CANTO E MÚSICA LITÚRGICA
como cultivar uma espiritualidade unificadora
em meio aos desafios da pandemia?
Ms. Eurivaldo S. Ferreira*
Frei Telles Ramon, O. de M.**
DOI: https://doi.org/10.52451/teopraxis.v37i129.14
Recebido: 03 de março de 2019 | Aprovado: 09 de junho de 2019
Resumo:
Em meio à pandemia aumentaram os mecanismos de transmissão
para as celebrações paroquiais e diocesanas. A porção do povo de Deus saiu
do caráter territorial jurídico caracterizado pela Igreja Particular e passou
para o além-fronteiras da realidade cibernética. Os elementos simbólico-
rituais da celebração litúrgica deixam de ter sua relação de proximidade
devido ao distanciamento social. As assembleias, sem poderem participar
ativamente dos ritos através dos sentidos ficaram privadas do paladar, do
olfato, do olhar, do escutar e do tato, percepções reais que aguçam à
participação em tempos normais. As chamadas telas dos aparelhos eletrônicos
dividem o olhar com outros aplicativos seja de chamadas, entretenimento e
informação ou comerciais. Em meio a tudo isso, como garantir que os
elementos simbólico-rituais cumpram sua função significativa de agregar às
liturgias seu poder revelador mistérico? Como desvelar o segredo dos ritos
por meio das telas sem a participação ativa das assembleias? A música
litúrgica se coloca como um desses elementos altamente simbólicos e
* Mestre em Teologia, com concentração em Liturgia, pela PUC/SP. Especialista
em Liturgia pelo IFITEG-GO. Graduado em Teologia pela PUC/SP. Músico.
Membro da Rede Celebra de Animação Litúrgica. Membro do Corpo Eclesial de
Compositores da CNBB. Membro do Universa Laus. Agente da Pastoral
Litúrgica na Paróquia Santo Antônio do Bairro do Limão, Arquidiocese de São
Paulo. Email: euriferreira@gmail.com
** É presbítero da Ordem de Nossa Senhora das Mercês, com atuação da Diocese de
Santo André/SP. Membro do Corpo Eclesial de Compositores da CNBB. É
redator do Subsídio litúrgico-catequético da CNBB Igreja em Oração.
Produziu as gravações dos álbuns: Hino da CF 2018, CF 2019 e CF 2020 e
Cantos quaresmais. Pela Ed. Paulus gravou os seguintes álbuns: Chamaste-me,
Senhor, Cristo, Clarão do Pai, O Mistério em Canto, Povo de Deus, povo
sacerdotal e Ao Coração de Cristo. Email: freitellesramon@msn.com
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reveladores dos mistérios da fé. Ela ajuda a comunidade a vivenciar as ações
rituais, sendo o próprio rito ou acompanhando as ações rituais. Nesse nosso
artigo fazemos alguns questionamentos sobre a produção, a execução e os
embates do campo musical que trouxeram a pandemia e as celebrações
virtuais. Como nenhum setor estava preparado para isso, a intenção não é
apontar autorias ou até mesmo provocar a polêmica, mas sim elucidar e
retomar alguns pontos conquistados após o Concílio Vaticano II e que
podem ser revistos e colocados em prática à medida em que o que está em
jogo é a participação ativa, plena, consciente, frutuosa, interna e externa do
povo de Deus através das celebrações litúrgicas.
Palavras-chave:
Liturgia. Música litúrgica. Assembleias. Espiritualidade.
Pandemia.
Introdução
A liturgia entendida e vivida como fonte de espiritualidade
foi uma das grandes e preciosas redescobertas do Concílio
Vaticano II. A Constituição Conciliar
Sacrosanctum Concilium
(SC) nos recorda a identidade original da Sagrada Liturgia: Ela
é a primeira e necessária fonte onde os fiéis hão de beber o
espírito genuinamente cristão (SC 14).
