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PEREGRINOS DE UM
MUNDO NOVO
reexões vocacionais a partir de Dom
Helder Camara
PILGRIMS OF A NEW WORLD
vocational reections inspired
by Dom Helder Camara
Ivanir Antonio Rampon*
Eberson Fontana**
Lenice Rebelato***
Resumo: O presente artigo discorre sobre a vocação de Dom Helder
Camara, importante bispo brasileiro, lembrado pela sua opção pelos
pobres. O itinerário seguido perpassa o despertar vocacional, os anos de
seminário, o amadurecimento e a compreensão de vocação segundo a
espiritualidade helderiana. Sob a inspiração da obra O deserto é fértil,
desenvolve sua tese central ao aprofundar o conceito de minorias
abraãmicas, de onde é possível entrever intuições para os vocacionados do
tempo presente. Dom Helder apresenta um caminho para a doação total da
vida através da superação do egoísmo, o enfrentamento das cruzes e a
identificação das grandes causas pelas quais vale a pena dedicar a vida.
Palavras-chave: Dom Helder Camara. Vocação. Chamado. Opção pelos
Pobres. Minorias abraâmicas.
Abstract: The present article talks about the vocation of Dom Helder
Camara, an important brazilian bishop, remembered for his option for the
poor. The itinerary runs through the vocational awakening, years in the
seminary, maturance and vocational awareness according to the herderian
spirituality. Under the inspiration of the work The desert is fertile,
develops his main thesis deepening the concept of abrahamic minorities,
where it is possible to glimpse intuitions for the vocations of the present
time. Dom Helder shows a way to the total life donation through the
overcoming of selfishness, the facing of the crosses and the identification
of the great causes of which are worth dedicatinglife.
Keywords: Dom Helder Camara. Vocation. Call. Option for the poor.
Abrahamic minorities.
v. 40, n. 134, Passo Fundo,
p. 62-76, Jan./Jun./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:
dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i134.177
* Possui graduação em Filosofia pela
Universidade de Passo Fundo (1996),
graduação em Teologia pela Itepa Faculdades
(2000), mestrado em Teologia pela Faculdade
Jesuíta de Filosofia e Teologia (2004),
doutorado em Teologia Espiritual pela
Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma
(2011).
E-mail: iarampon@yahoo.com.br
https://orcid.org/0000-0003-2882-440X
** Presbítero da Arquidiocese de Passo
Fundo, bacharel em Filosofia pelo Instituto
Superior de Filosofia Berthier (IFIBE), de
Passo Fundo/RS. Graduado em Teologia e
pós-graduado em Espiritualidade pela Itepa
Faculdades, de Passo Fundo/RS.
E-mail: ebersonfontana@yahoo.com.br
https://orcid.org/0009-0007-7184-7160
*** Religiosa da Congregação das Irmãs de
Notre Dame, Licenciada em História pela
Universidade de Passo Fundo (UPF)/RS.
Pós-graduada em Metodologia de Ensino
Religioso pela Universidade de Passo Fundo
(UPF)/RS. Pós-graduada em Espiritualidade
pela Itepa Faculdades, de Passo Fundo/RS.
E-mail: lenice@notredame.org.br
https://orcid.org/0009-0001-5958-7825
Recebido em 12/05/2023
Aprovado em 03/08/2023
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INTRODUÇÃO
Quem foi Dom Helder Camara? Uma pessoa simples, mas ao mesmo tempo especial,
que deixou marcas com seu jeito único de ser, com sua visão ampla, profética, abrindo
portas para o aggiornamento da Igreja. Sua vida foi notadamente carismática, um amante
de Jesus Cristo, da vida e dos pobres. Como “bispo das favelas” sua vocação foi vivida
intensamente, merecendo reconhecimento internacional por defender os Direitos
Humanos. Com seu espírito de simplicidade e de sorriso fácil, cativava desde pessoas
humildes e simples até nomes renomados.
Falar sobre um vocacionado não se restringe a citar os grandes feitos dignos de uma
boa biografia jornalística: é, sobretudo, apontar para a profundidade de uma vida repleta
de sentido e bem vivida. Por isso, a profundidade de sua vida e a forma como Helder
respondeu ao chamado de Deus, o processo de cultivo e crescimento dentro do seminário,
a formação permanente e as conversões enquanto padre e bispo e a própria atenção à
dimensão vocacional permitem amplas contribuições que lançam luzes ao tempo presente.
O despertar vocacional, a resposta ao chamado divino, é o primeiro passo de uma
longa jornada. Por isso, cabe olhar com atenção para o jovem Helder, o que será realizado
na sequência...
