 2016, intitulado o solo urbano e a urgência da paz,
reconhece estas iniciativas, sobretudo no tocante à conquista da moradia, fundamental
para que se viva com dignidade em território urbano
29
.
Estas iniciativas e outras de origem popular se traduzem em uma forma de
participação política. Estão em sintonia com a reflexão do teólogo José Comblin sobre a
autonomia e participação. No caso, estes valores experimentados pelas populações da
periferia. Assim afirma este autor: “A participação na vida pública deve ser feita, em
primeiro lugar, em escala mais baixa, a da unidade de vizinhança, depois a nível de bairro,
subindo assim progressivamente para a cidade”
30
.
A formação para o exercício de atividades cooperativas tem ampliado este potencial,
porque imprime outras possibilidades para esta parcela da população. Cita-se, por
exemplo, cooperativas de habitação, as articulações em vista do acesso ao trabalho, creches
comunitárias, entre outras. Assim, as ausências ou carências que tenderiam a tornar mais
difícil a vida das pessoas é respondida por algumas iniciativas, aqui denominadas
“presenças”, e se efetivam pela capacidade de articulação da população periférica.
A ideia de ausência sustentou a necessidade de ressignificá-la como presença. A esta
posição acrescenta-se outro fator: a importância do lugar, o valor do contexto, não para
descobrir a relação entre a situação e as construções de um determinado espaço, mas
também com o propósito de buscar a identidade perdida no rápido processo de expansão.
A periferia como forma de presença também é o lugar da resistência. Resistir é uma
característica necessária aos pobres. O caminho é resistir ou sucumbir à invisibilidade
social. É costume no Brasil olhar os pobres como problema de segurança pública, jamais
como sujeitos de direitos e interlocutores em políticas públicas, com objetivo de superação
da miséria e pobreza. Nestas condições, o ato de viver para os moradores da periferia é um
desafio constante e, para tanto, é necessário resistir às tantas situações de ameaça à vida,
caracterizadas como vulnerabilidade social, fruto da grande desigualdade social:
desemprego, fome, miséria, violência, tráfico de drogas etc.
A Teologia, com a responsabilidade de responder a essas questões, também interpela a
humanidade em outra direção. O Papa Francisco, neste sentido, abre uma porta para perceber
que também em meio aos pobres das periferias sujeitos e interlocutores da missão. Exemplo
foi o desafio lançado aos participantes dos movimentos populares na Bolívia, em 2015:
Que posso fazer eu, recolhedor de papelão, catador de lixo, limpador, reciclador,
frente a tantos problemas, se mal ganho para comer? Que posso fazer eu, artesão,
vendedor ambulante, carregador, trabalhador irregular, se não tenho sequer
direitos laborais? Que posso fazer eu, camponesa, indígena, pescador que
dificilmente consigo resistir à propagação das grandes
corporações? Que posso
29 Cf. CNBB. O solo urbano e a urgência da paz, (Estudo 109).
30 COMBLIN, José. Teologia da cidade, p.184.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 90-106, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
REIS, Ari Annio dos; PEREIRA, Anderson
A miso da Igreja no Brasil junto às periferias: uma reflexão socioteogica
98
fazer eu, a partir da minha comunidade, do meu barraco, da minha povoação, da
minha favela, quando sou diariamente discriminado e marginalizado? Que pode
fazer aquele estudante, aquele jovem, aquele militante, aquele missionário que
atravessa as favelas e os paradeiros com o coração cheio de sonhos, mas quase
sem nenhuma solução para os seus problemas? Podem fazer muito. Vós, os mais
humildes, os explorados, os pobres e excluídos, podeis e fazeis muito. Atrevo-me
a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na
vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas criativas na busca
diária dos três “T” entendido? (trabalho, teto, terra), e também na vossa
participação como protagonistas nos grandes processos de mudança, mudanças
nacionais, mudanças regionais e mudanças mundiais. Não se acanhem!
31
.
As resistências surgem com maior ou menor grau de articulação e
institucionalização. São iniciativas importantes porque tornam a vida na periferia menos
pesada e ameaçada. Por exemplo, no campo da segurança, o vizinho se torna guardião da
casa do outro vizinho diante da possibilidade de roubos. Se as pessoas abastadas e com boa
renda têm sistemas de segurança sofisticados, os vizinhos solidariamente assumem esta
responsabilidade. Também é comum o “emprestar algo”, seja alimento, utensílio doméstico ou
de higiene pessoal para o outro que no momento não tem, com a promessa da devolução.
A resistência está ligada à resiliência, que significa a capacidade constante de
adaptação e refazer-se diante de situações adversas. Na periferia, teima-se em viver e para
tanto resiste-se a cada dia como um curso d’água que não para no primeiro obstáculo, mas,
contornando-o ou enfrentando-o, continua seu caminho. Resistir e refazer-se é preciso.
Aprender a reinventar-se!