Ao participarmos da liturgia, nos é dada a oportunidade de
aderir e interiorizar o jeito de ser de Jesus Cristo que, pela ação
do Espírito Santo, forma em nós um homem novo, uma mulher
nova, pela força pascal de Jesus e nos transforma integralmente,
seja na nossa realidade pessoal e social.
Com essa evolução e redescoberta, ou seja, volta às
origens, a liturgia deixa de lado aquele arcabouço rígido e
pesado que decorre de uma compreensão ritualística e formal e
passa para uma assimilação e experiência vital da liturgia como
caminho mistagógico - uma porta de entrada eficaz para se
adentrar no Mistério de Cristo, o qual realiza no ser humano a
transformação pascal, que nos faz encontrar nossa real
identidade em Cristo.
Dentre as ações rituais, sinais sensíveis, palavras e gestos,
FERREIRA, Eurivaldo S.; RAMON, Telles.
Canto e Música Litúrgica
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Revista Teopráxis, Passo Fundo, vol.37, n.129, Jul./Dez./2020, ISSN: 2763-5201
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destacamos a força do canto e da música na liturgia. A música
litúrgica é aquela que, com sua letra (poesia) e melodia, cumpre
o papel de ser parte integrante da ação litúrgica, ou sendo o
próprio rito, ou acompanhando a ação ritual. Além disso, o
canto e a música litúrgica devem ser a expressão da fé de uma
comunidade, pois se trata de viver a experiência de se entrar no
mistério pascal quando se canta.
1 Da música de igreja à música litúrgica
Reconhece-se uma música litúrgica por sua natureza ritual.
Não basta apenas que o texto diga palavras religiosas ou de
cunho sagrado. A esta música nós chamamos de música
religiosa, mas não está apta para servir a liturgia. Recorremos,
então, à história para podermos identificar a evolução da música
que adentrou aos templos até chegarmos no conceito da música
que habitualmente empregamos hoje.
A partir de estudos acadêmicos é possível verificar e aprofundar
a classificação da música que serviu aos cultos litúrgicos durante
um período considerável da história da Igreja. E com a reforma
protestante (séc. XVI) todos os cantos passariam então a ser
chamados de música de Igreja. Tratava-se então de
compreender que se falava da música destinada ao culto, mas
com uma percepção bem limitada, o que excluía, por sua vez, a
música herdada das comunidades judaico-cristãs, por exemplo.
Já a música sacra, denominação mais comum para a música
das igrejas cristãs, além de simbolizar uma característica de
música, foi a que mais concorreu para o serviço litúrgico.
Trata-se de uma música que foi composta para servir a liturgia
com adaptações ou adequações que, por sua natureza, teve
origem na música erudita. Mas a mesma música sacra que servia
às ações litúrgicas era também objeto de comemorações
públicas ou privadas, externas às ações rituais cristãs, apreciadas
até hoje em teatros, concertos e outras ocasiões.
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É a partir do Concílio Vaticano II que entre os católicos se
adota o termo música pastoral, com o intuito de identificar a
música aliada à função pastoral das comunidades locais. A
intenção é que esta música seja um ponto de ligação entre as
diversas atividades da Igreja e sua diaconia. Mas pastoral
também é um termo geral, o que não especifica muito a
linguagem musical que se deseja para a música ritual.
Como alternativa à música pastoral estudos pós-conciliares
adotaram a expressão música ritual para a música propriamente
que se relaciona com os ritos e as ações litúrgicas. Um grupo
internacional de estudos ligados à música da Igreja pós-
conciliar chamado Universa Laus designa esta música como
sendo uma música ritual cristã, pois denomina o que se faz nos
ritos, já que a eles está ligada.
Um termo também bastante ocorrente é música litúrgica
ou música ritual, o que possibilita alargar a compreensão por
tratar da música de culto da tradição judaico-cristã. Esta música
tem ênfase no rito, nas palavras, nas ações, no espaço físico e na
melodia em si. Portanto, é um termo mais adequado e
apropriado para a música do culto cristão. É a partir dessa
terminologia que ampliamos nossa discussão.