1 O DESPERTAR VOCACIONAL
Dom Helder Pessoa Camara nasceu em Fortaleza/CE no dia 7 de fevereiro de 1909 e
faleceu em 27 de agosto de 1999. Filho de João Eduardo Torres Camara Filho e Adelaide
Pessoa Camara, tinha 13 irmãos. Helder era o décimo primeiro filho. Na sua ampla
biografia, consta a defesa dos direitos humanos e diversos prêmios, entre eles, o Prêmio
Martin Luther King, nos Estados Unidos, quatro indicações ao Nobel da Paz e o Prêmio
Popular da Paz, na Noruega.
A infância de Helder Camara foi marcada pela religiosidade, no Nordeste das
procissões, da devoção aos santos, à Virgem Maria, do profundo respeito pela pessoa do
padre e inúmeras outras expressões de fé. Na família, enquanto o pai João Eduardo era
adepto dos ideais maçônicos e, ao mesmo tempo, do catolicismo, a mãe expressava sua
devoção através das imagens e uma participação mais efetiva na Igreja. Na vida dela
prevalecia uma consciente, própria de uma professora com ideais pedagógicos e
antropológicos à frente de seu tempo.
Alguns episódios da adolescência de Helder ajudam a aprofundar a imagem de Deus
e da pessoa humana predominante no seio familiar. Segundo Ivanir Rampon, a mãe não
expressava uma leitura diabólica da sexualidade, algo presente na religiosidade popular do
século XX: “ensinava que todo corpo humano fora criado por Deus pois alguns diziam
que certas partes foram criadas pelo diabo. Também dizia que, se existe o mal no mundo, é
sobretudo, por causa da fragilidade humana”
1
. Esta visão sobre Deus repercutia na relação
com os filhos, com uma presença de ternura e de liberdade, própria de quem tem uma
relação próxima com o Deus de Jesus Cristo. Uma relação assim é fundamental para o
ambiente de discernimento vocacional. Este ambiente explica o motivo pelo qual Helder
gostava de brincar de rezar missas e de acompanhar celebrações, aproximando-se dos
padres e de Deus.
Se é possível identificar na presença da mãe Adelaide um acompanhamento
progressivo no amadurecimento vocacional de seu filho, uma frase ouvida do seu pai,
1 Ivanir Antonio RAMPON, O caminho espiritual de Dom Helder Camara, p.30.
RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice
Peregrinos de um mundo novo: reflexões vocacionais a partir de Dom Helder Camara
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 62-76, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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diante da manifestação do desejo de ser padre, foi marcante na vida de Helder Camara. Ao
perceber que o filho perseverava na convicção em ser padre, seu pai expressou o que
significava ser padre para ele: “Você sabia que para uma pessoa ser padre, ela não pode ser
egoísta, o pode pensar em si mesma? Ser padre e ser egoísta é impossível, eu sei, são
duas coisas que não combinam”
2
. Diante da provocação inesperada, a resposta foi convicta:
“Pai, é um padre como o senhor está dizendo que eu quero ser”
3
. A clareza da resposta lhe
rendeu a bênção de seu pai. Ao mesmo tempo, pode ser vista como uma resposta ao
chamado de Deus e ao clamor do seu povo. Ao longo da vida, essa resposta se tornou
concreta naquele que foi um dos mais eloquentes porta-voz do Deus - amor no século XX.
Outro elemento significativo para um despertar vocacional foi a relação com a
realidade que o cercava. A família tinha boa inserção social e o jovem Helder tomou o
caminho da vida presbiteral consciente dos desafios que se apresentavam. Merece destaque
sua participação na Conferência Vicentina e na política. A motivação fundante da vocação
e suas raízes são significativas para a caminhada vocacional. Neste contexto, o jovem
discerniu a vocação e expressou o desejo de ser padre.
No período do despertar vocacional do menino Helder também aparece a figura de
José. Este era o nome de um dos seus irmãos falecidos e, por conta disso, quase foi o nome
dado a Helder. O nome, contudo, não foi esquecido e sua e o utilizava para revelar seu
apoio e presença em momentos extremos de dificuldade ou de grande alegria diante do
filho Helder. Ainda jovem, ele nomeou seu anjo da guarda de José e com ele dialogou por
toda a vida com grande devoção. No despertar vocacional, Jofoi, de certo modo, para
Helder o que o anjo Gabriel representou para Maria. Sua presença constante em
momentos de crise ajudou a superar o medo. Mais tarde, suas vigílias são marcadas pelas
“meditações do Pe. José”, codinome utilizado em momentos fortes, que expressam
principalmente a dimensão mística helderiana, onde prevalece a “vitória da Graça”
4
.
1.1 Anos no Seminário
Após o despertar vocacional, aos 14 anos, o jovem entrou no Seminário São José da
Prainha, em Fortaleza/CE. A bagagem de estudos existente em sua família fez com que no
Seminário se destacasse nos estudos, mas também se destacava a paixão vocacional.
