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A FOME É SINAL DE CONTRADIÇÃO
NUM TEMPO DE ABUNDÂNCIA
HUNGER IS A SIGN OF
CONTRADICTION IN A
TIME OF ABUNDANCE
Neri José Mezadri*
Resumo: Num contexto de alta produtividade é alarmante a situação em
que vivem milhões de pessoas. Um dado aterrador é que a fome no mundo
mata mais que os conflitos e o terrorismo. Por isso, ela é a maior das
violências. O objetivo do texto é explicitar a realidade dramática da fome e
apresentar indícios do porquê os dados alarmantes não superam os
interesses privatistas. A pesquisa é de caráter bibliográfico e faz um
diagnóstico da realidade global, buscando apontar alternativas. Enquanto
em torno de 9,8% das pessoas no mundo sofrem com a forme, ao menos
29% da população mundial vive em situação de insegurança alimentar. O
problema é estrutural e está ancorado na lógica concorrencial e no cálculo
do interesse pessoal. Mudar esta realidade implica esforço conjunto e
muita disposição. Os indícios da racionalidade que orienta o modo de vida
predominante no contexto atual tornam exíguos os sinais de mudança no
curto prazo.
Palavras-chave: Fome. Insegurança. Desigualdade. Mercado. Solidariedade.
Abstract: In a context of high productivity, the situation that millions of
people are living in is alarming. One terrifying fact is that hunger in the
world causes more deaths than conflicts and terrorism, making it the most
significant form of violence. The purpose of this text is to expose the
dramatic reality of hunger and provide evidence as to why these alarming
figures do not outweigh private interests. The research is based on
bibliographic sources and diagnoses the global reality, seeking to propose
alternatives. While approximately 9.8% of the world's population suers
from hunger, at least 29% of the global population lives in a state of food
insecurity. The problem is structural and rooted in competitive logic and
self-interest calculations. Changing this reality requires joint eort and
strong determination. The indications of the rationality guiding the
prevailing way of life in the current context make the prospects of short-
term change minimal.
Keywords: Hunger. Insecurity. Inequality. Market. Solidarity.
v. 40, n. 134, Passo Fundo,
p. 23-39, Jan./Jun./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:
dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i134.168
* Doutor em Educação, atuando como
orientador educacional no Centro de Ensino
Médio Integrado UPF, professor e
coordenador pedagógico na Itepa Faculdades.
E-mail: nerijm76@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-9511-7011
Recebido em 06/04/2022
Aprovado em 09/06/2023
24
1 INTRODUÇÃO
A fome é um problema que afeta diariamente milhões de pessoas de várias idades
mundo afora. E quem enfrenta essa realidade dramática, além da dor gerada pela própria
fome, sofre com inúmeras consequências causadas pela desnutrição e se sente atingido em
sua dignidade. O fato social da existência da fome deve ser tratado como um escândalo
inaceitável. Enquanto existir fome no mundo estamos atestando que o projeto de
sociedade, por mais que haja avanços extraordinários em diversas áreas, é fracassado. Do
ponto de vista espiritual e teológico, o projeto humano, criado à imagem e semelhança de
Deus, e o projeto de vida compartilhada e fraterna está distante de ser concretizado. A
de Jesus do Filho encarnado no Deus Criador, Libertador e Salvador, é incompatível
com a existência de pessoas sem acesso aos bens básicos à sobrevivência, e a alimentação é
o mais básico para manter o curso da vida. Independentemente de qualquer outra
realidade, a condição de “semelhante” deve nos mover a um compromisso incansável para
garantir alimentação a todos os seres humanos. Seja através da motivação ética ou política,
seja em função e motivados pela fé, como é o caso dos cristãos, trata-se de um
compromisso em defesa da vida e da dignidade das pessoas. A Campanha da Fraternidade
de 2023 provoca a pensar e a assumir atitudes pessoais em compromisso com a
transformação de toda realidade injusta, que produz desigualdade, miséria e fome.
Entender melhor esse contexto de disparidades é um passo importante, e muito a
ser compreendido para se chegar a um diagnóstico acerca da realidade onde se produz
como nunca e em que muitas pessoas passam fome. É preciso atentar também para o fato
de um problema como esse, de tamanha gravidade, não ser transformado em compromisso
e muito menos obsessão nossa para ser resolvido. Significa que a racionalidade que
predomina no meio social, e toma conta da nossa mente e do nosso coração, não está
fundada na solidariedade e na fraternidade, mas no egoísmo e na satisfação dos próprios
desejos, extensiva, no máximo, “aos seus”. Nossa subjetividade focada nos afazeres
cotidianos e nas metas pessoais, estudo, trabalho, com a própria sobrevivência e conforto
nos torna indiferentes ao outro. Essa subjetividade é produzida num contexto que desperta
para a satisfação de nossos próprios interesses. Isso tem relação com o sistema econômico
produtivo (ou improdutivo) e com as decisões políticas, quer fortaleçam a mesma lógica e
racionalidade baseada no lucro e nos interesses privados em detrimento dos vínculos
sociais e coletivos. Dito de outra maneira, a fome é produzida socioeconomicamente e
sustentada política e culturalmente à medida que legitimamos um modelo de sociedade e
agimos pessoalmente para manter de essa lógica. Consciente ou inconscientemente, de
forma deliberada ou não, acabamos tendencialmente aceitando e, muitas vezes,
reproduzindo senão reforçando através de nossas atitudes individuais, portanto, ficando
indiferentes com quem não tem o que comer. Mudar isso não é fácil porque as estruturas
de poder e o intercâmbio econômico e político, alteram-se em redes “autossustentáveis”.
Mudar essa realidade exige atuação em vários níveis e articulação em diversas frentes,
tendo o conhecimento acerca das implicações econômicas e políticas como aliado.
Tomamos, como objeto nesse artigo, a realidade da fome em nível mundial, tendo
como pano de fundo alguns dados de uma situação que era trágica e se agravou com a
pandemia. O objetivo é contextualizar ao máximo esses dados para que se tenha a
dimensão de duas perspectivas que precisam ser marcadas: a) a fome (e a pobreza, a
miséria de um modo geral) é consequência da concentração de renda e riqueza, não mera
consequência de decisões individuais; b) não solução para a fome sem mudanças
econômicas estruturais e, portanto, sem mexer em questões fundamentais do modelo de
desenvolvimento econômico. Um sistema que coloque o lucro acima das pessoas não pode
MEZADRI, Neri José
A fome é sinal de contradição num tempo de abundância
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ser aceito como solução para os problemas da humanidade. A solução exige seriedade,
competência e criatividade na questão econômica e compromisso político com a
transformação da realidade. Não se pode projetar a utopia de uma sociedade para todos,
promovendo o ódio a grupos e pessoas e fazendo predominar estruturas de morte.
Noutra direção e de modo complementar faz-se mister atuar para transformar a
subjetividade e a racionalidade predominantes, a fim de viabilizar utopias ou sonhos coletivos. A
materialidade da vida, sustentada pela economia de mercado, produz uma racionalidade coletiva
que captura a subjetividade das pessoas, condicionando os sonhos para os quais vale a pena
dispensar energia. Ocorre que a utopia de uma sociedade onde caibam todos não se fortalece
num contexto reduzido à competição, à concorrência, marcas da subjetividade neoliberal
fundada na “governança de si”. É o cultivo de um espírito fraterno e o incentivo a práticas
cooperativas e comunitárias que podem produzir uma nova estrutura e seu “espelhamento” em
termos de utopia. Não significa que não existam iniciativas e práticas baseadas em perspectivas
de solidariedade. Numa sociedade complexa, de múltiplas preocupações, ocupações e exigências,
e em que somos dependentes da renda do trabalho, é difícil manter níveis de tranquilidade para
desacelerar e cultivar o espírito coletivo. Essa dependência da lógica trabalhista atual é produto,
em grande parte, da corrosão progressiva dos direitos e da diminuição proporcional do poder de
compra do salário. Desse modo, é fundamental associar as condições materiais, ou seja, a
reestruturação de práticas econômicas menos agressivas e competitivas ao cultivo de outro
modo de vida, desacelerado e do cuidado de si e do outro.
