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transformar em consumo, e passa a ser aplicada em diversos produtos financeiros,
cuja rentabilidade está na ordem de 5% para aplicações médias, subindo para 10%
para aplicações de grande vulto com gestores financeiros profissionais
67 68
.
Chamamos a atenção para o ponto da disponibilidade de valores que não podem ser
transformados em consumo e lembramos do episódio recente dos jogadores brasileiros que se
alimentaram de “carne banhada a ouro”
69
, fato que gerou repercussão. O escândalo não se deu
por conta da existência, por óbvio não os únicos consumidores de tal especiaria e de tantos
outros bens duráveis e não duráveis altamente sofisticados. Pode ir fundo na imaginação em
todas as áreas possíveis de consumo. Pois bem, valores não podem ser transformados em
consumo porque o nível da produção de bens de consumo não acompanha. É o que o
raciocínio lógico faz pensar. Não havendo consumo possível, transforma-se em novo
investimento com rentabilidade superior, consideravelmente superior, ao da “economia real”.
Parece interessante saltarmos direto deste ponto, sem pontos de contato na vida real, à
incapacidade de acessar os bens básicos, a alimentação cotidiana, o arroz, o feijão, sem a carne
(mesmo aquela sem o ouro e às vezes só o osso). Essa é a imagem que queremos expressar em
palavras ao leitor para traduzir o nível da desigualdade, a intensidade da barriga que dói por
fome, porque está vazia de tudo, com a abundância de não ter onde “gastar o dinheiro”.
Uma questão importante a considerar neste contexto de sensibilização é que toda boa
ação e mudança de atitude pessoal é fundamental. Mas é preciso, além da emoção que tende a
ser temporária, o compromisso político e o controle estatal – só o Estado pode, se é que ainda
pode, desde que seus representantes governamentais queiram e saibam como fazer – para
mudar esta lógica. É precisamente neste ponto que se entende o porquê e de qual intervenção
estatal os defensores do capitalismo neoliberal tinham ojeriza. Não parece possível resolver
problemas de tamanha magnitude, embora expressos simbolicamente através de pessoas
reais, sem discutir a economia global. E não se trata de desprezar soluções locais,
comunitárias, antes pelo contrário, é ali onde ocorrem o reconhecimento pessoal e o resgate
da dignidade, da identidade, algo que nenhuma medida governamental alcança. É que a
realidade que salta aos olhos é reveladora. “Com o rendimento sobre o capital ultrapassando
fortemente os avanços da própria economia, na realidade, gera-se um processo cumulativo de
enriquecimento proporcionalmente maior dos que já são mais ricos”
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.
Para citar um outro ponto fundamental em termos econômicos e que tende a
ampliar as desigualdades, ao menos no modo como está organizada a carga tributária
brasileira. O tributo sobre o capital põe a carga em quem tem patrimônio elevado,
enquanto o imposto sobre o consumo torna proporcionalmente oneroso para quem já tem
baixa renda. Os paraísos fiscais são a ponta mais visível desse iceberg e porto seguro para
quem quer manter grandes fortunas sem passar pelo fisco. Ao entendermos que o
problema está relacionado ao acesso e distribuição dos bens e riquezas produzidos pela
sociedade, não podemos ignorar esse debate, uma vez que na outra ponta de quem tem
dificuldade de consumir por dispor de muito dinheiro está a precariedade, a instabilidade,
a insegurança, o desemprego, a pobreza, a miséria e a fome, como expressam os dados.
MEZADRI, Neri José
A fome é sinal de contradição num tempo de abundância
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 23-39, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
67 Vale a pena dar atenção ao debate em terno dos juros que se estabelece no contexto brasileiro do início deste ano e
buscar os desdobramentos sobre ganhos e perdas, beneficiados e prejudicados, dos juros altos.
68 DOWBOR, Ladislau, A era do capital improdutivo: A nova arquitetura do poder, sob dominação financeira, sequestro
da democracia e destruição do planeta, p. 139–140.
69 A notícia que virou polêmica ocorreu no Catar, em novembro de 2022, quando alguns jogadores e ex-jogadores da
seleção foram a um restaurante em que essa carne fazia parte do cardápio. Disponível em: <https://www.uol.com.br/
esporte/futebol/copa-do-mundo/2022/11/30/jogadores-na-copa-aproveitam-folgas-para-experimentar-carne-
folheada-a-ouro.htm> Acesso em 23 mar./2023.
70 DOWBOR, Ladislau, A era do capital improdutivo: A nova arquitetura do poder, sob dominação financeira, sequestro
da democracia e destruição do planeta, p. 140.