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fazer eu, a partir da minha comunidade, do meu barraco, da minha povoação, da
minha favela, quando sou diariamente discriminado e marginalizado? Que pode
fazer aquele estudante, aquele jovem, aquele militante, aquele missionário que
atravessa as favelas e os paradeiros com o coração cheio de sonhos, mas quase
sem nenhuma solução para os seus problemas? Podem fazer muito. Vós, os mais
humildes, os explorados, os pobres e excluídos, podeis e fazeis muito. Atrevo-me
a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na
vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas criativas na busca
diária dos três “T” – entendido? – (trabalho, teto, terra), e também na vossa
participação como protagonistas nos grandes processos de mudança, mudanças
nacionais, mudanças regionais e mudanças mundiais. Não se acanhem!
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.
As resistências surgem com maior ou menor grau de articulação e
institucionalização. São iniciativas importantes porque tornam a vida na periferia menos
pesada e ameaçada. Por exemplo, no campo da segurança, o vizinho se torna guardião da
casa do outro vizinho diante da possibilidade de roubos. Se as pessoas abastadas e com boa
renda têm sistemas de segurança sofisticados, os vizinhos solidariamente assumem esta
responsabilidade. Também é comum o “emprestar algo”, seja alimento, utensílio doméstico ou
de higiene pessoal para o outro que no momento não tem, com a promessa da devolução.
A resistência está ligada à resiliência, que significa a capacidade constante de
adaptação e refazer-se diante de situações adversas. Na periferia, teima-se em viver e para
tanto resiste-se a cada dia como um curso d’água que não para no primeiro obstáculo, mas,
contornando-o ou enfrentando-o, continua seu caminho. Resistir e refazer-se é preciso.
Aprender a reinventar-se!
Ademais, não podemos deixar de recordar outra forma de presença daqueles que
moram nas periferias e em outros espaços alternativos: a festa. Às vezes, pessoas marcadas
pela racionalidade instrumental, não compreendem o sentido da festa. Ela é necessária aos
pobres como um pilar da resistência. Faz-se festa com muito e com o pouco (feijoada,
galinhada, carreteiro e outros pratos “menos nobres”). O importante é o encontro e a
confraternização. É o “banquete” necessário para sorrir, beber, conversar, dançar e confraternizar
com os irmãos. É um canal de resistência que também permite certa leveza à vida.
Jean Vanier, em seu livro Comunidade: lugar do perdão e da festa, afirma que é nas coisas
ordinárias no dia a dia que o extraordinário acontece, que o amor é revelado. Ele escreve:
“Cozinhar e lavar o chão pode tornar-se um modo de manifestar amor aos outros. Se olhar o
trabalho material mais humilde deste modo, tudo se tornará dom e meio de comunhão, tudo
se tornará festa, pois é uma festa poder dar
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”. A festa acontece nas pequenas coisas.
Tomando a expressão de Jean Vanier, é preciso ver as comunidades cristãs em
periferia como um “lugar de perdão e festa”, sabendo que “a Eucaristia é a festa
comunitária por excelência, é a celebração, pois nos faz reviver o mistério de Jesus que dá
sua vida por nós
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”, levando em conta que nem toda a periferia consideraria a Eucaristia
como “a festa por excelência”. A festa para celebrar a vida, a fé, as alegrias, esperanças,
acontecimentos e conquistas da comunidade e onde sabemos pedir perdão. Desse modo, “a
comunidade torna-se o lugar de libertação e do crescimento
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”.
A periferia, enquanto lugar teológico de ausências e presenças, com suas resistências
e alternativas, deve ser encarada como espaço onde os pobres, interlocutores privilegiados
da ação evangelizadora, precisam ser vistos e reconhecidos como tais.
31 PAPA FRANCISCO. Participação ao II encontro mundial dos movimentos populares (5-13 de julho de 2015). Disponível em:
<https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/july/documents/papa-francesco_20150709_bolivia-
movimenti-popolari.html>. Acesso em: 18/jun./2022.
32 VANIER, Jean. Comunidade lugar do perdão e da festa, p.345.
33 VANIER, Jean. Comunidade lugar do perdão e da festa, p.232.
34 VANIER, Jean. Comunidade lugar do perdão e da festa, p.45.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 90-106, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
REIS, Ari Antônio dos; PEREIRA, Anderson
A missão da Igreja no Brasil junto às periferias: uma reflexão socioteológica