O DIGITAL E A VIVÊNCIA DA FÉ
(re)descobertas em tempos de pandemia
Dr. Moisés Sbardelotto*
DOI: https://doi.org/10.52451/teopraxis.v37i129.15
Recebido: 24 de fevereiro de 2019 | Aprovado: 11 de junho de 2019
Resumo:
A pandemia do coronavírus transformou a vida e a prática da
Igreja de diversos modos. Diante da suspensão de missas e de outros
encontros eclesiais em várias dioceses e paróquias do mundo inteiro, a
comunidade cristã voltou seu olhar e suas energias para o ambiente digital.
Por isso, é importante atentar e refletir sobre algumas questões
comunicacionais que surgem diante deste sinal dos tempos da pandemia e
que incidem sobre a relação entre a Igreja e o ambiente digital. Este artigo
destaca quatro pontos específicos que apontam para (re)descobertas no modo
de viver e celebrar a fé no ambiente digital: a concepção das mediações
litúrgicas e tecnológicas; de comunicação e relação; de participação e
presença; e de comunidade. Como conclusão, aponta-se que o maior desafio
pastoral é superar a lógica da substituição pela lógica da complexificação,
da complementariedade, da interligação, buscando promover uma complexa
ecologia comunicacional pastoral e também litúrgica.
Palavras-chave:
Internet. Mídias digitais. Comunicação. Vivência da fé.
Liturgia.
* Mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio
dos Sinos (Unisinos), com estágio de pesquisa (bolsa PDSE/Capes) na Università
di Roma La Sapienza, na Itália. Possui graduação em Comunicação Social -
Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É
professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Comunicação da Unisinos, onde realiza estágio pós-doutoral (bolsa
Fapergs/Capes). Seu livro mais recente é Comunicar a Fé: Por quê? Para quê?
Com quem? (Vozes, 2020). Membro do Grupo de Reflexão sobre Comunicação
da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e colaborador do Instituto
Humanitas Unisinos (IHU). Participou da Comissão Especial para o Diretório de
Comunicação para a Igreja no Brasil, aprovado pela CNBB em 2014. De 2008 a
2012, coordenou o escritório brasileiro da Fundação Ética Mundial
(Stiftung
Weltethos
), fundada por Hans Küng. Email: msbardelotto@yahoo.com.br
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Introdução
Em tempos de isolamento e confinamento, a Igreja, nas suas
várias expressões, se viu desafiada a ser mais ousada e criativa
ao repensar o estilo e os métodos evangelizadores (cf. EG 33). A
pandemia do coronavírus está transformando a vida e a prática
da Igreja de diversos modos. Diante da suspensão de missas e de
outros encontros eclesiais em várias dioceses e paróquias do
mundo inteiro começando pelo Vaticano, em que as
celebrações litúrgicas do próprio Tríduo Pascal não foram
abertas ao público a comunidade cristã voltou seu olhar e suas
energias principalmente para o ambiente digital.
Em muitos países, Estados e cidades que fecharam
praticamente tudo, a Igreja pôde continuar sendo e talvez até
mais em saída, como pede Francisco. Desta vez, porém,
pelas estradas digitais, que, como diz o papa na sua mensagem
para o Dia Mundial das Comunicações Sociais (DMCS) de
2014, também estão congestionadas de humanidade, muitas
vezes ferida: homens e mulheres que procuram uma salvação ou
uma esperança.
João Paulo II também já dizia que a internet pode oferecer
magníficas oportunidades de evangelização (DCMS 2002). Seu
sucessor, Bento XVI, afirmava que o ambiente digital não é
um mundo paralelo ou puramente virtual, mas faz parte da
realidade cotidiana de muitas pessoas e, por isso, se a Boa
Nova não for dada a conhecer também no ambiente digital,
poderá ficar fora do alcance da experiência de muitos (DMCS
2013).
Hoje, o Papa Francisco também reitera que a internet pode
oferecer maiores possibilidades de encontro e de solidariedade
entre todos; e isto é uma coisa boa, é um dom de Deus.