A intenção é deixar claro que não existe solução milagrosa ou simples, além de
explicitar que não se pode fugir de questões políticas e/ou econômicas para evitar a todo
custo a polêmica. Neste sentido, precisamos olhar para o sistema econômico e político por
seus efeitos prejudiciais ou benéficos para o conjunto da sociedade, sem nos ater a
contornos ideológicos. As grandes transformações tecnológicas e nos processos produtivos
conduzidas por uma determinada racionalidade apresentam inúmeros desdobramentos
que buscamos desvendar. Assim, além de apresentar dados acerca da fome, assinalamos
traços da realidade socioeconômica e política, com as implicações para a produção agrícola
e seus desdobramentos da fome no mundo. O texto está organizado em dois grandes
tópicos principais: a) dados da realidade da fome no mundo; b) principais causas da fome.
Faz-se também alguns indicativos em busca de saídas ao problema.
2 A FOME NO MUNDO A PARTIR DE ALGUNS DADOS
Quando se fala em fome, a dor que ela causa o pode ser traduzida em números, é
experimentada cotidianamente e produz efeitos devastadores para o desenvolvimento do
ser humano, atingindo e aniquilando a vida física, chegando, em muitos casos, à morte. A
coleta de algumas informações tem o objetivo de dar uma dimensão do problema e o
trabalho que precisa ser feito para sonhar com um mundo sem fome. Tarefa que,
infelizmente, parece bem distante. Vamos ordenar alguns números, com a intenção de
identificar tendências, o que revela um ambiente dramático porque a situação piorou nos
últimos anos. Estima-se que, em 2019, 821 milhões de pessoas sofriam de insegurança
alimentar no mundo, 149 milhões das quais estavam em situação de crise de fome ou pior
1
.
Dados mais recentes, do relatório do índice Global da Fome (IGF)
2
, apresentados em
outubro de 2022, indicam que o problema da fome em geral atinge quase 830 milhões de
1 OXFAM, O Vírus da fome: Como o coronavírus está aumentando a fome em um mundo faminto, p. 1.
2 O relatório foi organizado pela organização não governamental da Alemanha Welthungerhilfe (ajuda mundial para a
fome) em 13 de outubro de 2022. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/
2022/10/13/fome-atinge-quase-830-milhoes-em-todo-o-mundo.htm?cmpid=copiaecola> Acesso em: 30 mar. 2023.
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pessoas no mundo todo. Para o relatório do IGF, os famintos no mundo aumentaram de
811 milhões para 828 milhões entre 2021 e 2022
3
. Em termos percentuais, segundo dados da
ONU mais de 11% da população mundial foi atingida por insegurança alimentar grave entre os
anos de 2020 e 2022. Ao todo, somando insegurança alimentar grave e moderada, chegamos
ao percentual assustador de 29,5% da população, totalizando 2,3 bilhões de pessoas
4
.
A fome é definida pela Organização das Nações Unidas (ONU), como “privação de
comida” ou “má alimentação crônica”, responsável por causar sensação desconfortável ou
dolorosa energia insuficiente. A insegurança alimentar grave indica situações de fome
durante o ano, indicando que as pessoas desse grupo “experimentaram fome e, no extremo,
ficaram sem comida por um dia ou mais”. a insegurança alimentar moderada aponta a
“falta de acesso consistente” aos alimentos, indicando que as pessoas desse grupo “enfrentam
incertezas sobre sua capacidade de obter alimentos e foram forçadas a reduzir, algumas vezes
durante o ano, a qualidade e/ou quantidade de alimentos que consomem por falta de dinheiro
ou outros recursos”
5
. O mais grave é a tendência crescente dos últimos anos, indicando
que,
além de não atingir as metas de acabar com a fome no mundo a2030, manter números
alarmantes. Em se tratando de fome, uma pessoa nessas condições seria suficiente para
definir uma situação inaceitável, contudo os números não carregam o drama da realidade e
acabamos anestesiamos pela rotina e naturalizando o drama vivido por muitos.
2.1 A crise expressa a realidade conjuntural de um problema estrutural
Em situações de crise, independente na natureza dela, econômica, política, militar,
sanitária ou climática a tendência é que os primeiros a serem atingidos sejam os grupos
sociais mais vulneráveis, seja em termos de saúde ou pela condição socioeconômica. As
pessoas submetidas a condições de desemprego, subemprego ou instabilidade financeira
tendem a sofrer consequências mais severas. Não foi diferente com a pandemia, embora
um nível de sofrimento colocou-nos na mesma condição. As pessoas que não tinham
renda fixa e/ou eram atendidas por alguns programas sociais foram as primeiras a se
depararem com o drama da fome, algumas delas enfrentavam ou haviam enfrentado
situações semelhantes em outros momentos. “As mulheres e crianças são
desproporcionalmente afetadas em períodos de crises econômicas e insegurança
alimentar”
6
. Outro grupo bastante impactado é o das comunidades indígenas,
principalmente seus idosos e crianças pequenas
7
. Esta desigualdade estrutural que tem
repercussões distintas pelas circunstâncias regionais, tem consequências mais ou menos
proporcionais aos dramas já experimentados cotidianamente.
Nas 10 regiões (ou países) com a maior incidência de fome extrema a crise se acirrou
em decorrência da pandemia. São elas: Iêmen, República Democrática do Congo,
Afeganistão, Venezuela, região do Sahel da África Ocidental, Etiópia, Sudão, Sudão do Sul,
Síria e Haiti. Juntos, esses países e regiões abrigavam 65% das pessoas em situação de crise
de fome em todo o mundo
8
. Países com renda média como Índia, África do Sul e Brasil
estão experimentando níveis de fome crescentes à medida que milhões de pessoas que
estavam conseguindo se alimentar razoavelmente a duras penas foram empurradas para
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3 UOL, Fome atinge quase 830 milhões em todo o mundo, 2022.
4 Brasil tem mais de 21 milhões de pessoas que não m o que comer todos os dias e 70,3 milhões em insegurança
alimentar, diz ONU, G1, 2023.
5 RIVEIRA, Carolina, Fome dispara no mundo e ONU aponta soluções; veja destaques do Brasil e outros países,
Exame, 2022, p. 4.
6 OXFAM, O Vírus da fome: Como o coronavírus está aumentando a fome em um mundo faminto, p. 6.
7 Ibid., p. 21.
8 Ibid., p. 2.
27
uma situação de fome pela pandemia
9
. O relatório “expõe um sistema alimentar que tem
mantido milhões de pessoas em situação de fome em um planeta que produz alimentos
mais que suficiente para todos”
10
.
No Reino Unido, “nas primeiras semanas de lockdown no país, cerca de 7,7 milhões de
adultos foram obrigados a reduzir o tamanho das suas refeições ou pular refeições, e até 3,7
milhões de adultos precisaram recorrer à comida de caridade ou a um banco de alimentos”
11
. Segundo estimativa da Organização Internacional do Trabalho (OIT), cerca de “305
milhões de empregos em período integral foram perdidos devido à pandemia, afetando
principalmente mulheres e jovens. Essa perda de empregos pode empurrar ameio bilhão
de pessoas para a pobreza”
12
. Onde impera concentração e desigualdade extremas, a ponta
mais frágil, as camadas populares, submetidas à instabilidade e baixo retorno financeiro,
são as primeiras a sentir os efeitos de qualquer tipo de crise, seja ela climática ou sanitária.