Ademais, não podemos deixar de recordar outra forma de presença daqueles que
moram nas periferias e em outros espaços alternativos: a festa. Às vezes, pessoas marcadas
pela racionalidade instrumental, não compreendem o sentido da festa. Ela é necessária aos
pobres como um pilar da resistência. Faz-se festa com muito e com o pouco (feijoada,
galinhada, carreteiro e outros pratos “menos nobres”). O importante é o encontro e a
confraternização. É o “banquete” necessário para sorrir, beber, conversar, dançar e confraternizar
com os irmãos. É um canal de resistência que também permite certa leveza à vida.
Jean Vanier, em seu livro Comunidade: lugar do perdão e da festa, afirma que é nas coisas
ordinárias no dia a dia que o extraordinário acontece, que o amor é revelado. Ele escreve:
“Cozinhar e lavar o chão pode tornar-se um modo de manifestar amor aos outros. Se olhar o
trabalho material mais humilde deste modo, tudo se tornará dom e meio de comunhão, tudo
se tornará festa, pois é uma festa poder dar
32
”. A festa acontece nas pequenas coisas.
Tomando a expressão de Jean Vanier, é preciso ver as comunidades cristãs em
periferia como um “lugar de perdão e festa”, sabendo que “a Eucaristia é a festa
comunitária por excelência, é a celebração, pois nos faz reviver o mistério de Jesus que
sua vida por nós
33
”, levando em conta que nem toda a periferia consideraria a Eucaristia
como “a festa por excelência”. A festa para celebrar a vida, a fé, as alegrias, esperanças,
acontecimentos e conquistas da comunidade e onde sabemos pedir perdão. Desse modo, “a
comunidade torna-se o lugar de libertação e do crescimento
34
”.
A periferia, enquanto lugar teológico de ausências e presenças, com suas resistências
e alternativas, deve ser encarada como espaço onde os pobres, interlocutores privilegiados
da ação evangelizadora, precisam ser vistos e reconhecidos como tais.
31 PAPA FRANCISCO. Participação ao II encontro mundial dos movimentos populares (5-13 de julho de 2015). Disponível em:
<https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/july/documents/papa-francesco_20150709_bolivia-
movimenti-popolari.html>. Acesso em: 18/jun./2022.
32 VANIER, Jean. Comunidade lugar do perdão e da festa, p.345.
33 VANIER, Jean. Comunidade lugar do perdão e da festa, p.232.
34 VANIER, Jean. Comunidade lugar do perdão e da festa, p.45.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 90-106, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
REIS, Ari Annio dos; PEREIRA, Anderson
A miso da Igreja no Brasil junto às periferias: uma reflexão socioteogica
99
4 POR UMA IGREJA EM SAÍDA PARA AS PERIFERIAS
A Constituição Pastoral Gaudium et Spes brilhantemente assegurou: “as alegrias e as
esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles
que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de
Cristo” (GS 1). Por sua vez, a reflexão dos Bispos na Conferência de Aparecida, em 2007, assevera
que “a vida nova de Jesus Cristo atinge o ser humano inteiro e desenvolve em plenitude a existência
humana ‘em sua dimensão pessoal, familiar, social e cultural’” (DAp 236).
De fato, “a Igreja existe para evangelizar” (EN 14). Sua missão é estar junto às pessoas.
A atividade evangelizadora não conhece fronteiras, tampouco limites espaciais. Uma Igreja
autorreferencial que se preocupa somente em salvaguardar a si mesma está longe de cumprir
sua missão. Hoje, com o crescimento de megalópoles habitacionais, evangelizar no mundo
urbano tornou-se um grande desafio. Uma Pastoral Urbana que foca somente no centro do
espaço urbano é limitada no seu processo evangelizador. É preciso ir além, até às periferias.
Em muitos causou impacto o pedido do Papa Francisco, explicitado na Exortação
Evangelii Gaudium, para que a Igreja saísse da comodidade para evangelizar. Disse:
“saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo!” (EG 49). O encontro da
Igreja com o povo da periferia é uma oferta e também a possibilidade do enriquecimento
da Igreja enquanto discípula de Jesus Cristo. O ato de sair implica em encontrar a sua
essência evangelizadora. Lembremos aqui o pedido feito pelo mestre Jesus aos discípulos
quando os enviou em missão a não levarem nada que possa retardar ou atrapalhar o que é
prioritário em seu serviço (cf. Mt 10,7-15).
As periferias, apesar dos muros visíveis e invisíveis, estão inseridas no meio urbano
e devem ser reconhecidas como um lugar de anúncio do Evangelho. A Igreja em saída,
proposta pelo Papa Francisco, tem sua razão de ser no Deus-Trindade, que é fonte de amor
sempre em saída de Si para o outro: “Na Palavra de Deus, aparece constantemente este
dinamismo de ‘saída’, que Deus quer provocar nos crentes [...]. Naquele ‘ide’ de Jesus, estão
presentes os cenários e os desafios sempre novos da missão evangelizadora da Igreja, e
hoje todos somos chamados a esta nova ‘saída’ missionária” (EG 20).