Evidenciava-se sua profundidade espiritual na forma de viver e na beleza expressa na vida,
na arte, na poesia.
Diversos episódios do tempo de seminário chamam atenção. Seu hábito de escrever
meditações desconcertou seu reitor, que, ao confundi-las com poemas, temia pela perda da
vocação. O então seminarista, contudo, mesmo seguindo o pedido do reitor de deixar de
lado a “poesia”, manifestava a consciência de que a criatividade e a imaginação são dons
divinos e, portanto, aproximam as pessoas de Deus.
O encontro com o Pe. Cícero, quando o seminarista foi enviado à sua paróquia para
obter assinaturas do jornal da diocese, tem contornos especiais. Apesar de ser difamado
naquele meio de comunicação, o Pe. Cícero deu uma lição de humildade, revelando que
“[...] no coração de um cristão, e sobretudo de um padre, não cabe uma gota de ódio”
5
. A
proximidade do padre interiorano com o povo simples não passou despercebida pelo
jovem seminarista. O testemunho ficou marcado em sua memória e viria a ser uma das
tônicas de sua própria vida.
2 Ivanir Antonio RAMPON, O caminho espiritual de Dom Helder Camara, p.31.
3 Ivanir Antonio RAMPON, O caminho espiritual de Dom Helder Camara, p.31.
4 Cf. Circular 175 de 23/24-3-65.
5 Apud Ivanir Antonio RAMPON, O caminho espiritual de Dom Helder Camara, p.36.
RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice
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Nos seus 22 anos de idade, Helder foi ordenado presbítero. Isto foi possível com a
autorização especial da Santa Sé, pois não tinha a idade mínima de 24 anos. Foiordenado
bispo, aos 43 anos de idade, no dia20 de abrilde 1952.
Prestes a realizar seu sonho de infância e juventude, o então seminarista Helder
passou por uma crise vocacional, pois surgiu a ideia de contribuir para a Igreja como um
leigo, à semelhança de Jackson de Figueredo e Alceu Amoroso Lima, importantes
intelectuais da época. O Papa Francisco, em fala sobre o Pacto Educativo Global, reflete
sobre o aspecto positivo e necessário das crises:
Nós devemos aprender e ajudar para que os outros aprendam a viver as crises,
porque as crises são uma oportunidade para crescer. As crises são gerenciadas e
devemos evitar que elas se transformem em conflito. As crises tiram você da
zona de conforto, te fazem crescer; o conflito te fecha, é uma alternativa; uma
alternativa sem solução, sem resolução. Educar para as crises. Isso é muito
importante. Deste modo ela pode se tornar um kairós as crises –, são um
momento oportuno que nos provoca a trilhar novos caminhos
6
.
A crise do seminarista Helder foi superada com orações, conversas com sua mãe e o
Pe. Tobias, reitor do seminário. A partir disso, ele decidiu-se pelo caminho sacerdotal. Dali
surgiu a clareza da necessidade de transformar a própria vida em oração, aprofundando a
espiritualidade e vivência presbiteral. Desta decisão nasceram as vigílias.
O seguimento a Jesus Cristo exige a conversão da mente, do coração e vai se
expressando nas ações. Olhando para a vida de Dom Helder, percebe-se o
desenvolvimento da atitude de humildade e obediência que o levou a um processo de
conversão. Aos poucos foi vivendo mais a opção pelos pobres, em sintonia com o
Evangelho, aproximando-se de Deus e respondendo aos apelos da realidade.
2 O DEUS QUE CHAMA, CAPACITA E ENVIA EM MISSÃO
Falar sobre a compreensão de vocação de Dom Helder e sobre o seu processo
vocacional pessoal leva ao aprofundamento da mística que guiou este percurso. Ele praticou
seu lema episcopal, “Em tuas os”, através de espiritualidade filial que foi progredindo
ao
longo da vida e gerando opções concretas, de acordo vontade de Deus. Ele expressou,
através de seus escritos e do testemunho de vida, “conhecimento de Deus” (Os 6,6), de seu
rosto: Deus lhe esteve presente desde o ventre materno, no núcleo familiar, até as décadas
de difamação e silêncio. Muitas vezes, imaginava e sonhava, com o face a face no céu…
2.1 O Deus presente nos mocambos, nas crianças abandonadas e nos
famintos
O amor e opção pelos pobres e a sensibilidade para com as injustiças sociais são
critérios fundamentais para ser discípulo de Jesus, e mais ainda para a descoberta de uma
vocação específica. A vida dos pobres está no cerne da missão assumida por Jesus (cf. Lc
4,18). O Papa Francisco afirma que a proximidade com as periferias e com a pessoa do
pobre o irrenunciáveis para ser cristão. No âmbito vocacional, “O empenho social e o
contato direto com os pobres continuam a ser uma oportunidade fundamental para
descobrir ou aprofundar a fé e para discernir a própria vocação” (CV 170).