Em todo o mundo, 61% das pessoas trabalham na economia informal. Quarenta
por cento são mulheres e muitos são jovens na verdade, três quartos dos
jovens adultos ganham a vida no setor informal. Esses trabalhadores, que
incluem ajudantes domésticos, vendedores ambulantes, motoristas de entrega e
assalariados diários em canteiros de obras, foram particularmente afetados pela
pandemia, que não têm segurança no emprego e acesso aos benefícios do
emprego formal, como o do seguro-desemprego
13
.
Outra realidade de muitas famílias pobres e que tem gerado sofrimento é a queda nos
fluxos de remessas, o dinheiro que trabalhadores migrantes enviam para as suas famílias do
exterior, consequência do aumento no desemprego. “As remessas globais totalizaram US$ 554
bilhões em 2019 e são uma tábua de salvação para milhões de famílias que vivem em situação de
pobreza”
14
. A estimativa do Banco Mundial é de que pandemia implique numa redução de 20%
nas remessas para países de baixa e média renda, o que equivale a um montante de US$ 100
bilhões
15
. As mulheres são as mais afetadas, seguidas pelos trabalhadores informais e pequenos
produtores rurais, atingidos pelas consequências econômicas da pandemia
16
. As mulheres sofreram
ainda mais com a sobrecarga de trabalho não remunerado, aumentando de forma dramática
no
período da pandemia por conta da doença e do fechamento de escolas
17
. “Uma pesquisa
realizada em assentamentos informais em Nairóbi, por exemplo, revelou que 42% das mulheres
não estavam encontrando trabalho remunerado por conta do aumento da sua carga de trabalho
com cuidados e atividades domésticas provocado pela pandemia e pela resposta a ela”
18
.
A produção de alimentos é uma realidade multifacetada e que também teve múltiplas
implicações e o envolvimento de diferentes sujeitos em interação por distintas
perspectivas ou interesses. Durante a pandemia a alteração de preços parece ter dificultado
o acesso. Por um lado, o índice de preços dos alimentos da ONU para a Alimentação e
Agricultura (FAO), que acompanha o preço médio pago por supermercados e outros
varejistas por uma cesta de produtos básicos, caiu. Por outro lado, os preços ao
consumidor subiram a patamares considerados acima do razoável em muitos países em
decorrência de rupturas nas cadeias locais de produção e abastecimento, da inflação, de
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9 Ibid.
10 Ibid.
11 Ibid.
12 Ibid., p. 5.
13 Ibid.
14 Ibid.
15 Ibid.
16 Ibid., p. 6.
17 Ibid., p. 7.
18 Ibid.
28
corridas às compras
19
, entre outros fatores. “Nos Estados Unidos, por exemplo, os preços
ao consumidor dos gêneros alimentícios aumentaram 2,6% em média, mas a renda agrícola
caiu”
20
. A tendência de queda nos rendimentos dos pequenos produtores teve destaque em
países como Uganda, Hong Kong, Nepal, Guatemala e Zâmbia, em decorrência dos
impactos das restrições impostas a viagens em resposta à pandemia do COVID-19.
Pequenos agricultores de Zâmbia disseram que não estavam conseguindo
vender seus produtos devido ao fechamento dos mercados locais ou porque
estavam preocupados com a possibilidade de contraírem o vírus. Os que
estavam conseguindo comercializar seus produtos afirmaram que estavam
recebendo menos que o normal por eles. No Nepal, intermediários que
compram legumes e hortaliças em chácaras para comercializá-los em mercados
locais não m podido fazer isso, privando muitos agricultores de uma fonte
vital de renda. Em Uganda, as medidas de lockdown coincidiram com a estação
da semeadura. Medidas como o distanciamento social e o fechamento de
mercados comunitários não permitiram que agricultores comprassem sementes
ou atrasaram o plantio. Areo Joyce, um pequeno agricultor, disse o seguinte à
Oxfam: “Não é permitido trabalhar com o grupo completo. Trinta pessoas não
podem trabalhar ao mesmo tempo na mesma horta. Isso atrasou o plantio”
21
.
Da agricultura à ajuda humanitária, vai ficando claro que a situação dramática da fome está
ligada a um modelo econômico e a uma estrutura que mantém e usa-se de crises reais ou
provocadas para ampliar as desigualdades. O que é aparentemente contingente, também reflete o
que é prioridade, como é o caso de países que passavam por situações dramáticas e dependiam
da ajuda humanitária. “O Afeganistão - país que vem enfrentando a pior crise humanitária do
mundo - recebeu apenas 6% do total de US$ 60 milhões necessários para financiar seus
programas de segurança alimentar em resposta à COVID-19”
22
. É importante reforçar que a
desigualdade o é provocada, senão exacerbada pela pandemia, pois experimentamos tempos
de extrema desigualdade. “Enquanto quase metade da humanidade sobrevive a duras penas com
menos de US$ 5,50 por dia, os 2.200 bilionários do mundo detêm uma riqueza maior que a de 4,6
bilhões de pessoas juntas”
23
. A consequência em termos de alimentação é que, enquanto as
famílias ricas gastam uma parcela pequena de sua renda com comida, os mais pobres
comprometem 50% da renda com alimentação, estando mais suscetíveis às oscilações de preço
24
.
2.2 O vírus da crise sanitária e o “vírusda fome
A expressão de uma mulher afegã entrevistada pela Oxfam
25
expressa com transparência
cristalina o desespero de quem o tem escolha: “A pobreza é outra doença, tão perigosa quanto
esse vírus e, se as pessoas continuarem a ficar em casa dessa maneira, muitas famílias poderão
morrer de fome”. O drama é de quem conhece a dor da fome pela experiência, de quem sente em
seu corpo a gravidade da situação. Mais de um terço da população do Afeganistão,
aproximadamente 11,3 milhões de pessoas, vive em situação de insegurança alimentar, entre elas
quase quatro milhões a um passo de passar fome, quase 41% das crianças tiveram seu
desenvolvimento prejudicado pela desnutrição
26
. Toda vez que a falta de horizonte ou perspectiva
é posta diante das pessoas que não vislumbram saída, há submissão a condições ainda mais
degradantes. É o que ocorre, por exemplo, em situações de precarização das condições de
MEZADRI, Neri José
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19 Ibid., p. 8.
20 Ibid.
21 Ibid., p. 8–9.
22 Ibid., p. 9.
23 Ibid., p. 12.
24 Ibid.
25 Ibid., p. 16.
26 Ibid.
29
trabalho, em que as pessoas são submetidas a situações análogas à escravidão. O que é terrível de
admitir para a condição humana é que na outra ponta está o aumento da margem de lucros.
Talvez todos tenham sentido a sensação de vazio no estômago, o que pode ser
comum, antes de se alimentar, ou em algum dia em que precisou retardar uma refeição por
diferentes motivos. O drama é sentir com frequência esta sensação e permanecer com ela,
sem a certeza de poder se alimentar. “A energia proveniente dos alimentos em forma de
calorias é a carga de que o corpo precisa para manter suas sustentação e saúde. E para
saciar a necessidade de alimento do corpo, é preciso atenção a duas medidas: quantidade e
qualidade de comida
27
. Quanto à quantidade de calorias necessárias é fácil identificar, no
mínimo igual às gastas para realizar as atividades rotineiras, o que, segundo a Organização
Mundial da Saúde (OMS), equivale a 2.500 por pessoa por dia
28
; no que diz respeito à
qualidade, indica-se ingerir 6 classes de nutrientes para o bom funcionamento do
organismo: carboidratos, gorduras, proteínas, vitaminas, minerais e água
29
.