A “Igreja em saída” pode tomar várias direções. Entendemos que a periferia seja uma
delas e hoje, pelo número de pessoas que ali se abrigam, é um território importante na
missão evangelizadora da Igreja. No encontro com a população de periferia faz-se
necessário relativizar algumas realidades que poderiam atrapalhar a missão. Nesse sentido,
faz-se mister pensarmos uma metodologia pastoral em consonância a uma Igreja que deve
sair para as periferias, a fim de reafirmar a sua essência evangelizadora.
A respeito dos métodos da ação pastoral, Agenor Brighenti afirma:
O método, como pedagogia em contexto, para ser um instrumento útil, precisa
sempre ser recriado segundo as condições do meio em que vai ser utilizado.
Insistimos em que métodos não se transplantam, mas criam e recriam. Ao
transplantá-lo, pomos o processo em função dele. Ao recriá-lo, estamos pondo-
o a serviço da ação evangelizadora, que tem nas pessoas suas protagonistas.
Quando não retrabalhado, o método cai sobre a ação como uma camisa de
força, tolhendo a originalidade e a criatividade. Ao ser trabalhado, torna-se um
instrumento canalizador das aspirações de toda uma comunidade de fé
35
.
Desse modo, a ação pastoral da Igreja em contexto urbano deve ser entendida dentro
de sua perspectiva teológica e metodológica. Assim, o compromisso de saída para
evangelizar compreenderá alguns critérios:
35 BRIGHENTI, Agenor. Reconstruindo a esperança: como planejar a ação da Igreja em tempos de mudança, p.102.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 90-106, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
REIS, Ari Annio dos; PEREIRA, Anderson
A miso da Igreja no Brasil junto às periferias: uma reflexão socioteogica
100
4.1 Conhecer a realidade da periferia
A realidade da periferia tem sido objeto de estudos das diferentes áreas do
conhecimento. Na perspectiva epistemológica é um tema relevante. É importante que a
Igreja se faça mais próxima desta realidade, inclusive dialogando com as diferentes áreas de
conhecimento que têm um compromisso ético de problematizar a periferia. Segundo
Tarcísio Loro, “do ponto de vista metodológico, o conhecimento da cidade não pode
dispensar o auxílio das ciências urbanas, antropológicas, sociológicas e teológicas, nem a
experiência acumulada do pastor junto ao povo”
36
. A proximidade com os pobres é salutar
para que a Igreja viva o seu compromisso evangelizador para com os mais necessitados.
Conhecer a realidade significa não somente adquirir conteúdo acadêmico. O
conhecimento deve ser basicamente vivencial. Proximidade desta realidade. Para tanto, é
necessário ali “armar a tenda ou o hospital de campanha”, no dizer do Papa Francisco, para
exercitar a troca de dons. Possivelmente o conhecimento da realidade da periferia vai
contribuir com a diminuição dos preconceitos ou leituras equivocadas, que normalmente
permeiam nossas concepções. É também a oportunidade de exercer com mais propriedade
o compromisso evangelizador a partir do compromisso de ser uma Igreja em saída (G 49).
É preciso gastar tempo:
A eficácia da pastoral urbana, necessária e urgente, não pode matar e sufocar a
graça de Deus, que vem e vai de graça. pode haver verdadeira revolução na
periferia, se houver contemplação, ação de graças, tempo “perdido” com os
outros em troca de nada, ou melhor, dado por amor aos outros. Temos que
aprender do povo, da religião popular, especialmente do povo negro, que não
há tempo se há festa
37
.
O Papa Francisco, no início de seu pontificado, se identificou como alguém “vindo
da periferia do mundo”. Isto é bastante significativo, pois se apresentar através da
expressão “periferia do mundo” ou “quase do fim do mundo”, mostra o deslocamento do
centro para a periferia, programa de seu ministério. Mostra alguém que conhece bem a
realidade da periferia. Em seu livro, com coautoria do rabino Abraham Skorka, intitulado
Sobre o céu e a terra, afirma: “No cristianismo, a atitude diante da pobreza e do pobre é,
essencialmente, de real compromisso. E acrescento algo mais: esse compromisso tem que
ser corpo a corpo
38
.
4.2 Fazer opção pela população da periferia
Optar significa escolher entre tantas possibilidades. É uma atitude de liberdade que se
traduz no compromisso pela escolha feita. A busca do conhecimento da realidade da periferia
já indica uma tendência, dentre outros possíveis caminhos. Trata-se de opção pelo fato de um
trabalho no meio urbano oferecer inúmeras possibilidades. Não se deve pensar como único
critério de trabalho da Pastoral Urbana marcar presença apenas no centro na cidade junto aos
abastados, negligenciando os excluídos da sociedade, que em sua maioria moram nas
periferias. É muito cômodo trabalhar apenas com os “incluídos”. Nesse contexto, Comblin
afirma que a Pastoral Urbana pode assumir uma postura passiva, se estabelecendo dentro das
estruturas pastorais já definidas e esperando que as pessoas venham ao seu encontro
39
.