Segundo ele, a rede digital pode ser um lugar rico de
humanidade: não uma rede de fios, mas de pessoas humanas
(DMCS 2014).
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Revista Teopráxis, Passo Fundo, vol.37, n.129, Jul./Dez./2020, ISSN: 2763-5201
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Neste momento inédito e histórico na vida da Igreja e das
religiões em geral, entretanto, muitas vezes houve
aproximações apressadas ou distanciamentos receosos ao
ambiente digital. Isso dificulta que a pastoral, no caso cristão, se
encarne com mais profundidade na cultura emergente. Por
isso, é importante atentar e refletir sobre algumas questões
comunicacionais que surgem diante deste sinal dos tempos da
pandemia e que incidem em aspectos teológicos, eclesiológicos
e pastorais da relação entre a Igreja e o ambiente digital. O
pensamento do Papa Francisco, especialmente em suas
mensagens para o Dia Mundial das Comunicações Sociais,
contribui nesse sentido.
Neste artigo, destaco quatro pontos específicos que apontam
para (re)descobertas ou que demandam (re)significações no
modo de viver e celebrar a fé no ambiente digital: a concepção
das mediações litúrgicas e tecnológicas; de comunicação e
relação; de participação e presença; e de comunidade.
Especialmente em tempos de isolamento social, por meio da
conexão em redes digitais, essas experiências são vivenciadas de
formas inovadoras, e, portanto, o modo como a Igreja as pensa
e as enuncia também precisa ser problematizado.
1 As mediações tecnológicas da liturgia
A combinação entre o distanciamento exigido pela
pandemia e o fenômeno digital escancarou as casas ao mundo,
fazendo com que as pessoas fossem convocadas ao céu aberto
da comunicação, inclusive para viver uma nova eclesialidade
(
ekklesía
, do grego, chamar para fora), ressignificada pelo
fechamento dos templos e pela conectividade das redes. Essa
conjuntura problematizou não só a compreensão da fé, mas
também a sua própria experiência, a partir de novas mediações
tecnológicas.
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Entretanto, em todo tempo e lugar, e para toda pessoa, a
experiência de fé sempre ocorre mediada. Como afirma o
Evangelho, ninguém jamais viu a Deus; o Filho [...] foi quem
o deu a conhecer (revelou, contou, narrou) (Jo 1,18). Ou seja,
a experiência da fé cristã nasce mediada desde a sua origem,
pelo encontro com a existência humana de Jesus. Com o seu
corpo, os seus gestos, os seus discursos, a sua história, a sua
cultura. E, por sua vez, a pessoa que faz essa experiência a faz
pela mediação do seu próprio corpo seus afetos, sentimentos,
sensações.
Ao longo da história humana, há também uma série de
outras mediações da experiência de fé. A nossa relação
imediata com o rito nunca é tão direta como pensamos. Ela é,
por sua vez, mediada por
media
mais escondidas, mais antigas,
mas igualmente eficazes, que se chamam catecismo, teologia,
espiritualidade, devoção
1
.
E há também mediações propriamente técnicas e
tecnológicas. Trata-se de artifícios e artificialidades que não são
naturais, mas inventados pelas pessoas na relação que
estabelecem entre si e com o sagrado. Os gestos, a fala, a
linguagem, os símbolos, os objetos, a arte, a arquitetura, a
música, a escrita, a imagem, o digital: é mediante essa
complexa ecologia comunicacional, na qual tudo está
estreitamente interligado (
Laudato si
, n.16), que a experiência
de fé se torna possível.
O ser humano, portanto, emerge historicamente não apenas
como
religiosus
, mas também como
technologicus
e, hoje, até
como
homo digitalis
. Essa articulação entre a dimensão religiosa
e a dimensão tecnológica é constitutiva da experiência religiosa.
E a liturgia também revela uma importante dimensão
comunicacional e tecnológica, que o digital não inventa
ab
1 Andrea GRILLO, Spazio e tempo 3.0: affinità e incomprensioni fra tradizione
ecclesiale e multimedialità. In:
Rivista di Pastorale Liturgica
, Brescia, n.338,
jan./fev. 2020, p.19, tradução nossa.