É bom também lembrar que todas as religiões possuem
músicas que estão ligadas às suas ações rituais e que diferem da
música de outros ambientes não religiosos. Mas a música ritual
não é propriedade apenas das religiões. Os povos indígenas, por
exemplo, possuem um repertório imenso de música ritual, e
essas músicas nem sempre estão ligadas às formas de celebrações
religiosas, mas sim ao contexto cultural e do ambiente em que
vivem. São conhecidas do folclore brasileiro as músicas que
acompanham festejos populares, como músicas de chegada, de
partida, de velórios, de comemorações, de danças de rua, de
brincadeira e diversão etc. Esse repertório foi pouco a pouco se
inserindo na musicalidade do povo brasileiro, chegando até
mesmo a fazer parte da música popular brasileira.
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2 A música litúrgica possui propriedade e fins específicos
Digamos que é de suma importância que todos os que estão
envolvidos com a música litúrgica nas dioceses, paróquias e
comunidades cristãs tenham consciência, antes de tudo, da
compreensão da natureza funcional e da característica ritual da
música litúrgica. Daí nasce o entendimento de que a criação de
novas composições não é um assunto encerrado, mas sim, que
exige estudo, aperfeiçoamento e aprofundamento em algumas
áreas de competência e que ajudam em muito a formar
especialistas e compositores nesta área.
O Estudo 79 da CNBB:
A música litúrgica no Brasil
vai
afirmar que é isso que, em cada caso, definirá as escolhas a
serem feitas em termos de texto, melodias, ritmos, arranjos,
harmonias, estilos de interpretação etc. O importante é que
determinada criação musical sirva para a comunidade celebrante
desempenhar bem o rito que realiza (n.197). E ainda continua
dizendo que esta funcionalidade da música litúrgica, ao
delimitá-la com precisão, em nada vem a prejudicar sua
qualidade como arte musical, nem bloquear a inspiração do
artista litúrgico (n.198). Por isso, ao falarmos de produção de
novas músicas litúrgicas, devemos levar em consideração os
aspectos acima, pois são alertas positivos já assegurados pelos
bispos que reuniram numa obra os estudos técnicos sobre a
música litúrgica. Passamos então a tratar de conteúdos específicos
para as letras dos cantos que cantamos em nossas celebrações.
Isso significa dizer que a Igreja não se fechou à criação de
novas composições, mas que se faça com clareza o incremento
de repertório significativo para se preencher eventuais lacunas.
Não se trata de compor por compor. O compositor, outro
importante ministério na vida da Igreja, é aquele sujeito que,
com a arte das palavras, da poesia, da música e da harmonia,
oferecerá à comunidade de fé uma música litúrgica feita de
textos enriquecidos com uma tal beleza, cujo valor, verdade e
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graça não são medidos apenas pela sua capacidade de suscitar a
participação ativa, nem (só) por seu valor estético-cultural, mas
(principalmente) pelo fato de permitir aos que creem implorar
os Kyrie eleison dos oprimidos, cantar os Aleluias dos
ressuscitados, sustentar os Maranatha dos fiéis na esperança do
Reino que vem (Universa Laus).
Quanto às músicas tradicionais, aquelas que atravessam
gerações, é importante lembrar da importância de determinada
música em tempos específicos de nosso cotidiano. Não se canta
Noite feliz no mês de fevereiro, por exemplo; as marchinhas
de carnaval são mais próprias do período de carnaval; assim
como as músicas caipiras retomam com sua força própria nos
festejos juninos; um grupo de soldados desfila ao som dos
dobrados; muitas músicas populares nasceram em meio a
manifestações sócio-políticas no conjunto da nossa construção
democrática. Portanto, podemos falar de um tesouro audível
que guardamos e que, de tempos em tempos, nós o resgatamos
para servir a esta ou àquela situação.