36 LORO, Tarcísio Justino. Perspectivas para a pastoral urbana, p.112.
37 ALTEMEYER JR, Fernando. Pastoral da Periferia. Disponível em: <https://www.vidapastoral.com.br/artigos/temas-
pastorais/pastoral-da-periferia/>. Acesso em: 16/dez./2022.
38 BERGOGLIO, Jorge; SKORKA, Abraham. Sobre o céu e a terra, p.135.
39 COMBLIN, José. Pastoral urbana: o dinamismo na evangelização, p.18s.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 90-106, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
REIS, Ari Annio dos; PEREIRA, Anderson
A miso da Igreja no Brasil junto às periferias: uma reflexão socioteogica
101
No entanto, a fidelidade a Jesus Cristo implica em não olhar tanto para o centro, mas
para a margem, como afirmou o arcebispo de saudosa memória, Dom José Maria Pires:
“todavia, uma preocupação comum que parece emergir a cada passo da caminhada: é a
consciência de que a Igreja tem que anunciar um novo êxodo, uma saída do centro para as
margens e, por coerência, ela própria tem que fazer esse movimento”
40
. Tal opção
encontra referência na ação de Deus que ouviu o clamor do seu povo e desceu para libertá-
lo (cf. Ex 3,7) e em Jesus Cristo, aquele que o se apegou à condição divina, mas se fez
homem e servo para nos salvar (cf. Fl 2,6). Como afirma Leonardo Bo, as questões da
periferia “representavam e continuam representando ainda um imenso desafio à missão
evangelizadora das Igrejas”
41
.
A opção pela periferia como lugar do anúncio do Evangelho e do testemunho de
uma solidária ajuda a Igreja a dar concretude à opção preferencial pelos pobres,
intrínseca à cristã, segundo o Papa Bento XVI
42
. Esta opção, apesar de alguns reveses,
tem um vasto lastro de sustentação teórica, sobretudo na reflexão teológica latino-
americana e caribenha. Cabe ganhar corpo na ação eclesial fazendo verdadeiramente práxis.
4.3 Ver a periferia como lugar teológico e pastoral
O conhecimento da periferia, de acento metodológico, é sustentado pela
compreensão de que a periferia é um lugar teológico, o lugar da revelação de Deus. Deus,
que habita a cidade nas suas alegrias, desejos e esperanças, como também em meio às suas
dores e sofrimentos (DAp 513). A realidade urbana não está rompida com Deus. Ele está ali
disposto ao diálogo e a uma relação de amor. É necessário contemplar o Deus da vida no
meio urbano, como também na periferia, e não deixar de anunciar o Evangelho de Jesus
Cristo neste espaço de vida. É lugar teológico pela experiência de Deus que é possível ali
fazer. Certamente uma experiência transformadora e de forte acento na conversão.
OPapa Franciscodesde o primeiro momento como sucessor de Pedro, ressalta
a importância de irmos ao encontro das periferias físicas e existências, tal
missão é algo intrínseco ao cristianismo e como tal deve ser vivido. Por meio
doMistério da Encarnação, o Verbo se fez carne, e habitou entre nós (cf. João
1,14) em uma realidade periférica, longe do luxo e da ostentação palaciana.
Transitar pelas periferias faz parte da tradição da Igreja desde as suas origens,
como verificamos nos tempos da igreja primitiva quando a sua sobrevivência
esteve ligada diretamente à clandestinidade, considerando a perseguição
estatalnos primeiros séculos da Igreja
43
.
É também lugar pastoral pelo compromisso de marcar presença solidária junto com a
população periférica, justamente aqueles muitas vezes invisíveis à sociedade, ou
considerados descartáveis em um mundo marcado pela espiritualidade neoliberal (EG 53).
Para Comblin, “em lugar de pensar na paróquia, de enxergar a paróquia, de buscar soluções
para a paróquia, é preciso conhecer, enxergar, estudar, penetrar a própria cidade e os seus
habitantes”
44
. É um processo árduo e difícil, que exigirá uma série de desconstruções
teóricas e práticas. Entretanto, é um processo necessário. Os templos asseados e bem
ventilados das áreas abastadas continuam exercendo grande atrativo. Gasta-se muita energia
40 PIRES, Dom José Maria. Do centro para a margem, p.11.
41 BOFF, Leonardo; BOFF, Clodovis. Como fazer Teologia da Libertação, p.113.
42 BENTO XVI, Papa. Discurso inaugural da Conferência de Aparecida.
43 INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS. Ir ao encontro das periferias, um desafio da Igreja na contemporaneidade.
Disponível em: <https://www.ihu.unisinos.br/categorias/595478-ir-ao-encontro-das-periferias-um-desafio-da-
igreja-na-contemporaneidade>. Acesso em 17/dez./2022.