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ovo
, mas apenas explicita de forma mais evidente e complexa
2
.
Portanto, é preciso também olhar de forma mais complexa
para a ecologia tecnocomunicacional em que a liturgia, em
sentido amplo, é praticada e vivida hoje. As mídias digitais
podem até reconciliar os sujeitos e as comunidades com o uso
diferenciado da linguagem. A
experiência de complexidade
de
que o rito tem necessidade constitutivamente
é ampliada
antes que reduzida
pelas
new media
, graças à sua
multimedialidade e a formas complexas de participação, nas
quais palavra, música, movimento colaboram em raiz
3
. Trata-
se, como continua o autor, de novas formas de experiência,
que modificam os hábitos, as linguagens e as ideias dos homens
e das mulheres.
2 Comunicação e relação, não apenas transmissão,
encenação ou exibição
Circula nas redes um
meme
que, em tom bem-humorado,
revela um pouco a experiência durante o tempo de isolamento
social: Tenho medo de abrir a geladeira e ter uma
live
lá
dentro, isto é, mais uma transmissão ao vivo...
Isso também vale para a Igreja. Diante do ineditismo do
confinamento litúrgico, a resposta quase automática de
inúmeras dioceses, paróquias e movimentos foi promover mais
transmissões de missa ou outros momentos de reflexão,
formação e oração via TV, rádio e internet. Em muitos casos,
percebe-se um esforço muito grande, por parte de padres,
religiosos/as ou leigos/as, muitas vezes diante de limitações
tecnológicas várias, para que tais ambientes de encontro possam
ser oferecidos e, assim, se consiga superar o isolamento e
encurtar as distâncias.
2 Norberto VALLI, Liturgia e tecnica: storia di amore e diffidenza. In:
Rivista di
Pastorale Liturgica
, Brescia, n.338, jan./fev. 2020, p.14-18.
3 GRILLO, op. cit., p.23, grifo e tradução nossos.
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As potencialidades do digital, por outro lado, podem trazer
consigo alguns riscos para a vida de fé. Como, por exemplo, o
de fomentarem um certo automatismo e simplismo das
respostas pastorais diante de um cenário sem precedentes como
o atual. Assim, no afã de transmitir celebrações e ritos, corre-se
o risco de transformar a celebração da missa em um mero
espetáculo, em uma encenação a ser exibida. E ainda de
esquecer que há uma pessoa do outro lado da tela, que também
é chamada a participar ativa e efetivamente da liturgia,
mesmo que a distância.
O risco, em suma, é ignorar o outro em sua humanidade.
Busca-se uma conexão, mas evitando ou dispensando o contato.
Assim, a outra pessoa passa a ser considerada como uma mera
espectadora apassivada, coisificada, como um número a mais
a ser contabilizado pelos índices de audiência e de visualização.
Nas celebrações transmitidas, cabe especialmente aos presbíteros
tomarem consciência de que o que estão celebrando não é uma
missa privada. O
Código de Direito Canônico
deixa bem claro
que as ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações
da própria Igreja [...] ou seja, o povo santo (cân. 837).
Também não são apenas um monólogo encenado diante
das câmeras e performatizado única e exclusivamente pelo
padre. Entretanto, percebe-se, em muitos vídeos e subsídios
religiosos disponibilizados nas redes nesse período, a
explicitação de uma certa autorreferencialidade, que chama a
atenção apenas para seus próprios autores, na busca de aumentar
a visibilidade pessoal ou institucional. Junto com isso, muitas
vezes, manifesta-se ainda um clericalismo midiático, senão até
um exibicionismo clericalista, em que toda a comunicação
pastoral em rede gira em torno do padre ou da celebração da
missa (também centrada no padre).