O “vírus da fome” tende a matar de forma lenta, passando da sensação angustiante
nos primeiros três dias sem comida, para o consumo das reservas até o décimo dia, desde
que beber água, para o consumo das proteínas e a consequente atrofia muscular entre os 10
e 15 dias. A partir de 20 dias sem se alimentar o corpo desenvolve uma espécie de
canibalismo interno, passando a consumir as próprias proteínas, tecidos e órgãos para
suprir a necessidade de energia, durante até 60 dias, em completa debilitação física e
mental
30
. Os efeitos da fome sobre o corpo são muito importantes e apresentam sequelas ao
desenvolvimento saudável, o que leva a imaginar o que produz sobre o desenvolvimento
infantil, tanto em termos mentais/intelectuais quanto físicos. Um cérebro saudável gasta
20% da energia oriunda da alimentação
31
, impedindo a concentração das crianças famintas,
quando conseguem estar na escola. Os efeitos da fome e da desnutrição se estendem para o
coração, que encolhe e diminui a capacidade de bombear o sangue de forma adequada, e
para os demais órgãos vitais que deixam de filtrar toxinas e enfraquecem o sistema
imunológico, além de atingir pele e ossos em seu desenvolvimento saudável
32
.
E o “vírus da fome” parece estar longe de ser controlado. “A fomeaumentou em todo
o mundo nos últimos dois anos, e a situação o está perto de melhorar, aponta novo
relatório de braços de agricultura, alimentação se saúde da Organização das Nações
Unidas”
33
. Para o presidente do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola, Gilbert
Houngbo, “são números deprimentes para a humanidade. Continuamos nos afastando da
nossa meta de acabar com a fome até 2030”
34
. O atual modelo de desenvolvimento
condiciona a produção agrícola à planta industrial, ao uso de insumos químicos e não
voltada para a segurança alimentar e o alívio da pobreza de milhões de pessoas. “Se o
combate à fome era um desafio antes, a situação se intensificou com questões como o
aumento da cotação de grãos e outros itens essenciais no mercado internacional, além dos
gargalos na cadeia de suprimentos que têm gerado inflação em todo o mundo”
35
.
A marca da desigualdade coloca em situações dramáticas sujeitos que atuam em duas
pontas distintas do sistema de produção de alimentos: os que são vítimas da fome e
pequenos agricultores. Os agricultores produzem mais de 70% dos alimentos consumidos
por pessoas que vivem na Ásia e na África subsaariana, além de mais de 1,7 bilhão de
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27 GUIA A FOME NO MUNDO, Causas, consequências e soluções para um mal que assola o planeta, p. 14.
28 Ibid., p. 14–15.
29 Ibid., p. 15.
30 Ibid., p. 19.
31 Ibid., p. 21.
32 Ibid.
33 RIVEIRA, Carolina, Fome dispara no mundo e ONU aponta soluções; veja destaques do Brasil e outros países, p. 1.
34 Ibid.
35 Ibid.
30
pessoas que trabalham em outras regiões, apesar disso estão com dificuldades de suprir suas
próprias necessidades alimentícias
36
. Entre as principais causas estão o baixo investimento na
agricultura, infraestrutura, acesso a informações e tecnologias, importantes para acessar
mercados, aumentar a produtividade e se adaptar ao clima hostil. Exemplo disso é que, entre
2014 e 2018, apenas oito países africanos gastaram 10% ou mais do orçamento governamental
com agricultura. Pequenos agricultores também são frequentemente forçados a concorrer
com produtores rurais de países ricos que recebem subsídios de seus governos
37
.
Os conflitos armados e as guerras, independentemente se o locais ou de grandes
proporções e das motivações, e a pobreza estrutural de algumas regiões são potenciais
contagiosos deste vírus. Se os conflitos estão entre as principais causas da escassez de
alimentos, não é de surpreender que 8 dos 10 países e regiões com a maior incidência de
fome extrema estejam sendo afetados por níveis elevados de violência e insegurança
38
.
Segundo dados de 2019, 60% das 821 milhões de pessoas em situação de insegurança
alimentar e cerca de 80% das crianças com desenvolvimento comprometido pela
desnutrição do mundo viviam em países afetados por conflitos
39
. “Devastado por mais de
cinco anos de guerra, o Iêmen
40
está passando pela pior crise humanitária e de segurança
alimentar do mundo. Dois terços da sua população - 20 milhões de pessoas - estão passando
fome e quase 1,5 milhão de famílias dependem de ajuda alimentar para sobreviver”
41
.
Quando se soma aos conflitos outras situações como as crises climáticas, a situação
fica difícil de ser contornada. É o caso do Sudão do Sul, onde o alerta da ONU é de que 5,5
milhões de pessoas são atingidas pela fome, consequência das secas e inundações periódicas
que destroem lavouras e matam rebanhos
42
. “Mais recentemente, enxames de gafanhotos
do deserto têm devorado plantações e pastagens e temores de que esses enxames - que
podem conter centenas de bilhões de gafanhotos - aumentem ainda mais”
43
. Na região do
Sahel da África Ocidental, composta por Burkina Faso, Chade, Mali, Mauritânia, Níger,
Nigéria e Senegal, ainda fica em evidência a falta de apoio governamental, gerando a crise
de fome que mais cresce no mundo
44
. “Entre março e maio de 2020, estima-se que 13,4
milhões de pessoas estavam precisando de assistência alimentar imediata na região, em
decorrência de conflitos, das mudanças climáticas e da falta de apoio a pequenos
produtores rurais e de medidas para promover uma distribuição igualitária da riqueza
45
. A
violência forçou 4,3 milhões de pessoas a abandonarem seus lares, deixando 24 milhões de
pessoas carentes de assistência humanitária urgente, metade das quais crianças
46
. “A
insegurança também afetou a capacidade das pessoas de cultivar lavouras e criar gado,
especialmente no Chade, Burkina Faso e região norte do Senegal”
47
.
A América Latina, que havia avançado neste tema, está longe de resolver o
problema. O Brasil é um exemplo de movimentos significativos para acabar com a fome e
que passa por uma queda brusca nos últimos anos. “O Brasil voltou a ter prevalência de
subalimentação de 2,6% no biênio 2018-2020, e o número subiu para 4,1% da população no
MEZADRI, Neri José
A fome é sinal de contradição num tempo de abundância
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 23-39, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
36 OXFAM, O Vírus da fome: Como o coronavírus está aumentando a fome em um mundo faminto, p. 10.
37 Ibid.
38 Ibid., p. 13.
39 Ibid.
40 Localizado no Oriente Médio, a República Democrática do Iêmen, faz divisa, ao norte, com a Arábia Saudita. É um
território montanhoso e uma região fértil, tendo entre as marcas culturais a forte tradição islâmica. Disponível em:
<https://brasilescola.uol.com.br/geografia/iemen.htm> Acesso 31 mar./2013.
41 OXFAM, O Vírus da fome: Como o coronavírus está aumentando a fome em um mundo faminto, p. 14.
42 Ibid., p. 17.
43 Ibid.
44 Ibid., p. 18.
45 Ibid.
46 Ibid.
47 Ibid.
31
biênio 2019-2021 [...]. O número atual no Brasil é o pior desde o período 2008-2010”
48
. A
Venezuela, a Argentina e a Colômbia, por exemplo, também apresentaram dificuldades na
resolução de problemas da pobreza, com graves situações de fome da população. Após uma
crise econômica de grandes proporções e duradoura, a Venezuela estava mal preparada
para enfrentar a pandemia. “Mesmo antes da eclosão da pandemia, mais da metade das
pessoas em situação de fome na América Latina viviam na Venezuela”
49
. No ano de 2019,
“9,3 milhões de pessoas não estavam se alimentando adequadamente no país devido ao
desemprego em massa, à queda de renda, a um acesso muito limitado à ajuda humanitária
e à hiperinflação, entre outros fatores”
50
.
Em termos gerais, não é difícil de identificar a dramaticidade da realidade.