44 COMBLIN, José. Pastoral urbana: o dinamismo na evangelização, p.7.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 90-106, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
REIS, Ari Annio dos; PEREIRA, Anderson
A miso da Igreja no Brasil junto às periferias: uma reflexão socioteogica
102
no sustento e cuidado desses espaços exercitando um modo de evangelização centrípeto
.
Gasta-se tempo e energia também em atividades que muito tempo deixaram de ser
evangelizadoras, mas de manutenção de um statu quo rompido com os valores do Reino.
Urge a ousadia de dar um passo a mais e buscar metodologias de proximidade
evangelizadora com as áreas periféricas. Como o centro das atividades é a Paróquia, é
possível que este processo extrapole o âmbito paroquial e exija uma articulação mais ampla
em termos de formação metodológica para marcar presença nos espaços de periferia sem
desconhecer que ali já existe muita ação articulada.
4.4Consciência do papel evangelizador
O foco da ação eclesial na periferia é evangelizar. “A Igreja existe para
evangelizar” (EN 14). Ao fazer isso sustentará a fidelidade a Jesus Cristo, tradição desde os
primeiros cristãos. Em resposta ao Sínodo para a Evangelização (1974), o Papa Paulo VI
publicou a Exortação Evangelii Nuntiandi, sobre a Evangelização no mundo
contemporâneo. Na introdução afirma: “O empenho em anunciar o Evangelho aos homens
do nosso tempo, animados pela esperança, mas ao mesmo tempo torturados muitas vezes
pelo medo e pela angústia, é sem dúvida alguma um serviço prestado à comunidade dos
cristãos, bem como a toda a humanidade” (EN 1).
Sintonizada com a opção fundante de estar na periferia, a tarefa primordial da Igreja
nesse lugar é anunciar o Evangelho, como afirma Paulo VI: “Evangelizar, para a Igreja, é
levar a Boa Nova a todas as parcelas da humanidade, em qualquer meio e latitude, e pelo
seu influxo transformá-las a partir de dentro e tornar nova a própria humanidade: ‘Eis que
faço novas todas as coisas’” (EN 18). É uma tarefa da qual a Igreja não pode abdicar e, ao
fazer isso, está dando para aquelas pessoas algo valioso, que é sua própria essência.
Responderá ao desafio de superar o abandono religioso, ao qual muitas vezes os pobres são
submetidos, como denuncia o Papa Francisco:
Dado que esta Exortação se dirige aos membros da Igreja Católica, desejo
afirmar, com mágoa, que a pior discriminação que sofrem os pobres é a falta de
cuidado espiritual. A imensa maioria dos pobres possui uma especial abertura à
fé; tem necessidade de Deus e não podemos deixar de lhe oferecer a sua
amizade, a sua bênção, a sua Palavra, a celebração dos Sacramentos e a proposta
dum caminho de crescimento e amadurecimento na fé. A opção preferencial
pelos pobres deve traduzir-se, principalmente, numa solicitude religiosa
privilegiada e prioritária (EG 200).
A tarefa da Igreja é também “fazer-se Boa Nova”, como fez Jesus diante dos pobres
da Palestina. Seus ensinamentos e atitudes causavam uma grata surpresa àquela gente
sofrida, a ponto de exclamarem: “Ele tem feito bem todas as coisas” (Mc 7,31), ou então,
“Deus visitou o seu povo” (Lc 6,15). A presença da Igreja na periferia, com o compromisso
evangelizador, pode ser uma Boa Notícia” para aquela população, pelas consequências
dessa atitude certamente alvissareiras para eles e para a própria Igreja.
4.5 Assumir prioridades na missão evangelizadora
A Evangelização, a partir do que é a sua essência, abre para várias dimensões. Na
periferia convém ter o cuidado sobre o que é prioritário. Leva-se em conta o pedido de
Jesus aos discípulos, a simplicidade das pombas e prudência das serpentes (Mt 10,16). A
partir daí decorrem algumas atitudes, as quais descrevemos: pedagogia da presença;
capacidade de escuta mais do que explicitar pontos de vista; marcar presença nos
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 90-106, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
REIS, Ari Annio dos; PEREIRA, Anderson
A miso da Igreja no Brasil junto às periferias: uma reflexão socioteogica
103
momentos marcantes do lugar; inspirar confiança o para tirar proveito, mas
verdadeiramente para ajudar e ser referência do bem para os irmãos ali presentes.
As Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (2019-2023)
assumiram como prioridade o desafio de “evangelizar no Brasil cada vez mais urbano, pelo
anúncio da Palavra de Deus, formando discípulos e discípulas de Jesus Cristo, em
Comunidades Eclesiais Missionárias, à luz da evangélica opção preferencial pelos pobres,
cuidando da Casa Comum e testemunhando o Reino de Deus rumo à plenitude”
45.
A
prioridade, portanto, é evangelizar no Brasil cada vez mais urbano. Destarte, isto significa
que a Evangelização nas cidades deve assumir também como prioridade o cuidado com a
vida na periferia.