Helder aprendeu desde cedo o valor supremo da vida e da dignidade humana. Ainda
assim, a clareza da opção pelos pobres e o enfrentamento das injustiças sociais se deu com
6 PAPA FRANCISCO, Encontro com os participantes do Congresso “Linhas de desenvolvimento do Pacto Educativo Global”.
RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice
Peregrinos de um mundo novo: reflexões vocacionais a partir de Dom Helder Camara
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o amadurecimento progressivo de sua fé. A vocação não aparece como um dado pronto e
preestabelecido e precisa ser cultivada e amadurecida com a ação da Graça de Deus e um
olhar sensível para com a realidade do povo. É possível lançar estes dois olhares sobre o
amadurecimento da opção vocacional de Helder, em relação a um projeto que contempla a
transformação social.
Um olhar para a ação de Deus e as opções decorrentes em Dom Helder contempla
um longo caminho. Em sua maturidade espiritual era conhecido com títulos como o de
“bispo das favelas”. Sua atividade intensa junto aos mais pobres, em várias frentes, pode
esconder de um olhar superficial, focado em suas obras, que o ponto de partida foi sua
relação mística com Deus. Seu “pecado de juventude”
7
, foi a militância junto ao
integralismo, movido por um desejo de defender a instituição e os valores tradicionais.
Mais tarde, com uma capacidade invejável de organização e liderança, dedicou forças em
grandes eventos, como o Congresso Eucarístico Internacional de 1955, vendo-o como uma
oportunidade de dar projeção para a Igreja. Após o grande sucesso do evento, foi
interpelado pelo cardeal Gerlier: “Por que, querido irmão dom Hélder, não coloca todo este
seu talento de organizador que o Senhor lhe deu a serviço dos pobres?”
8
A resposta a esta
provocação foi rápida, mas foi se consolidando e amadurecendo nas vigílias, na oração e
no aprofundamento. Este foi o ponto de inflexão de sua vida. O processo de configuração a
Jesus Cristo, Bom Pastor, foi despertando a consciência de que, em meio à realidade sub-
humana dos pobres da época, projetos estavam em jogo. Optar pelo projeto de Jesus gera
uma de olhos abertos: “ouço falar, sem tremer, em Bom pastor. Ele existe. Moramos
juntos. Vivemos juntos. Meu trabalho é levá-lo para o meio dos homens”
9
.
O segundo olhar que contribuiu para o amadurecimento e cultivo vocacional foi a
proximidade com a realidade concreta do povo. Não foi um passo separado da fé, mas uma
opção amadurecida concomitantemente. No período em que esteve no Rio de Janeiro, e
depois de forma mais intensa com o seu povo de Olinda e Recife, destaca-se uma
proximidade de quem conhece os pobres pelo nome. A predisposição em estar com os
últimos já está presente no seu discurso de tomada de posse em sua diocese: “no Nordeste,
Cristo se chama Zé, Antônio, Severino...”
10
. O Palácio de Manguinhos e, mais tarde, a
Igreja das Fronteiras se converteram na casa dos pobres. Além de ir diretamente às
periferias, os pobres vinham até ele: “Há sempre mais de 200 pessoas, à tarde, desejosas de
falar com o Dom”
11
.
Esta postura de Dom Helder, buscando a Deus e indo na direção dos irmãos
necessitados, a exemplo do Bom Pastor, se consolida como um programa de vida e de
cultivo da vocação nos tempos atuais através do ministério do Papa Francisco. Este foi um
dos seus primeiros pedidos ao assumir o pontificado: “Como eu gostaria de ter uma Igreja
pobre para os pobres”
12
. A opção helderiana pelos pobres cativava pessoas como padre
Henrique, posteriormente martirizado, em vista da sua opção pelos pobres e como forma
de atingir e enfraquecer o ímpeto profético de Dom Helder.
A prática de Dom Helder junto aos excluídos foi muito intensa. Sua proximidade
com os habitantes dos mocambos revela a atitude de alguém que tocou na carne dos
pobres: mulheres excluídas, desempregados, crianças desnutridas... Suas posturas e
7 Expressão usada por Dom Helder em diálogo com Tapia de Renedo. Apud Ivanir Antonio RAMPON, O caminho
espiritual de Dom Helder Camara, p.51.