Em 35 países, a situação da fome foi classificada como grave. Em nove, como muito
grave. As maiores taxas estão no sul da Ásia e na África subsaariana. O Iêmen é
atualmente a nação com o pior desempenho, com uma pontuação de 45,1 sendo
que, quanto mais próximo de zero, melhor a situação da fome no país. República
Centro-Africana, Madagascar, República Democrática do Congo e Chade
completam a lista com as piores estatísticas. “Como mostra o IGF 2022, a situação
global da fome é sombria. A sobreposição de crises que o mundo enfrenta revela as
falhas dos sistemas alimentares, dos globais aos locais, e reforça a vulnerabilidade
das populações de todo o mundo em relação à fome”, escreve a ONG
51
.
Num contexto em que aproximadamente 29% da população mundial apresenta um
grau ao menos moderado de insegurança alimentar, o que equivale a 2,3 bilhões de pessoas, é
fácil identificar um retrocesso aos patamares de 2015, quando foi lançado o objetivo de acabar
com a fome e a insegurança alimentar até 2030. “Segundo os especialistas, ‘sem uma mudança
significativa’ a situação deve se agravar em 2023, e, neste momento, não projeções de que
o mundo alcance um nível baixo de fome a2030, conforme previsto na chamada Agenda
2030, traçada pela ONU e composta por objetivos de desenvolvimento sustentável”
52
.
3 AS PRINCIPAIS CAUSAS DA FOME NO MUNDO
Uma análise mais ampla deve ultrapassar a linha das causas diretas que podem estar
vinculados a fenômenos naturais/climáticos como secas e/ou políticos, como guerras e outras
decisões governamentais de grande impacto à população
53
, sem tirar a importância destas.
Faz-se necessário reforçar que não se restringem às decisões pessoais cotidianas, porque não
são elas as causas principais da pobreza, da miséria e da insegurança alimentar de milhares de
famílias. Ao lado das decisões e da materialidade dos fatos, constitui-se uma racionalidade
predominante, transformada em modo de vida competitivo, adequado às regras (escritas ou
não) de funcionamento da economia. Nesse campo, estão as causas mais profundas e as
relações mais complexas para compreender a desigualdade e a fome como consequência
permanente, com certas “sazonalidades” e/ou realidades mais conjunturais. Merecem atenção
o modelo de desenvolvimento econômico e modo de produção “pós-industrial” e a quase
consequente agricultura de exportação ou de commodities, com distintos impactos sobre a
MEZADRI, Neri José
A fome é sinal de contradição num tempo de abundância
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 23-39, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
48 RIVEIRA, Carolina, Fome dispara no mundo e ONU aponta soluções; veja destaques do Brasil e outros países, p. 3.
49 OXFAM, O Vírus da fome: Como o coronavírus está aumentando a fome em um mundo faminto, p. 20.
50 Ibid.
51 UOL, Fome atinge quase 830 milhões em todo o mundo, p. 2.
52 Ibid., p. 3.
53
Que as decisões políticas têm consequências, tanto por ações e talvez mais visivelmente por omissão ao não buscar
alternativas a problemas estruturais e/ou conjunturais como programas sociais e/ou a oferta de postos de trabalho – é algo
razoavelmente conhecido. Embora controversa, historicamente ficou conhecida a iniciativa desenvolvida por Mao Tsé-
tung, na China, entre 1958 e 1961, que teria imposto o deslocamento de trabalhadores da agricultura para outros setores e a
mudanças nas técnicas agrárias que se mostraram ineficientes, gerando drástica queda na produção de alimentos e milhões
de mortos. (GUIA A FOME NO MUNDO, Causas, consequências e soluções para um mal que assola o planeta, p. 11.)
32
população. As consequências mais diretas o o encarecimento do alimento, com a
dificuldade de acesso para as camadas populares, e o consumo de industrializados, às vezes
composto secundário do grão, produzido a poucos quilômetro
s de onde será consumido.
Embora fenômenos naturais como secas prolongadas produzam efeitos em si
mesmas, não podendo em tese ser evitados, eles o estão desconectados das regras de
funcionamento da economia. A questão crucial do atual problema da fome no mundo está
intrinsecamente ligada ao modelo de desenvolvimento econômico concentrador e que
premia de maneira desigual riquezas e bens, entre eles os fundamentais para garantir saúde
e qualidade de vida. Isso revela que não se trata da incapacidade de produzir o suficiente,
ou como se aventou em tempos passados, de que teríamos problema de desabastecimento
por conta do crescimento populacional desproporcional à produção. O problema é de
acesso e distribuição e/ou dos objetivos que orientam a produção não atenderem à
demanda por alimentação. A lógica da economia do mercado produtivo e do sistema
financeiro coloca em rotas desconexas pobres, miseráveis e famintos e produções recordes
de alimentos e produtos agrícolas, sejam de origem vegetal ou animal.
O sistema econômico, o processo produtivo e a teoria econômica mostraram
preocupação com o crescimento econômico e com a ampliação da riqueza ou mesmo em
aumentar o consumo, porém a redução da pobreza ou o atendimento aos excluídos não tem
recebido a mesma atenção
54
. Para Jung Mo Sung
55
, a mudança de foco da necessidade para o
desejo é expressão de uma transformação profunda no modo de agir, além de expressar o
predomínio da lógica do mercado sobre as noções cristãs, focadas no atendimento às
necessidades básicas. “Quando se pensa em partir dos desejos não limites, se busca o
ilimitado. E quando se deseja o ilimitado nunca sobra nada para partilhar; sempre falta.
Portanto, não se aceita um diálogo sobre redistribuição de renda e riquezas”
56
. À medida em
que se avança do critério da necessidade para o limite a busca pessoal e o parâmetro do que
pode ser considerado justo ou ético perde o sentido, abrindo espaço para o acúmulo
ilimitado de bens. O resultado não é apenas o crescimento ilimitado da desigualdade, mas
também sua legitimação social, sendo apontado inclusive como fruto do mérito pessoal.
Temos consciência de que a fome é um problema histórico, portanto, crônico da
humanidade. O Guia “A fome no mundo”
57
, que resgata os períodos e regiões em que a
fome assolou de maneira mais acentuada, faz menção inicial ao Império Romano, ano 476
a.C. Os fenômenos naturais e os conflitos são como que os traços conjunturais,
responsáveis por expressar que grupos sociais estavam em situação de miséria e fome em
cada período histórico. Isso dependia das medidas políticas e até da transformação da fome
em estratégia para enfraquecer e/ou tornar vulnerável o inimigo de guerra. Em outras
palavras, o efeito humano, com benefícios políticos e econômicos para um grupo em
detrimento de outro sempre está presente, seja por omissão e/ou decisão deliberada. No
contexto atual, de economia globalizada faz-se necessário um diagnóstico detalhado para
perceber as sutilezas e relações indiretas das políticas de financeirização da economia e das
ações das grandes corporações, com impactos gigantescos sobre as economias dos países.
Uma passada rápida pelo tema da agricultura revela como o modelo de
desenvolvimento econômico se articula e, de alguma maneira, condiciona seu
funcionamento. É visível o incentivo ao agronegócio, através de linhas de crédito e de
práticas permissivas quanto à utilização de defensivos agrícolas ou mesmo práticas que
permitem avançar para cima de regiões de matas, como no caso da Amazônia. O agronegócio
é poderoso e tem tido muita força política para fazer atender suas demandas,
avançando para
MEZADRI, Neri José
A fome é sinal de contradição num tempo de abundância
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 23-39, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
54 SUNG, Jung Mo, Desejo, Mercado e Religião, p. 54.
55 Ibid., p. 55–56.
56 Ibid., p. 57.
57 GUIA A FOME NO MUNDO, Causas, consequências e soluções para um mal que assola o planeta, p. 10–13.
33
a concentração de terras e dispersando mão de obra, pessoas que vão disputar os escassos e
precários empregos, com a utilização de grandes máquinas e alta tecnologia. “Poderosos
comerciantes de produtos agrícolas, empresas de alimentos e bebidas e supermercados que
dominam o setor de alimentação conseguem ditar o preço e os termos do comércio de
alimentos”
58
. O poder de barganha e pressão exercido pelas grandes corporações que
atuam na comercialização de commodities produz redução de custos e maximização de
lucros, submetendo produtores e trabalhadores a salários de pobreza e forçando-os a
arcarem com os riscos da produção.