Da mesma forma é o canto tradicional religioso ou litúrgico
que perdura por tempos na Igreja. Este nunca deixará de ter sua
função para a comunidade de fé. O que seriam nossas sextas-
feiras santas sem o Vitória, tu reinarás? Esses cantos ressurgem
com certa força e vibração em tempos fortes da Igreja, por isso
pertencem ao que chamamos de reserva simbólica, já que
retornam em certas ocasiões e nos trazem a memória de um
tempo litúrgico ou uma comemoração específica pelos quais
alimentamos nossa fé.
3 Desafios e critérios para a música litúrgica
Contudo, carece-nos esclarecer, e aqui chegamos ao ponto
central de nossa reflexão, quais são os desafios que nos
colocaram esse período de pandemia para a música litúrgica,
para os ministros que ocupam esse papel nas celebrações e para
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a Igreja em geral. Antes de tudo, recordemos os critérios básicos
que direcionam para que o canto e a música estejam ligados à
ação litúrgica: a beleza expressiva da oração, a participação
unânime da assembleia nos momentos adequados e o caráter
solene da celebração.
Em sua Revista de Liturgia escreveu Ir. Penha Carpanedo que
O ícone mais representativo da participação litúrgica requerida
pela reforma do Concílio Vaticano II é uma assembleia cantando
a uma só voz. É quando a fé de uma comunidade reunida se
expressa em sinais como o canto e a música, alguns dos quais
mais sensíveis de nossa cultura, especialmente quando
enriquecidos com nossos ritmos e com nosso gingado
1
.
Ademais, acrescentamos que
A música não é um acessório na liturgia, mas é parte integrante
do rito. Com seu significado visa suscitar na assembleia uma
atitude de fé que brota do coração, seja no simples canto a
capella, seja quando produzida ou acompanhada pelo som dos
instrumentos, incluindo os de percussão. Desse conceito podemos
extrair ótimos resultados quando o que está em jogo é a grande
influência que exercem o canto e a música na vida de muitas
comunidades
2
.
Ao reforçarmos os três critérios básicos elencados acima,
superamos, por exemplo, aquelas músicas que se veiculam com
certas marcas da subjetividade, do devocional de caráter
estilizado, do sentimentalismo, pois essas estão distantes da
objetividade da fé. A música é parte integrante da ação litúrgica
(cf. SC 112), tem caráter teológico, está a serviço da letra no seu
contexto ritual [canto de abertura, por exemplo, tem a ver com
ritos iniciais e o tempo litúrgico, canto de comunhão tem a ver
com o evangelho do dia e o tempo litúrgico].
1 Penha CARPANEDO, In:
Revista de Liturgia
cantando a uma só voz, n.251, p.3.
2 Penha CARPANEDO, In:
Revista de Liturgia
cantando a uma só voz, n.251, p.3.
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A função da melodia aliada aos instrumentos musicais é
reforçar o sentido da letra. Quando se canta as chamadas Partes
Fixas da missa, o texto presente no Missal Romano deve
prevalecer sem alterações e acréscimos desnecessários. Esse
conjunto de textos próprios da missa requer melodias simples e
objetivas, que enfatizem o que diz a letra.
4 Quem canta? Como se canta a música litúrgica?
Quanto à forma de cantar, o canto litúrgico não pode
reproduzir o estilo dos programas de auditório. Não se trata de
um show em que os atores projetam sua voz e fazem sua
performance; trata-se de uma assembleia em oração, e o canto é
expressão desta oração. Portanto, é necessário cuidar da
adequada formação litúrgica e espiritual de todos que atuam
nesse campo pastoral da Igreja (cantores, instrumentistas,
compositores, poeta, letristas e técnicos). É fundamental que
tenham conhecimento da natureza eclesial da liturgia, do seu
sentido teológico e espiritual, das orientações quanto à forma e
sentido de cada rito. E que não seja apenas uma formação
teórica e técnica, mas que proporcione uma verdadeira
experiência do celebrar.