8 Ivanir Antonio RAMPON, O caminho espiritual de Dom Helder Camara, p.105.
9 Circular 181 de 20/21-4-1965.
10 Dom Helder CAMARA apud Ivanir Antonio Rampon, O caminho espiritual de Dom Helder Camara, p.149.
11 Circular 55 de 15/16-7-64.
12 PAPA FRANCISCO, Audiência com a imprensa, 16 de março de 2013.
RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice
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iniciativas geraram um verdadeiro “arrastão profético”, engajando muitas pessoas na
mesma luta. A convergência de pessoas nesta opção espiritual foi decisiva para a Igreja
brasileira e latino-americana, especialmente em Medellín e Puebla. Por tudo isso, assim
como acontecia entre os primeiros cristãos, uma vocação vivida com intensidade e com o
horizonte do Evangelho se torna a melhor animação vocacional!
2.2 Companheiro de vigília, do silêncio, das grandes decisões e que gosta de
brincar
A prática das vigílias foi uma opção firmada por Helder pouco antes da sua
ordenação presbiteral para que não fosse “engolido pelo mundo”, evitando um ativismo no
qual ele poderia se perder nas grandes causas e projetos e deixar de lado o cultivo
espiritual. Este espaço de estudo, oração, contemplação e planejamento, em meio às
madrugadas, se tornou decisivo para a sua espiritualidade.
A vigília helderiana é única e original. Embora possa ser comparada com a prática de
oração de outros grandes místicos cristãos, sua forma de rezar e de preparar-se para os
próximos passos de sua missão ganhou traços próprios. Uma dinâmica de oração e de
discernimento faz toda a diferença no cultivo vocacional. Neste aspecto, o ritmo orante de
Dom Helder é marcado pela regularidade. As horas de vigília, a começar pelas duas da
manhã, revelam que a oração o era um peso para ele, mas “uma conversa de camaradas
que não deve ter formalismos nem cerimônias um com o outro”
13
. A expressão faz lembrar
da oração de Jesus, que dialogava por longos períodos, ainda de madrugada, com o Abba-Pai
para discernir sua vontade e orientar a vivência do seu projeto de vida. O Papa Francisco
aponta para uma relação de liberdade com Deus como espaço fecundo para o
discernimento e cultivo vocacional:
Na sua Palavra, encontramos muitas expressões do seu amor. É como se Ele
estivesse procurando maneiras diferentes de manifestá-lo para ver se, com
alguma dessas palavras, pode chegar ao teu coração. Por exemplo, às vezes
apresenta-Se como aqueles pais carinhosos que brincam com seus filhos:
“Segurava-os com laços humanos, com laços de amor, fui para eles como os que
levantam uma criancinha contra o seu rosto” (Os 11, 4) (CV 114).
Nas madrugadas de vigília, Dom Helder se sentia tão à vontade com Deus e com seus
amigos espirituais, como João XXIII, Paulo VI e São Francisco, que conseguia romper a
formalidade do “tu”, tornando-se quase um “eu”. É a configuração plena! Em suas palavras,
“Deus se cansa de parecer importante e sério o dia inteiro. São tão poucos os que sabem
como Ele é criança e gosta de brincar”
14
.
3 COMPRE ENSÃO HELDERIANA DE VOCAÇÃO
Dom Helder foi um animador vocacional em sua maneira de viver e de amadurecer
a visão sobre o sentido da vida e da missão. Sua compreensão sobre vocação pode ser vista
sob duas perspectivas: a vocação universal à doação, que compreende a humanidade
inteira, e as vocações específicas dentro da Igreja. Em ambos os casos, é preciso trilhar um
caminho o ousado como apaixonante. Na medida em que se penetra no pensamento
helderiano sobre esse tema, em tempos de Papa Francisco, é visível a proximidade e os
paralelos entre os apontamentos de Dom Helder e do Sumo Pontífice.
13 POTRICK apud Ivanir Rampon, O caminho espiritual de Dom Helder Camara, p.306.
14 Circular 182 de 24/25-4-1965.
RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice
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Nos pontos a seguir, busca-se delinear a compreensão helderiana sobre vocação. Em
vista da vastidão de sua vida e obra, o foco é o livro “O deserto é fértil”, um roteiro de vida
para as minorias abraâmicas. O livro é uma obra de espiritualidade que provém da
meditação da própria espiritualidade helderiana, somado a contribuições de outros
integrantes das minorias.
3.1 Vocacionado a doar-se por inteiro
Diversas mudanças, que vieram para ficar ao longo da história da Igreja, partiram do
clamor do povo. Quando os seus pastores são capazes de interpretar sua realidade e
anseios, surgem novidades apaixonantes. Movido por sua esperança em um mundo novo e
proximidade com o Deus Libertador, Dom Helder acreditava na irrupção de profundas
transformações na Igreja e na sociedade. A libertação dos oprimidos e a construção de um
mundo novo têm o seu ponto de partida nas pessoas de boa vontade, que desejam dedicar
sua vida para o bem do próximo.