Pelo contrário, a celebração da eucaristia, como afirma a
Instrução Geral do Missal Romano
(IGMR), é sempre ação de
toda a Igreja (n.5). Trata-se de um gesto comunitário,
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presidido pelo presbítero, mas celebrado conjuntamente pelo
povo, por pessoas concretas, de carne e osso, que, no ambiente
digital, estão presentes a distância e precisam ser levadas em
consideração para poderem participar ativamente do rito. Ainda
mais em rede, é preciso que se estimule a ação de toda a
comunidade na celebração (IGMR 35).
Portanto, mais do que um foco estreito na transmissão, é
preciso levar em conta o processo comunicacional e
interacional que se estabelece no ambiente digital. Isso não
significa menosprezar a qualidade técnica da transmissão: pelo
contrário, ela é fundamental para auxiliar o fiel a vivenciar o
rito e a experimentar a graça de Deus. Contudo, mais
importante ainda é possibilitar a construção de relações
interpessoais em rede, e não apenas reunir pessoas para ouvir e
pessoas para ver.
Embora sabendo que há alguém diante de mim (neste
caso, do outro lado da câmera e da tela), o foco na mera
transmissão e em seus aspectos técnicos pode deixar de lado
justamente a necessidade de estabelecer em rede uma relação
humanizada e humanizante com pessoas humanas. Como
afirma Francisco, o panorama atual convida-nos, a todos nós, a
investir nas relações, a afirmar também na rede e através da
rede o caráter interpessoal da nossa humanidade (DMCS 2019).
Para isso, é preciso
ir ao encontro, escutar e dialogar
com as
pessoas que estão do outro lado da tela e com quem a Igreja
busca se comunicar: quem são? O que desejam, o que buscam,
de que precisam? Como fomentar que elas também possam ser
ouvidas, especialmente neste tempo de tantas dúvidas e
angústias? Como possibilitar que elas também possam
comunicar algo sobre a fé? De que modo podemos
potencializar a sua voz com nossos meios (serviços, aplicativos,
plataformas etc.)?
Particularmente nestes tempos, portanto, é preciso ousadia e
criatividade pastorais, mas sempre voltadas para o bem do outro
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e da comunidade. É melhor evitar avançar tecnologicamente se
isso significa retroceder teológica e eclesialmente, por falta de
discernimento. Isso se reflete no modo como aquilo que vem
sendo transmitido é
anunciado
e
enunciado
.
3 Participação e presença, não mera assistência, audiência
ou ausência
O digital traz à tona os limites da nossa linguagem,
especialmente em relação ao modo como conseguimos ou não
expressar novas experiências humanas e sociais trazidas pelo
processo de digitalização. Mas, principalmente, os limites da
própria linguagem eclesiástica ao tentar expressar aquilo que se
faz e se diz liturgicamente.
Durante o tempo de isolamento social, a Igreja se viu
obrigada a estabelecer um confinamento litúrgico. Foi o caso
da Prefeitura da Casa Pontifícia, que, durante a Quaresma deste
ano, avisou em seu site que, devido ao atual estado de
emergência sanitária internacional, todas as Celebrações
Litúrgicas da Semana Santa realizar-se-ão sem a presença física
de fiéis.
Várias dioceses brasileiras também publicaram notas e
decretos dispensando os fiéis da obrigatoriedade de participar
fisicamente das celebrações dominicais em suas comunidades.
Outros documentos afirmavam ainda que as celebrações seriam
feitas sem povo (
sine populo
). Em todos esses casos, frisava-se que
a participação poderia ocorrer por meio das transmissões ao
vivo de tais celebrações em sites, redes sociais digitais, TVs e rádios.
É importante relembrar que a IGMR indica três formas
diferentes de celebração da missa:
1) a missa com povo,
2) a missa concelebrada e
3) a missa com assistência de um só ministro.
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Portanto, neste tempo inédito, a Igreja propôs a celebração
desta última, entendida, de acordo com a IGMR, como a missa
celebrada por um sacerdote, ao qual assiste e responde um só
ministro (n.252), mas agora transmitida pelas mídias.