Ao lado da música litúrgica estão também outros elementos
altamente simbólicos e significativos para o alimento da fé da
comunidade. É importante se ter consciência da própria
sacramentalidade de toda ação litúrgica. Às ações de uma
assembleia correspondem as ações simbólicas, a composição
simbólica do espaço, dos objetos, das vestes litúrgicas. A
harmonia desses elementos contribui e muito para que o
mistério possa ser revelado com nobre simplicidade. No que diz
respeito à música, temos no Brasil um repertório variado,
consistente e acessível, incluindo o Hinário Litúrgico da
CNBB. É necessário se visitar esse arcabouço, como já o
dissemos no começo de nosso artigo.
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Certamente a pandemia deixou nossas assembleias vazias, e o
corpo eclesial celebrativo não pôde se reunir para fazer sua ação
de graças de louvor ao Pai, pelo Filho, no Espírito, através da
principal celebração litúrgica: a Eucaristia. É louvável que
muitos ministros do canto e da música litúrgica estão se
esmerando para que seja assegurada minimamente possível uma
música de qualidade nas celebrações que são transmitidas via
redes sociais ou aplicativos virtuais. Vimos muitos grupos,
cantores e instrumentistas se empenhando nisso. Mas também
notamos muito empobrecimento nessa área. Contudo, isso não
é fruto apenas da pandemia ou do distanciamento social que nos
trouxe a pandemia. Antes mesmo isso já era percebido.
Circulou entre nós vídeos em que músicos discutiam com o
padre que estava presidindo a celebração, pois este padre queria
pedir músicas para serem cantadas de improviso ali na hora da
celebração. Outro ainda em plena transmissão rejeitava o
repertório escolhido pelo cantor, criticando o conteúdo da letra.
Pelo menos foram os dois exemplos que nos vieram à mente,
mas o leitor certamente deve ter visto outros vídeos desses
circulando. Diante desses dois exemplos questionamos o
modelo operativo que ocupa a música litúrgica ou a música nos
contextos dos templos e dos nossos dias. Não se trata de simples
casuísmo. Não é cantar por cantar ou cantar para simplesmente
preencher um espaço vazio. A música litúrgica não se destina a
este fim. Ela é fruto de um conjunto ritual e esse propósito deve
ser obedecido, seguido e vivido por quem se propõe a trilhar
nesse ministério.
5 Pequenas assembleias reunidas
Por outro, lado nos perguntamos: quem é esta pequena
assembleia reunida para celebrar o Dia do Senhor e fazer sua
transmissão a tantos quantos se destinam a assisti-la? Não
imaginemos que os cantores e instrumentistas presentes nessas
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transmissões deixam de ser assembleia pelo simples fato de
estarem exercendo uma função ministerial. Certamente trata-se
de uma assembleia reduzida, dois ou três, um grupo de
familiares talvez, que se reuniu para animar essas transmissões.
Verdadeiro serviço exerceram esses que, doando seus
talentos, puderam fazer com que o povo tivesse acesso a essas
celebrações via redes sociais. Embora não seja o ideal: o virtual,
o distante, mas também nos entristece o fato de que não
estávamos preparados para isso. Nossos irmãos evangélicos,
neopentecostais ou protestantes estão há anos-luz à nossa frente
quando o assunto é transmissão midiática. De certa forma, eles
já vêm fazendo isso há muito tempo com assembleias cheias e
comunicação imediata que satisfaz e atende bem a seu público.
Logicamente não é o desejado pela Igreja: celebrações sem
assembleias, isto é, sem povo. Onde estiverem dois ou três
reunidos, eu estarei no meio deles, assim disse Jesus. As
celebrações só têm sentido se ali estiver reunido o povo de
Deus. Um é quem preside esta assembleia, os demais servem a
esta mesma assembleia, cada um fazendo somente aquilo que
lhe compete, embora sendo membros desta mesma assembleia.
A função ministerial da assembleia é ser assembleia.