Por outro lado, “milhões de pequenos agricultores e trabalhadores estão lutando para
sobreviver”
59
. O fato de boa parte dos agricultores ficar à margem de políticas
governamentais tem grande impacto na insegurança alimentar da população, especialmente,
porque produzem grande parte de frutas, legumes e verduras e por isso podem ser
considerados a espinha dorsal na produção de alimentos
60
. A relevância das mulheres neste
campo também merece atenção. Segundo estimativa da ONU para Alimentação e
Agricultura (FAO), se “as mulheres tivessem o mesmo acesso a recursos produtivos que os
homens, elas poderiam aumentar a produção em suas propriedades rurais em até 30% -
reduzindo o número de pessoas que passam fome no mundo em até 17%”
61
.
3.1 A economia que serve aos donos do dinheiro
As mutações recentes da economia globalizada têm efeito imediato e prolongado na
reestruturação do mercado produtivo. O predomínio nos últimos 40 anos das políticas
econômicas neoliberais, marcado pela lógica privatista, que defende a diminuição dos
custos sociais do Estado e a desregulação da economia porque fundamentada na ideologia
de que os capitalistas dinamizam e aquecem as transações econômicas. É como se o Estado
fosse concebido como inibidor das iniciativas individuais e, além de o estimular o
desenvolvimento econômico, sua atuação seria responsável por criar barreiras à
concorrência privada, motor do desenvolvimento. Na prática, exige-se que o Estado atue
segundo critérios privatistas, fazendo crer que a liberdade absoluta ao mercado cria
mecanismos em que todas as pessoas sejam beneficiadas. A desigualdade é, para estes,
consequência natural e regra justa, beneficiando trabalhadores e espertos, e punindo
preguiçosos, inconsequentes e aqueles que não conhecem as leis do mercado.
O neoliberalismo é uma etapa específica do capitalismo, que tem em sua natureza a
lógica intrínseca do lucro por parte de quem investe. Embora cada país tenha construído
uma experiência a seu modo, algumas experiências históricas tiveram impacto grandiosos
para que a mentalidade e a materialidade do Estado de bem-estar, fundamental na
reconstrução do s-guerra, fosse transformado em Estado (e ampliado para um modo de
vida) neoliberal. A Inglaterra de Margaret Thatcher e os Estados Unidos de Ronald
Reagan foram decisivos à medida que tiveram força política e usaram truculência policial
para impor derrotas à organização sindical e às conquistas trabalhistas, liberando o
mercado para uma nova fase de ampliação dos lucros. Aliás, essa realidade revela o quanto
o “fim do Estado” não é propriamente um desejo dos capitalistas neoliberais, ao menos até
que organizem seus exércitos de seguranças particulares.
É preciso olhar para os efeitos econômicos das políticas neoliberais para além da
ideologia que sustenta a noção de que seria a única fórmula capaz de gerar aquecimento
econômico. “Efeitos redistributivos e uma desigualdade social crescente têm sido de fato
MEZADRI, Neri José
A fome é sinal de contradição num tempo de abundância
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 23-39, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
58 OXFAM, O Vírus da fome: Como o coronavírus está aumentando a fome em um mundo faminto, p. 11.
59 Ibid.
60 RIVEIRA, Carolina, Fome dispara no mundo e ONU aponta soluções; veja destaques do Brasil e outros países, p. 4.
61 OXFAM, O Vírus da fome: Como o coronavírus está aumentando a fome em um mundo faminto, p. 6.
34
uma característica tão persistente do neoliberalismo que podem ser considerados estruturais
em relação ao projeto como um todo”
62
. A noção de restruturação do poder de classe e os
dados imediatos de concentração de renda ficam em evidência. “O 0,1% mais rico dos Estados
Unidos aumentou sua parcela da renda nacional de 2% em 1978 para mais de 6% por volta de
1999, enquanto a proporção entre a compensação mediana dos trabalhadores e o salário de
CEOs passou de apenas 30 para 1 em 1970 a quase 500 para 1 por volta de 2000”
63
. A Grã-
Bretanha, Rússia e também a China gerou, com a adoção de práticas do livre mercado, surtos
extraordinários de concentração de riqueza e desigualdade socioeconômica
64
. A concentração
da riqueza, associada a medidas de aceleração e ampliação de serviços financeiras, fim a sociedade
de subsistência e ao alto uso de tecnologia e mudança na matriz produtiva, flexibilização
das leis
trabalhistas e a considerável precarização do mercado de trabalho tornam uma parcela
importante da população sujeita à renda insuficiente ou inexistente. A fome é a realidade
trágica da outra ponta da riqueza, das fusões e reestruturações das grandes corporações, das
transações financeiras isentas de impostos e dos altos salários por empregos escassos.
Nesta fase, o capitalismo de mercado interfere profundamente nas bases do modelo
de produção, amplia de maneira drástica a margem de lucratividade e as possibilidades de
investimento, com centralidade no “mercado especulativo” e profundos condicionamentos
no funcionamento da economia global. E isso tem consequências no aumento da fome no
mundo? Em seu conjunto, considerando a reorganização das empresas, as fusões e a
constituição de grandes corporações com predomínio de dividendos oriundos de ações e a
definição da produção vinda do consumo e pelo retorno financeiro gerado, a economia gira
a partir de novas bases, com interferência no mundo do trabalho e por consequência na
rentabilidade das camadas populares. Dois pontos são fundamentais neste campo e se ligam
direta e indiretamente à dificuldade de acesso à alimentação suficiente e adequa à parcela
significativa da população: a) aumenta significativamente a margem de lucratividade do
investimento especulativo, com a ampliação dos serviços bancários; b) a agricultura,
principalmente o agronegócio, detentor de áreas de terra muito grandes e em crescimento
(inclusive na Amazônia), centra sua produção em commodities e não em alimentos.
Essa lógica de funcionamento da economia gera vínculo entre a produção primária e o
serviço financeiro, pelo caminho do dinheiro, além de, em termos gerais, gerar concentração,
de capital, riqueza, propriedade e poder, financeirização e controle absurdo das grandes
corporações sobre a política. O princípio de sustentação é: “grande demais para quebrar!”
65
Em
economias em que muitas corporações têm orçamentos superiores e de muitos países, o risco
apresentado à economia com a quebra de uma grande corporação não quer ser assumido por
nenhum governo. Em economia de escala e em que o mercado regula a produção, produz-se o
que gera alta margem de lucro. Alguns dados acerca do funcionamento da economia são bem
relevantes para compreendermos a atual tendência ao investimento em serviços da dívida,
títulos, ações e outras modalidades no campo dos ofícios bancários ampliados. O primeiro
dado diz respeito ao avanço da economia num ritmo aproximado de 1,5% a 2% ao ano
66
, o que
expressa uma lógica desproporcional de ganhos e perdas.
A remuneração do trabalho, no entanto, não tem acompanhado os progressos
tecnológicos, como a robotização e outras tecnologias, que estão revolucionando
os processos produtivos. A quase totalidade do aumento de riqueza adicional
produzida vai para os 10% mais ricos e, em particular, para o 1% superior. Esta
renda nas mãos dos mais ricos, a partir de certo nível, não
tem como se
MEZADRI, Neri José
A fome é sinal de contradição num tempo de abundância
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 23-39, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
62 HARVEY, David, O neoliberalismo: História e implicações, p. 26.
63 Ibid.
64 Ibid.
65 Confira os acontecimentos recentes do Credit Suisse e os detalhes da “compra do banco”.
66 DOWBOR, Ladislau, A era do capital improdutivo: A nova arquitetura do poder, sob dominação financeira, sequestro
da democracia e destruição do planeta, p. 139.