Dom Helder denomina estas pessoas de minorias abraâmicas. Trata-se de um
conceito inédito e original que une pessoas de diferentes religiões e etnias pelo mundo.
Estas pessoas, espalhadas por todos os lugares, têm em comum o espírito de irmãos e de
transformação frente às injustiças da sociedade. o pessoas que não se fecham em seu
pequeno mundo, nos pequenos problemas ou nos problemas das instituições a que
pertencem. Estas pessoas o além, se juntando em vista de uma transformação profunda
do mundo e das grandes causas para a humanidade.
Uma das novidades do conceito cunhado por Dom Helder é sua capacidade de
pensar uma mudança eclesial e social a partir de uma mística que une as pessoas de boa
vontade em grandes causas em prol da humanidade. Para quem orienta sua vida dentro da
lógica individualista ou prefere a comodidade da vida dos grandes centros e das áreas
nobres este chamado se torna inaudível. Porém,
Quem vive nas áreas onde milhões de criaturas humanas vivem de modo
subumano, praticamente em condições de escravidão, se não tiver surdez de alma,
ouvirá o clamor dos oprimidos [...] É fácil, relativamente fácil, escutar o chamado
de Deus [...]. Difícil é não parar em atitudes emotivas de compaixão e pesar
15
.
Os integrantes desse grupo, de diferentes religiões, línguas e povos, motivados pela
sua sensibilidade diante das injustiças e dos problemas que atingem as mais diferentes
realidades, são chamados a pensar a humanidade inteira: “Onde, em que lugar do mundo,
não injustiças, contrastes, divisões? Onde as injustiças não funcionam como violência-
mãe de todas as violências?”
16
Deste passo surgem as causas importantes na construção de
um mundo de mais justiça e fraternidade.
As minorias abraâmicas são vocacionadas a revolucionar a abordagem dos temas
cruciais para a humanidade. Preparam dias melhores ao se contrapor à violência armada
através da não-violência ativa. Para isso, sabem ser necessário muito mais que pequenas
intervenções ou reformas em sociedades apegadas às armas como recurso para
perpetuar as injustiças.
Em sua mensagem por ocasião do 56º Dia Mundial de Oração pelas Vocações, o
Papa Francisco destacou esse elemento. Suas palavras recordam que a promessa de um
mundo novo, para acontecer, exige que o vocacionado assuma os riscos da missão. Deus
não chama para coisas banais, mas para feitos desafiadores. Em suas palavras:
15 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.24-25.
16 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p. .
RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice
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Aceitar a chamada do Senhor quer dizer deixar-se envolver totalmente e “correr
o risco” de enfrentar um desafio inédito; é preciso deixar tudo o que nos impede
de fazer uma escolha definitiva; é preciso audácia para descobrir o projeto que
Deus tem para nós. Devemos confiar na promessa do Senhor
17
.
O enfrentamento das estruturas e posturas injustas, em todos os lugares do mundo é
muito mais que exercício de uma visão política ou uma bandeira de um grupo religioso.
No pensamento helderiano, trata-se de uma vocação mais ampla: doar-se!
Para Dom Helder, um dos espaços capazes de dar força e concretude a essas minorias
são as Comunidades Eclesiais de Base. Ali, as pessoas que sonham com a transformação da
Igreja e do mundo descobrem forças para tensionar com as estruturas de injustiça e passam
a tecer relações baseadas na solidariedade, na justiça e no amor. Dom Helder expressa este
horizonte: “As minorias abraâmicas sentem, pressentem que o segredo para a mudança da
igreja está em Comunidade de Base, que tentam concretizar os grandes textos e as belas
conclusões do Vaticano II”
18
.
O crescimento da consciência libertadora também carrega o potencial da
transformação das estruturas eclesiais através do diálogo e da vivência humilde de um
novo jeito de ser Igreja. Essas mudanças acontecem em esferas paroquiais, diocesanas, nas
conferências episcopais e precisam chegar a Roma: “Quem conhece a ria Romana sabe
que existe, dentro dela, uma esplêndida minoria abraãmica. [...] Falta apenas quem se
decida a articular a minoria, sem o mais leve espírito de grupo fechado ou de complô”
19
.
3.2 As cruzes na vida dos vocacionados
Os vocacionados que abraçarem a grande causa da libertação dos oprimidos e a
dinâmica do Reino de Deus não podem se iludir: haverá cruzes e desertos em sua jornada
transformadora. Os poderosos, quando veem ameaçados os seus projetos, fazem de tudo
para conter a mudança. Algumas vezes poderão até ajudar os pobres, mas não aceitam que
se pergunte sobre a origem da injustiça. Por isso, somente unidas, as minorias poderão
manter a esperança e prosseguir seu caminho na construção de novos céus e nova terra.