Analisando mais profundamente essas celebrações sob o
ponto de vista de sua ministerialidade, o mais estranho que nos
pareceu é que alguns presidentes interagem com o usuário da
mídia social como se ali este usuário estivesse presente,
esquecendo-se que minimamente havia em torno dele uma
assembleia fisicamente presente, isto é, o pequeno grupo de
cantores e instrumentistas que se propôs a cantar aquela celebração.
6 Das liturgias à dura realidade social
Há de se levar em conta também o conteúdo textual das
músicas que se oferecem nessas celebrações. Há muito conteúdo
textual nessas músicas que não possui sequer perspectivas sérias
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dos conceitos de Igreja do Concílio Vaticano II. Além disso,
nota-se certo hibridismo textual, por exemplo numa música
veiculada o texto afirma que a comunhão é para nos preservar
em ti. Muito mais que isso, o ato de comungar
sacramentalmente sob as espécies do pão e do vinho é para
sermos um com o outro. E quando recebermos o corpo e o
sangue dele oferecidos, o Espírito faça de nós um só corpo e um
só espírito. Fazei de nós um só corpo e um só espírito,
afirmamos no meio da oração eucarística. Note que não se trata
de conceitos antropológicos, mas são conceitos teológicos que
têm consequências no cotidiano das pessoas de fé. Não se trata
de uma preservação no sentido de conservação, como se o
nosso corpo fosse uma espécie de museu que preserva a
comunhão sacramental recebida. Como não se tem a Teologia
como base para a construção da letra, fica difícil se apropriar dos
conceitos básicos da fé quando se refere a letras de música que
cantam questões sacramentais. Sobre este tema requer uma
catequese aprofundada e outro artigo careceria para refletirmos
o assunto.
Outra coisa ainda é dizer que para cada tipo de música se
percebe uma interpretação diferente por parte dos cantores,
como se estivessem num show, cheios de expressões faciais e
corporais que nada condizem com a letra. Aliás, digamos que
muito mais que sonoridade vocal, alguns cantores investem em
extrair das assembleias apenas as mãos balançando ao alto, pulos
e palmas. Isso é infantilizar as assembleias e empobrecer o
sentido gestual-musical que se requer quando se canta com a
assembleia a fim de lhe assegurar a afinação e a participação. O
que está em jogo quando se canta é a voz. Dela se origina o
sentido da participação pelo sentido vocal requerido pela
reforma litúrgica pós-conciliar: que a voz acompanhe com a
mente aquilo que se faz enquanto rito. Deixemos a tarefa
saltitante e eufórica para os programas de auditório e para os
cantores populares em geral quando estes estão em seus shows.
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Quando também estão em jogo nessas transmissões a
imagem, o que importa mesmo é mostrar como eles são capazes de
fazer superproduções, vídeos magníficos com câmeras maravilhosas
de última geração e tecnologia de vanguarda. Muitos desses
clipes rolam indiscriminadamente nas redes sociais e estão
arquivadas no Youtube para se mostrar o quanto eles são
artistas, aproveitando-se do elemento religioso e da fé a fim de
mostrarem seus talentos, inclusive muitos padres embarcaram
nessa. Sem contar que o ostensório com a hóstia consagrada
virou objeto de verdadeiro marketing apelativo que toca o lado
extrassensorial das pessoas, evocando nelas emoções múltiplas.
Carece resgatar o sentido verdadeiro da nobre simplicidade,
expressão utilizada pela reforma litúrgica. A música litúrgica, o
espaço litúrgico, as vestes litúrgicas e todas as ações rituais
precisam beber desta fonte. Eis o critério para o qual
deveríamos convergir. Mas me parece que há tempos algumas
celebrações no Brasil querem mais competir com celebrações de
basílicas romanas do que viver a simplicidade de assembleias
populares com rostos sofridos e marcados pela dor, pelo luto,
pela miséria e pela falta de esperança com as quais marcaram o
povo brasileiro nesse tempo de pandemia, sobretudo ao serem
atingidas por um governo que tratou a saúde pública como um
caso privado ou particular, isto é, cada um que se salve a si
mesmo com as condições que possui.