A Conferência de Aparecida (2007) recomendou uma nova pastoral urbana, que
ofereça atenção especial ao mundo do sofrimento urbano, sobretudo com os habitantes das
novas periferias. Recomendou, ainda, “viva presença da Igreja, por meio de novas
Paróquias e Capelas, Comunidades cristãs e Centros de Pastoral, nas novas concentrações
humanas que crescem aceleradamente nas periferias urbanas das grandes cidades, devido
às migrações internas e situações de exclusão”
46
.
4.6 Compreender que evangelizar é também servir
O Papa Francisco afirma que “Deus quer servir-se de nós para chegar cada vez mais
perto do seu povo amado” (EG 268). A missão evangelizadora tem profundamente uma
missão de diaconia, de serviço. O Pontífice, na Missa de envio da Jornada Mundial da
Juventude Rio-2013, resumiu em três palavras o método pastoral do verdadeiro discípulo
missionário: “ide, sem medo, para servir”. Afirma: “Para onde Jesus nos manda? Não
fronteiras, não limites: envia-nos para todas as pessoas. O Evangelho é para todos, e
não apenas para alguns. Não é apenas para aqueles que parecem a nós mais próximos, mais
abertos, mais acolhedores. É para todas as pessoas”
47
. Portanto, o ato de evangelizar
promove a cultura do encontro com todas as pessoas.
No segundo elemento, Papa Francisco afirma: “Não tenham medo! Quando vamos
anunciar Cristo, Ele mesmo vai à nossa frente e nos guia”
48
. Aqui reside a certeza de que o
Senhor vai à nossa frente e quando chegarmos lá, Ele estava presente no meio do povo,
em meio às suas dores e alegrias. Não devemos ter medo de percorrer todo tipo de
periferias, geográficas e existenciais. E continua em outro discurso:
Por isso, gosto de dizer que a posição do discípulo missionário não é uma
posição de centro, mas de periferias: vive em tensão para as periferias...
incluindo as da eternidade no encontro com Jesus Cristo. No anúncio
evangélico, falar de “periferias existenciais” descentraliza e, habitualmente,
temos medo de sair do centro. O discípulo-missionário é um “descentrado”: o
centro é Jesus Cristo, que convoca e envia. O discípulo é enviado para as
periferias existenciais
49
.
45 CNBB. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2019-2023.
46 DAp 517, letra J; K. O número 518 do Documento oferece ricas pistas para os agentes de pastoral desenvolvam seu
trabalho perante os habitantes das periferias.
47 FRANCISCO, Papa. Santa Missa para a XXVIII Jornada Mundial da Juventude. Disponível em: <https://
www.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2013/documents/papa-francesco_20130728_celebrazione-xxviii-
gmg.html>. Acesso em 20/jun./2022.
48 Idem.
49 FRANCISCO, Papa. Discurso aos Bispos responsáveis do CELAM na Jornada Mundial da Juventude. Disponível em:
<https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2013/july/documents/papa-francesco_20130728_gmg-
celam-rio.html>. Acesso em 20/jun./2022.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 90-106, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
REIS, Ari Annio dos; PEREIRA, Anderson
A miso da Igreja no Brasil junto às periferias: uma reflexão socioteogica
104
A respeito das periferias existenciais, o Papa Francisco afirma que, muitas vezes,
“estão frequentemente cheias de solidão, tristeza, feridas interiores e perda do gosto pela
vida”
50
. O Papa Francisco, desde a primeira hora de seu pontificado, seja pela escolha do
nome ou em seus discursos, ou ainda em sua primeira Exortação, deixou claro que
desejava “uma Igreja pobre para os pobres” (EG 198). “Estes [pobres] têm muito para nos
ensinar. Além de participar do sensus fidei, nas suas próprias dores conhecem Cristo
sofredor. É necessário que todos nos deixemos evangelizar por eles” (EG 198). E não tem
medo de afirmar: “A Igreja não evangeliza, se não se deixa continuamente
evangelizar” (EG 174) pelos pobres.
Em relação ao terceiro elemento para servir, Francisco destacou: “evangelizar
significa testemunhar pessoalmente o amor de Deus, significa superar os nossos egoísmos,
significa servir, inclinando-nos para lavar os pés dos nossos irmãos, tal como fez Jesus”
51
. E
conclui: “Três palavras: Ide, sem medo, para servir. Seguindo estas três palavras, vocês
experimentarão que quem evangeliza é evangelizado, quem transmite a alegria da fé,
recebe mais alegria”
52
.