O chamado de Deus e os dons concedidos a cada vocacionado são diferentes. Nas
palavras do Dom, “Deus parece injusto, mas não é. Pede mais de quem recebe mais”
20
. Esta
conclusão emergente de um olhar para a vocação de Abraão não visa uma postura de
superioridade, mas simplesmente uma oportunidade de servir mais intensamente. Dom
Helder sabia por experiência pessoal que Deus “Prova-os através de sacrifícios terríveis. Mas
sustenta-os, encoraja-os. Dá-lhes a missão arriscada e bela de ser instrumentos de chamadas
divinas”
21
. As vocações específicas dentro da Igreja podem ser vistas sob esta ótica. O chamado
considera a particularidade das vocações específicas. Todas elas, porém, são orientadas
para
um horizonte maior: a construção do Reino de Deus e a sua justiça (cf. Mt 6,33).
A consciência da cruz diante das opções evangélicas, como é o caso da opção pelos
pobres, permite abraçar as opções decisivas para a vida. Sem elas a vida é tomada pelo
marasmo. O Papa Francisco expressa a mesma compreensão ao alertar os jovens e
vocacionados para não confundirem a felicidade com o sofá, ou seja, com uma vida de
17 PAPA FRANCISCO. Mensagem do Papa para o 56° Dia Mundial de Oração pelas Vocações.
18 Dom Helder CAMARA, o artesão da paz, p.149.
19 Dom Helder CAMARA, o artesão da paz, p.150.
20 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.14.
21 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.14.
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comodidades, onde as opções mais importantes costumam ser postergadas indefinidamente.
“Abraão recebeu muito? Respondeu muito. Respondeu ao máximo. Serviu”
22
.
Ontem e hoje, Deus tem esperança, chama pessoas de boa vontade e sustenta os seus
na luta por justiça, por direitos, por projetos alternativos. A consciência helderiana de que
o grupo abraâmico é fundamental para um mundo novo, faz indagar sobre o perfil e os
espaços onde se investe na animação vocacional. A presença nos círculos onde estão sendo
discutidas as questões que mexem com a vida das pessoas e a organização de grupos de
vanguarda no que é crucial para a humanidade, se torna um terreno fecundo para o
surgimento de todas as vocações. Contudo, não basta esperar a colheita! É preciso realizar
o processo, organizar e dar oportunidade, ouvir os clamores dos pobres e ter a consciência
de que os vocacionados que despertam para este horizonte precisam pensar grande, ao
invés de serem reprodutores das estruturas existentes. É preciso estar nas periferias. O
processo de conversão passa pela formação e pelo cultivo de estruturas “evangelizadas”,
onde os pobres e excluídos têm protagonismo. É preciso abrir os olhos dos que se sentem
chamados, a fim de perceberem o que Deus deseja de suas vidas.
Um dos limites constatados por Dom Helder nestas minorias é sua dificuldade em se
unirem. Os perseguidores sabem disso e seguidamente ridicularizam quem deseja
trabalhar por um mundo mais justo, como forma de desencorajar e afastar os demais.
Também trabalham para descaracterizar sua mística. Dom Helder foi muitas vezes
chamado de comunista, agitador, bispo vermelho, de forma preconceituosa e rasa, para dar
a entender que sua opção pelos pobres era somente um projeto político ao invés de
expressão da espiritualidade do seguimento a Jesus Cristo.
Acompanhar os vocacionados, mostrando as cruzes que decorrem das opções do
Evangelho, é uma tarefa que exige o testemunho. Jesus desejava discípulos com uma clara
opção pelo Reino de Deus e sua justiça e não escondia as consequências. No Evangelho de
Lucas, por exemplo, antes de chegar a Jerusalém, Jesus realiza três anúncios da paixão para
despertar a consciência das implicações do seguimento. Também a Pastoral Vocacional se
torna um espaço de anúncio integral da vocação: a vocação presbiteral, por exemplo, não
se reduz ao serviço do altar ou ao aspecto da imagem do “ser padre”. Pior ainda é
clericalizar as demais vocações! Como assinala o Concílio Vaticano II: “As alegrias e as
esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos
aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos
discípulos de Cristo” (GS 1).
3.3 A superação do egoísmo e a dilatação da vida
Arranca-me, Senhor dos falsos centros. Livra-me, sobretudo, de colocar em
mim mesmo meu próprio centro... Como não compreender, uma vez por todas,
que fora de Ti tudo e todos somos excêntricos?
23
Ontem e hoje, é comum a sociedade e até mesmo pessoas religiosas identificarem os
grandes males da sociedade. No tempo de Dom Helder isso também era comum.