35
transformar em consumo, e passa a ser aplicada em diversos produtos financeiros,
cuja rentabilidade está na ordem de 5% para aplicações médias, subindo para 10%
para aplicações de grande vulto com gestores financeiros profissionais
67 68
.
Chamamos a atenção para o ponto da disponibilidade de valores que não podem ser
transformados em consumo e lembramos do episódio recente dos jogadores brasileiros que se
alimentaram de “carne banhada a ouro”
69
, fato que gerou repercussão. O escândalo não se deu
por conta da existência, por óbvio não os únicos consumidores de tal especiaria e de tantos
outros bens duráveis e não duráveis altamente sofisticados. Pode ir fundo na imaginação em
todas as áreas possíveis de consumo. Pois bem, valores não podem ser transformados em
consumo porque o nível da produção de bens de consumo não acompanha. É o que o
raciocínio lógico faz pensar. Não havendo consumo possível, transforma-se em novo
investimento com rentabilidade superior, consideravelmente superior, ao da “economia real”.
Parece interessante saltarmos direto deste ponto, sem pontos de contato na vida real, à
incapacidade de acessar os bens básicos, a alimentação cotidiana, o arroz, o feijão, sem a carne
(mesmo aquela sem o ouro e às vezes só o osso). Essa é a imagem que queremos expressar em
palavras ao leitor para traduzir o nível da desigualdade, a intensidade da barriga que dói por
fome, porque está vazia de tudo, com a abundância de não ter onde “gastar o dinheiro”.
Uma questão importante a considerar neste contexto de sensibilização é que toda boa
ação e mudança de atitude pessoal é fundamental. Mas é preciso, além da emoção que tende a
ser temporária, o compromisso político e o controle estatal – só o Estado pode, se é que ainda
pode, desde que seus representantes governamentais queiram e saibam como fazer para
mudar esta lógica. É precisamente neste ponto que se entende o porquê e de qual intervenção
estatal os defensores do capitalismo neoliberal tinham ojeriza. Não parece possível resolver
problemas de tamanha magnitude, embora expressos simbolicamente através de pessoas
reais, sem discutir a economia global. E não se trata de desprezar soluções locais,
comunitárias, antes pelo contrário, é ali onde ocorrem o reconhecimento pessoal e o resgate
da dignidade, da identidade, algo que nenhuma medida governamental alcança. É que a
realidade que salta aos olhos é reveladora. “Com o rendimento sobre o capital ultrapassando
fortemente os avanços da própria economia, na realidade, gera-se um processo cumulativo de
enriquecimento proporcionalmente maior dos que já são mais ricos”
70
.
Para citar um outro ponto fundamental em termos econômicos e que tende a
ampliar as desigualdades, ao menos no modo como está organizada a carga tributária
brasileira. O tributo sobre o capital põe a carga em quem tem patrimônio elevado,
enquanto o imposto sobre o consumo torna proporcionalmente oneroso para quem já tem
baixa renda. Os paraísos fiscais são a ponta mais visível desse iceberg e porto seguro para
quem quer manter grandes fortunas sem passar pelo fisco. Ao entendermos que o
problema está relacionado ao acesso e distribuição dos bens e riquezas produzidos pela
sociedade, não podemos ignorar esse debate, uma vez que na outra ponta de quem tem
dificuldade de consumir por dispor de muito dinheiro está a precariedade, a instabilidade,
a insegurança, o desemprego, a pobreza, a miséria e a fome, como expressam os dados.
MEZADRI, Neri José
A fome é sinal de contradição num tempo de abundância
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 23-39, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
67 Vale a pena dar atenção ao debate em terno dos juros que se estabelece no contexto brasileiro do início deste ano e
buscar os desdobramentos sobre ganhos e perdas, beneficiados e prejudicados, dos juros altos.
68 DOWBOR, Ladislau, A era do capital improdutivo: A nova arquitetura do poder, sob dominação financeira, sequestro
da democracia e destruição do planeta, p. 139–140.
69 A notícia que virou polêmica ocorreu no Catar, em novembro de 2022, quando alguns jogadores e ex-jogadores da
seleção foram a um restaurante em que essa carne fazia parte do cardápio. Disponível em: <https://www.uol.com.br/
esporte/futebol/copa-do-mundo/2022/11/30/jogadores-na-copa-aproveitam-folgas-para-experimentar-carne-
folheada-a-ouro.htm> Acesso em 23 mar./2023.
70 DOWBOR, Ladislau, A era do capital improdutivo: A nova arquitetura do poder, sob dominação financeira, sequestro
da democracia e destruição do planeta, p. 140.
36
3.2 A racionalidade que sustenta a desigualdade e a fome
A racionalidade reforçada pela materialidade dos fatos é a concorrencial ou de
desempenho. “O homem neoliberal é o homem competitivo, inteiramente imerso na
competição mundial”
71
. Grifo dos autores). Primeiro se constitui um modelo bem específico
de funcionamento da empresa e depois a empresa passa a ser as referências para tudo, desde
as relações pessoais, o Estado, transformando a lei do mercado em lei universal. Trata-se de
uma nova articulação ente os valores hedonistas do consumo e os valores ascéticos do
trabalho. A corrosão progressiva dos direitos e a diminuição do poder de compra dos
trabalhadores, com consequente dependência dos empregadores, somadas às exigências
impostas pela dinâmica dos “sujeitos empreendedores” condiciona a que “se adaptem
subjetivamente às condições cada vez mais duras que eles mesmos produziram”
72
. A empresa
passa a ser um espaço de competição, apresentando-se como lugar de inovação, mudança,
adaptação às variações da demanda do mercado e busca de excelência
73
. Subjetivamente,
torna-se um “especialista em si mesmo, empregador de si mesmo, inventor de si mesmo,
empreendedor de si mesmo: a racionalidade neoliberal impele o eu a agir sobre si mesmo
para fortalecer-se e, assim, sobreviver na competição”
74
. O processo é tão profundo que “a
responsabilidade do indivíduo pela valorização do seu trabalho no mercado tornou-se um
princípio absoluto”
75
. A governança neoliberal de si mesmo “consiste em fabricar para si
mesmo um eu produtivo, que exige sempre mais de si mesmo e cuja autoestima cresce,
paradoxalmente, com a insatisfação que se sente por desempenhos passados”
76
. Em outras
palavras: “A fonte da eficácia está no indivíduo: ela não pode mais vir de uma autoridade
externa. É necessário fazer um trabalho intrapsíquico para procurar a motivação profunda”
77
.
Essa mentalidade toma conta de corações e mentes, e se transforma em regra ou
modo de vida. O mecanismo funciona a partir do cálculo do interesse pessoal, em que cada
um foca exclusivamente nos benefícios pessoais possíveis. Ocorre que numa realidade de
recursos escassos ou limitados a concentração gera como consequência a falta em outra
ponta, não sendo se sustentando a noção de que todos ganham. Mesmo a atuação do
Estado fica sujeito a questionamentos. A venda da dívida blica que permite a alta
lucratividade para alguns não diminui o poder de investimento em setores cruciais como
saúde e educação? Esta é uma prática sustentável a longo prazo? A estratégia de não
perceber o efeito direto, uma possível precariedade no serviço público e que atinge a
camadas populares, faz crer que todos ganham e que se trata de uma solução louvável.