A CNBB chegou até a publicar algumas indicações sobre
como se preparar para a missa em casa durante a quarentena
imposta pelo coronavírus. Sugeria-se, por exemplo, preparar a
própria casa e criar um ambiente celebrativo e se convidava a
participar ativa e efetivamente da liturgia transmitida pelos
meios de comunicação. Essa conscientização é importante, pois
a mera conexão não significa necessariamente participação.
Não se trata de uma ação automática: para participar, é preciso
agir ativamente, conscientemente. E, para isso, é preciso educar
pedagogicamente os fiéis para essas novas formas de
participação, a fim de evitar um risco mais alto de retorno à
privatização
do ato e do texto
4
litúrgicos em geral.
Entre o que se diz e o que se faz, portanto, surge um
paradoxo: se uma missa sem povo ou sem a presença de fiéis
é transmitida ao vivo justamente para que o povo e os fiéis
possam
participar ativa e efetivamente
, é possível continuar
afirmando a
ausência
desse mesmo povo? Será que a mediação
digital permite uma forma de presença ou, pelo contrário,
reforça a ausência do povo? As tecnologias
despresencializariam
o contato humano?
Especificar que se trata de uma ausência da presença física
também não resolve o problema. Se a presença não é física, de
que tipo ela é? Espiritual? Psíquica? Mental? Mística? Mas todas
essas presenças não são também perpassadas sempre por uma
experiência corporal, material, tátil, sensível, em suma, física?
Ao estabelecermos um
con-tato
em rede, deparamo-nos com
novas experiências de tato, em que não abrimos mão de
nossos corpos, afetos, sensações, sentimentos.
4 GRILLO, op. cit., p.22, grifo e tradução nossos.
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Francisco mesmo já afirmou: O uso da
social web
é
complementar ao encontro em carne e osso, vivido através do
corpo, do coração, dos olhos, da contemplação, da respiração do
outro. Se a rede for usada como prolongamento ou expectativa
de tal encontro, então ela não trai a si mesma e permanece
como um recurso para a comunhão (DMCS 2019).
Exemplo disso foi o histórico momento de oração
extraordinário ministrado pelo Papa Francisco no dia 27 de
março, na Praça de São Pedro, no Vaticano. Uma experiência
que também nos leva a repensar o que entendemos por
presença
e
participação
.
Quando havia convidado para esse momento de oração, no
Ângelus do dia 22 de março, Francisco relembrou que o rito
seria celebrado com a praça vazia, devido à pandemia. E disse:
Convido todos a participarem espiritualmente através dos
meios de comunicação. E essa participação envolvia até a
possibilidade de receber uma indulgência plenária junto com a
bênção
Urbi et Orbi
. Ou seja, não era uma mera assistência ou
audiência dos gestos e das palavras do papa, mas algo mais
profundamente ativo por parte de quem acompanhasse o rito
pelas mídias.
Portanto, embora as pessoas não estivessem lá fisicamente,
certamente estavam presentes em oração a partir dos mais
variados pontos cardeais do globo e participaram
com todo o seu
corpo
dessa experiência de fé, tocadas fisicamente por aquilo
que estavam vendo, ouvindo e sentindo pelos meios de
comunicação.
Apenas para dar uma dimensão disso, calcula-se que a área
da Praça São Pedro pode reunir fisicamente cerca de 300.000
pessoas. Naquela sexta-feira, durante a homilia do papa,
estavam reunidas pela transmissão do Vatican News no
YouTube mais de 84.000 pessoas na conta em italiano, 170.000
na conta em português, 270.000 na conta em inglês, 520.000 na
conta em espanhol. Mais de 1 milhão de pessoas. Isso sem falar
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das contas em outros idiomas e de todos os outros milhões de
pessoas que acompanhavam por outros sites, pelas redes sociais
digitais e por canais de TV e de rádio espalhados em todo o
planeta (os jornais italianos noticiaram que apenas o canal
RaiUno reuniu mais de 8,6 milhões de espectadores, apenas na
Itália, durante o rito
5
).
Portanto, mesmo em nossas conexões em rede, mediados
por tecnologias digitais, estamos todos
fisicamente presentes
em
pontos geográficos diferentes. Ou seja, o ambiente digital
subverte a noção de espaço e de lugar. O papel dos próprios
templos de pedra passa por uma transformação.