7 Textos musicais que assegurem aprofundar a linguagem
ritual
Em certa ocasião, Márcio Antônio de Almeida, especialista
em musicologia disse numa de suas exposições que importa
olharmos para o modelo operativo do canto litúrgico, o que é
próprio de cada canto. Variam nesses modelos os cantos de
Abertura e Comunhão, com suas flexibilidades próprias. A regra
da oração vale para a regra do que se crê, e vice-versa. No
conteúdo desses dois tipos de cantos deve prevalecer aquilo que
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Canto e Música Litúrgica
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a Igreja possui em sua mais antiga tradição da fé, isto é, o
conteúdo da fé explícito nesses cantos deve condizer com o
conteúdo da fé propostos pelos ritos celebrativos. É dos ritos
que se originam as letras, a poesia, o texto.
Notamos que certos conteúdos expressados em muitas letras
de cantos estão mais para um apelo midiático, isto é, para
seduzir pessoas, e isto deve ser imediato, ali, na hora, caso
contrário não surte efeito. De certa forma, o imediatismo é a
linguagem do momento: as mensagens devem ser instantâneas
pelos aparelhos e pelas mídias, o ouvinte ou o leitor do outro
lado do mundo deve me responder imediatamente; eu fico
monitorando se ele recebeu, leu ou não respondeu a mensagem
enviada. Isso vai tornando os indivíduos seres sensíveis, pois
tudo está muito ligado à flor da pele. Não consigo esperar mais,
a paciência não é mais um adjetivo aliado às tecnologias. A
cultura do superficial dita as regras do tempo atual, e nada se é
aprofundado. Perguntamos: vale a pena ficar mesmo na
superfície? Por que o Mistério profundo é a nossa dúvida? Por
que não se vai atrás do essencial e se abandona o que é
passageiro, transitório? Mesmo que não queiramos, as
celebrações via redes sociais ou midiáticas caíram nisso. Como
escapar dessa crise do não aprofundamento das questões
mistéricas? Há caminhos de volta?
Para Márcio ainda precisamos formar uma geração de
músicos cantores e instrumentistas a partir de uma educação
para o rito e para a linguagem ritual pela qual se vivencie o rito
como substrato de nossas produções litúrgico-musicais. A isso
nós chamamos de mistagogia, com a qual começamos nosso
artigo ao relembrarmos como se apreende a experiência vital
que passa pelos ritos e pela linguagem litúrgica. Esse jeito de
aprender e vivenciar a fé é o patamar para avançarmos no bem
celebrar, isto é, celebramos porque sabemos o que celebramos,
para quem celebramos e aonde celebramos. Isso abrange muitos
elementos da celebração, e a música litúrgica é um deles. Por
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exemplo: quando o assunto é letra poética, há mais preocupação
com a poesia do que com os significados dos ritos para a vida
daquela assembleia litúrgica. Márcio ainda recordou que é
preciso conhecer bem o que se celebra para poder devolver às
nossas assembleias o genuíno conceito de ter pelo menos o
direito de evocar suas tradições e costumes, e isso pode ser
conduzido com devidos critérios pela música litúrgica.
Para concluir
O cenário atual, a música litúrgica, o contexto da pandemia
e pós-pandemia, os aparatos tecnológicos devem, acima de
tudo, nos apontar caminhos bíblico-teológico-litúrgicos na
busca de acertar com critérios para se poder celebrar bem a
liturgia com cantos que condigam com a fé da Igreja, com
elementos simbólico-gestuais que sejam significativos para a
vida do povo celebrante, com sinais que sejam verdadeiros e
não subjetivos, seja virtual ou presencialmente.
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Paulo: Apostolado Litúrgico, n.251, set-out. 2015.
FERREIRA, Eurivaldo S.; RAMON, Telles.
Canto e Música Litúrgica