O Papa também convidou a decididamente pensar a pastoral a partir da periferia,
daqueles que estão mais afastados. Sobre esta necessidade de aproximar-se e apaixonar-se
pela missão nas periferias, Francisco pede: “É nas favelas, nas povoações pobres, nas vilas
onde é preciso ir buscar e servir a Cristo. Devemos ir a eles como o sacerdote se aproxima
do altar: com alegria
53
. Portanto, sem medo, é preciso ir aàs periferias, onde as pessoas
“têm sede de Deus”, como ele afirmou. Como afirma Leonardo Bo, “é preferível um ateu
ético que um cristão indiferente diante do sofredores dasperiferias”
54.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
À guisa de conclusão, algumas considerações são necessárias. A ação missionária é o
paradigma de toda a obra da Igreja. Ela é o que guia a obra da Igreja. “Evangelizar é tornar
o Reino de Deus presente no mundo” (EG 176). O impulso que leva à missão leva também
à prática da caridade. A Igreja é chamada a ser mais missionária, a cumprir o seu papel
missionário na sociedade. Nunca se ouviu falar tanto de missão como atualmente.
Devemos tornar isto uma realidade viva. A capacidade de estar com o povo, com todos,
escutando e partilhando a vida, deve ser luz para a missão.
Aquela que manifestamos deve refletir na vida: O Evangelho tem destinação
universal. A missão na periferia é descobrir o Deus que já está lá presente. É preciso cuidar
também das fragilidades dos moradores das periferias: os sem abrigo, os fragilizados, os
dependentes de drogas, os refugiados, povos indígenas, idosos. Se a Igreja é católica, ali
será o lugar onde todos são acolhidos. É preciso cuidar também dos afastados, isto é,
cativar os grupos sociais dos quais muitas vezes a Igreja se afasta. É preciso que todos os
ambientes sejam evangelizados.
A cultura do encontro com a periferia é uma experiência que nos desinstala, que nos
transforma, que nos obriga muitas vezes a fazermos coisas que não queremos fazer, que
50 FRANCISCO, Papa. As periferias existenciais estão repletas de solidão. Disponível em: < https://pt.aleteia.org/
2021/10/14/papa-francisco-as-periferias-existenciais-estao-repletas-de-solidao/>. Acesso em 17/dez./2022.
51 FRANCISCO, Papa. Santa Missa para a XXVIII Jornada Mundial da Juventude.
52 FRANCISCO, Papa. Santa Missa para a XXVIII Jornada Mundial da Juventude.
53 FRANCISCO, Papa. Santa Missa com os Bispos da JMJ, sacerdotes, religiosos e seminaristas. Disponível em:<https://
www.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2013/documents/papa-francesco_20130727_gmg-omelia-rio-
clero.html>. Acesso em 20/jun./2022.
54 Segundo Bo, essa frase não é de autoria sua e foi repetida várias vezes pelo Papa Francisco. cf. BOFF, Leonardo.
Disponível em: <https://leonardobo.org/2021/07/30/e-preferivel-um-ateu-etico-que-um-cristao-indiferente-
diante-do-sofredores-das-periferias/>. Acesso em 17/dez./2022.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 90-106, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
REIS, Ari Annio dos; PEREIRA, Anderson
A miso da Igreja no Brasil junto às periferias: uma reflexão socioteogica
105
nos tira de nossa zona de conforto. As periferias, na maioria das vezes, são marcadas por
situações de incertezas, de inseguranças, de angústias. Entretanto, as periferias o são
obstáculos para Deus, mas as transforma em lugares de anúncio do Evangelho. Todo
instrumento frágil torna-se eficaz nas mãos de Deus. Na fragilidade e “marginalidade” das
periferias Deus as transforma em espaços missionários, de alegria, de esperança em meio à
dor, de resistência em meio às dificuldades.
Passaram-se os séculos e a Igreja permanece desafiada a sair do lugar comum em
nome da causa do Evangelho. A itinerância de Jesus por toda a Palestina para anunciar o
Reino (Mt 4,23), visibilizado como sinal no ensino e cura, é grande referência eclesial. A
Igreja deve ser como um hospital de campanha, no dizer do Papa Francisco, andante para
sarar as feridas e curar as pessoas. É caminhante para fazer o bem. É uma Igreja em saída
para servir à humanidade. A saída para cuidar da humanidade ferida e machucada
permanece como grande desafio, mesmo que a tentação de ficar na sacristia ou dialogando
com “os de casa” seja constante.
Sobre a missão da Igreja junto às periferias, tenhamos presente a admoestação do
Papa Francisco: “saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Prefiro uma
Igreja acidentada e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo
fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (EG 49). A população
que mora nas periferias se constitui hoje nos interlocutores necessários à Igreja, se ela
busca ser fiel ao mandato missionário deixado por Jesus Cristo.
O parágrafo 49 da Evangelii Gaudium sustenta esta preocupação: se alguma coisa nos
deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é o fato de haver tantos irmãos
nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo, sem uma
comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida.
REFERÊNCIAS BIBLI OGRÁFICAS
ALTEMEYER JR, Fernando. Pastoral da Periferia. Disponível em:
<https://www.vidapastoral.com.br/artigos/temas-pastorais/pastoral-da-periferia/>. Acesso em: 16/
dez./2022.
BERGOGLIO, Jorge; SKORKA, Abraham. Sobre o céu e a terra. São Paulo: Paralela, 2013.