Historicamente, em diversas tradições religiosas, o templo
era considerado como um
axis mundi
eixo, pilar, centro do
mundo , um ponto específico no espaço geográfico que dava
acesso a uma abertura aos céus, ao mundo dos deuses. Ou
seja, um espaço sagrado. Daí a importância do Templo de
Jerusalém, da Basílica de São Pedro, da Grande Mesquita de
Meca, dentre outros.
Na internet e nas redes digitais, porém, o templo se torna
ubíquo, seu acesso é público e se dá por toda parte. Em um
mundo conectado, em que todo e qualquer ponto dá acesso à
rede, o centro do mundo, espaço sagrado por excelência, não
está mais localizado em um ponto geográfico, mas se encontra
em qualquer lugar onde se tenha acesso à internet e às redes
digitais. Agora, o centro é aqui onde quer que seja, onde
quer que se esteja
6
.
Entendemos que a afirmação da ausência se refere ao fato
de os fiéis não estarem no mesmo lugar geográfico que o
ministro que preside a celebração. O risco, porém, é que tal
linguagem leve a pensar que a referência central da celebração
da missa ou até da vida da Igreja é o padre ou os clérigos em
5 Cf. La Repubblica, 28 mar. 2020, disponível em: <https://bit.ly/3bVNIU9>.
6 Moisés SBARDELOTTO,
E o Verbo se fez bit:
a comunicação e a experiência
religiosas na internet. Aparecida: Santuário, 2012.
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geral. Entretanto, em toda a liturgia, Cristo é o único
Mediador (IGMR 5), que congrega a assembleia ao seu redor.
A celebração da missa é sempre uma
ação de Cristo e do povo de
Deus
(IGMR 16), por meio do sacerdócio ministerial próprio
do presbítero e, ao mesmo tempo, do sacerdócio real dos fiéis
(IGMR 4-5).
Durante o isolamento, o povo de Deus continuou podendo
se reunir em torno do altar, centro de toda a liturgia
eucarística (IGMR 73) e centro de convergência, para o qual
espontaneamente se dirijam as atenções de toda a assembleia
(IGMR 299), onde quer que ele esteja. A diferença agora é que
isso ocorre graças a novas formas de
presença física
e de
participação ativa
, mesmo que a distância, possibilitadas pelos
meios digitais.
Portanto, se convidamos o povo para participar a distância
de missas anunciadas como sem povo ou sem presença
(física) de fiéis, há toda uma teologia e uma eclesiologia a
serem repensadas, especialmente em relação a quem
verdadeiramente celebra a liturgia e a quem compõe a
assembleia celebrante e celebrativa. Isso nos leva a repensar o
que entendemos por comunidade, em tempos de redes digitais.
4 Comunidades em rede, não mera conexão de
indivíduos
Nesse período de isolamento social, a relação com os
irmãos e irmãs de caminhada de fé ganhou uma nova
importância. Foi um tempo para reconhecer ainda mais
fortemente que de perto ou a distância para ser eu mesmo,
preciso do outro, como afirma Francisco (DMCS 2019).
Por isso, este é um bom momento para perceber que uma
comunidade é mais do que uma mera congregação de
indivíduos. A missão cristã não é fomentar um individualismo
conectado. Ao contrário, uma comunidade é, principalmente,
SBARDELOTTO, Moisés.
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uma rede solidária, como afirma o papa, que requer a escuta
recíproca e o diálogo, baseado no uso responsável da
linguagem (DMCS 2019).
Assim, para promover uma boa pastoral digital, é
importante levar em conta três premissas fundamentais:
1) Embora mediados por máquinas, há sempre um outro
do outro lado da tela, uma pessoa, um ser humano. Tudo o que
a Igreja faz pastoralmente em rede deve considerar o rosto
dessa pessoa com quem ela se comunica, as suas alegrias e
esperanças, as suas tristezas e angústias.