Quando, na verdade, trata-se de uma racionalidade amarrada via sistema econômico,
criando condicionamentos, capturando a subjetividade e sustentada ideologicamente.
no mundo em que mandam os mercados da riqueza, os vencedores e perdedores se
dividem em duas categorias sociais: os que, ao acumular capital financeiro, gozam
de “tempo livre” e do “consumo de luxo”; os que se tornam dependentes crônicos
da obsessão consumista e do endividamento estão permanentemente ameaçados
pelo desemprego, e, portanto, obrigados a competir desesperadamente pela
sobrevivência. Esses controles suaves e despóticos foram se apoderando das
mentes e das almas e apresentados como a prova da soberania do indivíduo
78
.
MEZADRI, Neri José
A fome é sinal de contradição num tempo de abundância
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 23-39, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
71 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian, A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, p. 322.
72 Ibid., p. 329.
73 Ibid., p. 330.
74 Ibid., p. 330–331.
75 Ibid., p. 335.
76 Ibid., p. 344–345.
77 Ibid., p. 345.
78 BELLUZZO, Luiz Gonzaga; GALÍPOLO, Gabriel, A escassez na abundância capitalista, p. 94.
37
Se a materialidade sustenta a subjetividade, esta é transformada em racionalidade
coletiva que ratifica o funcionamento do modelo, criando uma circularidade importante
para a manutenção do atual estágio das coisas. A captura da política se dá de forma direta a
partir da atuação de representantes nas instâncias legislativo e executiva e através da
pressão ideológica de representantes no mundo acadêmico e midiático. Não se trata de
conspiração, mas de sustentação ideológico originada na formação acadêmica e no
financiamento direto ou indireto. Quem ousa questionar no campo político, sabendo que a
profecia pode custar não apenas as próximas eleições, mas o aniquilamento de reputações.
Neste sentido, é fundamental a criação e fortalecimento de espaços alternativos para a
formação crítica. É preciso reconhecer que o momento histórico é de crise de utopias e
criatividade, o que fragiliza as poucas iniciativas que se alimentam da cooperação e do
espírito de solidariedade. Quem acredita não pode desistir.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fizemos, neste texto, um diagnóstico das principais causas, em abordagem ampla, da
fome no mundo, tema indissociável do debate acerca das regras que regem a economia. À
medida que submetemos o funcionamento da sociedade às regras do mercado financeiro
temos que estar conscientes de que avançamos na direção da concentração de poder e
riqueza, aprofundando a desigualdade, portanto, a miséria e a fome. As guerras, na quase
totalidade produzidas pelo interesse financeiro, e as crises climáticas estão entre causas
importantes, sem esquecer do modelo econômico que pune os vulneráveis. A
racionalidade baseada no cálculo do interesse pessoal não produz condições favoráveis
para o fim da fome e nem se quer colocar esta possibilidade em pauta. Aliás, do ponto de
vista lógico e a partir do que apontam os indícios e sinais mais visíveis caminhamos na
direção contrária ao da solução da fome. Não estamos suficientemente empenhados,
enquanto humanidade, nem se quer aceitando, muito menos desejando, uma sociedade
para todos. Seria o caso de abandonar a esperança e as utopias de dias melhores? Aos
cristãos implicaria abandonar a fé no Deus da promessa, que caminha e faz História.
Um sistema que permitiu que as 8 maiores empresas de alimentos e bebidas do
mundo desembolsassem mais de US$ 18 bilhões para os seus acionistas desde o
início de 2020, no mesmo momento em que a crise do COVID-19 se espalhava
pelo mundo. Esse valor equivale a mais de 10 vezes o volume de recursos para
assistência alimentar e agrícola solicitado no apelo da ONU por ajuda
humanitária diante da COVID-19
79
.
“A fome é um lembrete de que a humanidade é responsável por suas próprias
necessidades. Coloca diante de nossos olhos tanto a nossa condição de viventes mortais
quanto a nossa responsabilidade para com as necessidades de cada um”
80 81
. A fome é
urgente e quem a sente não está preocupado em saber por que ela existe. A fome é para ser
saciada. cabe elogio e incentivo a iniciativas, campanhas de doação de alimentos, que
visam atender o problema imediato. O trabalho incansável desenvolvido sob a liderança de
padre Júlio Lancelotti na Pastoral do Povo de Rua, em São Paulo, em nível eclesial, e o
Programa Fome Zero, em nível governamental, estão entre as iniciativas louváveis.
Infelizmente, enquanto sociedade, estamos tendo dificuldade de atender a urgência e ainda
avançando na direção da ampliação do fosso que separa quem tem acesso de quem depende
da “caridade” de outros. Enquanto para alguns, acabar com a fome é questão ética ou
MEZADRI, Neri José
A fome é sinal de contradição num tempo de abundância
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 23-39, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
79 OXFAM, O Vírus da fome: Como o coronavírus está aumentando a fome em um mundo faminto, p. 2.
80 A frase é de Alexandre Soljenitsyne em artigo do Instituto Humanitas Unisinos.
81 FRÉDÉRIC, Boyer, O inferno é a fome, p. 2.
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compromisso político, os cristãos são movidos pela fé e pela esperança a atuarem na defesa
da vida. A fome deve gerar desconforto e nos incomodar porque o nossos semelhantes
que estão à beira do caminho, clamando por socorro.
Acabar com a fome no mundo não pode se reduzir a campanhas esporádicas ou
permanentes. É preciso avançar no resgate da dignidade a partir da oportunidade de
trabalho e da conquista do “pão de cada dia”. É possível pensar, depois de tantos avanços
tecnológicos e de tamanha reestruturação produtiva, numa sociedade com trabalho para
todos? Quem não tem trabalho o merece comer? A terceira grande revolução,
tecnológica e/ou informacional, traz à tona alta produtividade com dispensa de o de
obra. É urgente e decisivo para garantir condições mínimas de vida avançar na
implementação de uma renda básica universal. Discuta-se as bases, as fontes de recursos e
a maneira de gerenciar, não se adie a medida, sob pena do caos social. É papel dos Estados-
nação e sustenta-se na noção mínima de coletividade e interdependência.
Mesmo sabendo da complexidade do problema temos que invocar a esperança. A
crença nas pequenas alternativas e na capacidade de buscar saídas a partir dos pequenos
grupos, das iniciativas comunitárias, de trocas, de compartilhamento e de pequenos gestos
de solidariedade produz novidade e revigora a esperança. Ao lado dessas iniciativas, a
esperança na transformação da realidade e na superação do problema precisa levar à
criatividade e ao compromisso político com mudanças estruturais. Devemos cultivar o
espírito de mansidão e promover a paz, ao mesmo tempo em que o momento exige certa
ira. Quando se trata de situações de injustiça, produtoras de miséria e fome, a indignação e
a ira devem tomar nosso ser, denunciando práticas e atitudes incoerentes com o espírito
do Evangelho. Como afirma Aldir Blanc, “A fome tem que ter raiva para interromper”
82
.
Se não solução para a fome sem mexer na economia, precisamos entender e fazer
pressão para que ela não seja reduzida a mecanismo de concentração, em que grandes
corporações ganham cifras exorbitantes às custas da miséria de muitos. Todavia, é preciso
ter clareza de que as pessoas resistem a abandonar seus “impérios” e o engajamento implica
tocar a subjetividade. Assim como a adesão às políticas neoliberais tocaram à
subjetividade, a mudança necessita de pontos de contato, de valores que toquem as pessoas.
Enquanto diagnóstico, o engajamento com aderência atual é o da ultradireita política
somada ao conservadorismo de costumes. Não parece que daí surgir compromisso
obsessivo pela justiça social. Sejamos criativos, porque sem adesão pessoal e sem a
capacidade de produzir sentidos e significados subjetivos nenhuma causa, por mais nobre
ou urgente que seja, produz adesão por si só.
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82 VANNUCHI, Camilo; CAMARGO, Simone de, Fome: como enfrentar a maior das violências, p. 7.
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