BOFF, Leonardo; BOFF, Clodovis. Como fazer Teologia da Libertação. Petrópolis: Vozes, 2001.
BRIGHENTI, Agenor. Reconstruindo a esperança: como planejar a ação da Igreja em tempos de
mudança. 3.Ed. São Paulo: Paulus, 2000.
CASA VOGUE. Como surgiram as favelas no Brasil. Disponível em: <https://casavogue.globo.com/
Arquitetura/Cidade/noticia/2018/10/como-surgiram-favelas-no-brasil.html> Acesso em: 18/
jun./2022.
CELAM. Documento de Aparecida. Brasília: Ed. CNBB, 2007.
COMPÊNDIO DO CONCÍLIO VATICANO II. Constituições, Decretos, Declarações. 29.Ed. Petrópolis:
Vozes, 2000.
COMBLIN, José. Pastoral urbana: o dinamismo na evangelização. Petrópolis: Vozes, 1999.
COMBLIN, José. Teologia da cidade. São Paulo: Paulinas, 1991.
CNBB. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2019-2023. Brasília: Ed. CNBB, 2019.
CNBB. O solo urbano e a urgência da paz. Brasília: Ed. CNBB, 2016, (Doc. Estudos 109).
DICIONÁRIO Michaelis de Língua Portuguesa. Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/>
Acesso em: 18/jun./2022.
DOMINGUES, Álvaro. (Sub)úrbios e (sub)urbanos - o mal-estar da periferia ou a mistificação dos
conceitos? Revista da Faculdade de Letras - Geografia. Porto, I Série, v. X/XI, p.5-18, 1994/5.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 90-106, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
REIS, Ari Annio dos; PEREIRA, Anderson
A miso da Igreja no Brasil junto às periferias: uma reflexão socioteogica
106
FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulus, 2013.
FRANCISCO, Papa. Participação ao II encontro mundial dos movimentos populares (5-13 de
julho de
2015). Disponível em: <https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/july/
documents/papa-francesco_20150709_bolivia-movimenti-popolari.html>. Acesso em: 18/jun./2022.
FRANCISCO, Papa. Santa Missa para a XXVIII Jornada Mundial da Juventude. Disponível em:
<https://www.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2013/documents/papa-
francesco_20130728_celebrazione-xxviii-gmg.html>. Acesso em 20/jun./2022.
FRANCISCO, Papa. Santa Missa com os Bispos da JMJ, sacerdotes, religiosos e seminaristas. Disponível
em: <https://www.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2013/documents/papa-
francesco_20130727_gmg-omelia-rio-clero.html>. Acesso em 20/jun./2022.
FRANCISCO, Papa. As periferias existenciais estão repletas de solidão. Disponível em: < https://
pt.aleteia.org/2021/10/14/papa-francisco-as-periferias-existenciais-estao-repletas-de-solidao/>.
Acesso em 17/dez./2022.
GUIMARÃES, Leandro da Silva. O modelo de urbanização brasileiro, notas gerais. GeoTextos,
Salvador, vol.12, n.1, p.13-35, julho 2016.
JOHNSON, Allan G. Dicionário de Sociologia: guia prático da linguagem sociológica. Rio de Janeiro:
Zahar, 1997.
LORO, Tarcísio Justino. Perspectivas para a pastoral urbana. Revista de Cultura Teológica, São Paulo,
v.14, n.55, p.109-133, abr./jun. 2006.
LIBÂNIO, João Batista. As lógicas da cidade: o impacto sobre a fé e sob o impacto da fé. São Paulo:
Loyola, 2001.
MARICATO, Ermínia. Urbanização brasileira: conhecer para resolver a cidade ilegal. In:
CASTRIOTA, Leonardo Basci (org.). Urbanização Brasileira – Redescobertas. Belo Horizonte: Ed. C/
Arte, 2003, p.78-96.
PIRES, Dom José Maria. Do centro para a margem. Petrópolis: Vozes, 1980.
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção. 2.Ed. São Paulo: Hucitec,
1997.
SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: HUCITEC, 1993.
SANTOS, Milton. A urbanização desigual. A especificidade do fenômeno urbano em países
subdesenvolvidos. 3. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010.
SANTOS, Milton. O espaço dividido, os dois circuitos da economia urbana nos países desenvolvidos. Rio de
Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1979.
SEIXAS, João. A cidade na encruzilhada. Repensar a cidade e a sua política. Porto: Afrontamento, 2013.
SGARIONI, Mariana; TONON, Rafael. O que é periferia? Entrevista com Raquel Rolnik. Disponível
em: <https://raquelrolnik.wordpress.com/2010/06/14/o-que-e-periferia-entrevista-para-a-
edicao-de-junho-da-revista-continuum-itau-cultural/> Acesso em: 18/jun./2022.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 90-106, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
REIS, Ari Annio dos; PEREIRA, Anderson
A miso da Igreja no Brasil junto às periferias: uma reflexão socioteogica