2) O objetivo principal de uma pastoral no ambiente digital
mais do que bombardear mensagens religiosas, como diz o
Papa Francisco (DMCS 2014) é justamente fortalecer as
relações com pessoas de carne e osso presentes em rede e, com
elas, formar comunidade, a partir do comum que as une entre
si e com a Igreja, colaborando na construção da comunidade
eclesial.
3) Essa comunidade, também em rede, por melhores e mais
aperfeiçoadas que sejam as técnicas e tecnologias utilizadas, não
é convocada e congregada pelo comunicador cristão, por
maiores que sejam os seus esforços e por melhores que sejam as
suas qualidades, mas sim pelo próprio Deus, que toma a
iniciativa desse encontro e de cuja comunicação somos meros
prolongadores (cf. São Paulo VI,
Ecclesiam suam
).
A Igreja da América Latina do século passado ofereceu ao
mundo um dos principais frutos do Concílio Ecumênico
Vaticano II, as comunidades eclesiais de base (CEBs), um novo
modo de ser Igreja e de experimentar a comunidade. Hoje,
poderíamos dizer que estamos diante do surgimento de
verdadeiras
comunidades eclesiais digitais
(
ou CEDs
)
7
. Estas
atualizariam, com outros meios e em outros ambientes, a
7 SBARDELOTTO, Moisés.
E o Verbo se fez rede:
religiosidades em reconstrução
no ambiente digital. São Paulo: Paulinas, 2017.
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mesma busca e necessidade de experiência religiosa, de vínculo
interpessoal e também de cidadania eclesial, especialmente para
leigos e leigas que agora encontram na rede um espaço de
autonomia (infelizmente, com suas inúmeras distorções e
extremismos também).
As CEDs, assim como as CEBs históricas, apontam para
uma eclesialidade nova-ainda-não-experimentada em meio às
variações históricas das formas comunitárias da Igreja. O
ambiente digital, assim, diante do ineditismo deste momento
histórico para a Igreja, possibilita novas formações eclesiais e
comunitárias em rede, muitas vezes, ultrapassando as
configurações espaço-temporais da estrutura eclesiástica local
(paróquia, diocese etc.). Isso aponta para uma busca de relações
outras
em ambientes
outros
, criando e até inventando,
positivamente, experiências de vivência e comunicação da fé.
Conclusões
Para superar a mera assistência/audiência, a mera transmissão
e o mero individualismo em rede, é preciso buscar formas que
permitam um verdadeiro encontro, uma verdadeira escuta e um
verdadeiro diálogo como fez Jesus com os discípulos de
Emaús (cf. Lc 24,13-35) com as pessoas que se conectam com
as redes digitais da Igreja.
O maior desafio pastoral é superar a lógica da substituição
pela lógica da complexificação, da complementariedade, da
interligação. Se o digital não se opõe ao real, é preciso buscar
promover uma
complexa ecologia comunicacional pastoral e
litúrgica
, na qual tudo esteja estreitamente interligado (LS 16).
Para isso, em primeiro lugar, é preciso ter sempre em mente
por que e com quem a Igreja faz todos os seus esforços
comunicacionais. O lugar de encontro muda de acordo com
as pessoas e os tempos e hoje ganha novos sentidos e
desdobramentos no ambiente digital. Onde dois ou mais
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estiverem reunidos em meu nome, Eu estou aí no meio deles
(Mt 18,20). O importante não é o onde, mas sim reunir-se em
comunidade em nome de Jesus seja em rede ou fora dela.
Encarnar digitalmente a ação evangelizadora significa
reconhecer que, também em rede, o amor de Cristo nos uniu
como irmãos e irmãs, e que Ele está no meio de nós mesmo
quando estamos a distância e mediados por aparelhos
eletrônicos.
Referências Bibliográficas
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tradizione ecclesiale e multimedialità. In:
Rivista di Pastorale Liturgica
,
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Rivista di Pastorale Liturgica
, Brescia, n. 338, jan./fev. 2020, p.14-18.
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E o Verbo se fez bit:
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E o Verbo se fez rede:
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