Costumava-se demonizar o comunismo, o ateísmo, modernismo, entre outros. Dom
Helder foi construindo outro olhar. Ao partir dos dons recebidos de Deus e da vocação a
que cada um é chamado, em especial a de pertencer às minorias abraâmicas, sua conclusão
é que teremos paz - tanto em âmbito pessoal quanto comunitário - quando os dons forem
colocados a serviço. A felicidade não se apresenta como um ativismo desenfreado, antes
22 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.15.
23 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.11.
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como consciência de uma missão recebida de Deus e realizada por inteiro. Um dos vazios
dos vocacionados - tanto durante o amadurecimento e a formação, quanto depois de
assumirem sua vocação - é a crise da missão. É comum que ela apareça com mais força
quando a vocação não foi vivida por inteiro, com a devida intensidade e o contato com as
grandes causas de libertação da vida do povo.
Ao fazer leitura semelhante sobre a vida, Dom Helder situou uma fonte diferente da
maioria das pessoas do seu tempo para o mal que aflige o mundo e as pessoas. A batalha
decisiva para um mundo novo deve ser travada contra o egoísmo! Nas palavras do Dom:
É importante alertar contra a tentação do egoísmo. De vez em quando o
desânimo sopra. Rebenta, forte a impressão de que não adianta querer pensar
nos outros. Parece que a saída única é desistir de idealismos, ser prático, cuidar
de si e apenas de si. A experiência demonstra que o egoísmo é fonte segura de
infelicidade pessoal e de infelicidade em torno de si. O fundamental é rmar-se
na opção de alargar pensamento e coração
24
.
Quem se entrega ao egoísmo, acaba por dar voltas em torno de si mesmo. Mesmo
pensando ser grande, com essa postura revela a insignificância de sua existência e a
estreiteza de um horizonte de vida. Mais uma vez salta aos olhos a semelhança com o
pensamento do Papa Francisco que, ao falar sobre as vocações específicas e a resposta ao
chamado divino, compreende que a vocação dilata a vida, expande os horizontes para além
do próprio “eu”. Segundo a Evangelli Gaudium, a autorreferencialidade expressa o fechamento
na relação com Deus e com as pessoas (EG 8). A Igreja em saída é uma Igreja que, ao invés
de olhar para os próprios problemas ou se vangloriar de insígnias, vestes ou obras
suntuosas do passado, se conta que tem uma missão para realizar, a qual acontece na
medida em que vai ao encontro das pessoas nas periferias existenciais e sociais.
A tendência humana ao fechamento e egoísmo se manifesta nos dias de hoje em suas
diversas formas. A Encíclica Fratelli Tutti discorre sobre essa realidade:
Mas a história sinais de regressão. Reacendem-se conflitos anacrônicos que
se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados,
ressentidos e agressivos. Em vários países, uma certa noção de unidade do povo
e da nação, penetrada por diferentes ideologias, cria novas formas de egoísmo e
de perda do sentido social mascaradas por uma suposta defesa dos interesses
nacionais. Isto lembra-nos que cada geração deve fazer suas as lutas e as
conquistas das gerações anteriores e levá-las a metas ainda mais altas. É o
caminho. O bem, como aliás o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam
duma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia (FT 11).
Vocação e egoísmo não combinam. Padre e egoísmo não combinam. Religioso(a) e
egoísmo não combinam. Vocações leigas, matrimônio e egoísmo não combinam. Vocação
e doação total da vida combinam!
3.4 A voz de Deus nos oprimidos
Uma experiência bíblica fundante que permitiu conhecer mais a fundo quem é Deus
e iniciar uma jornada milenar segundo os seus desígnios pode ser localizada no Êxodo.
Naquela ocasião, diante de tamanha injustiça e opressão por conta do sistema piramidal
egípcio, Javé disse: “Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu
clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos. Por isso, desci para libertá-
lo do poder dos egípcios e para fazê-lo subir dessa terra para uma terra fértil e espaçosa,
24 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.20.
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terra onde corre leite e mel” (Ex 3,7-8). Desde então, passando pelos profetas e chegando à
proclamação do Reino de Deus e a sua justiça pela boca de Jesus, está claro que Deus, além
de estar ao lado dos pobres, tem neles a sua voz e seu rosto.
Dom Helder foi ainda mais longe ao recordar que mesmo Abraão escutava Deus no
seu povo. Ao olhar para a realidade brasileira do seu tempo, nas inúmeras periferias em
que esteve e suscitou processos para uma vida mais digna, como o Banco da Providência
25
,
o Dom dos Pobres ouviu novamente aquela mesma voz: “Quem vive em áreas onde
milhões de criaturas humanas vivem de modo subumano, praticamente em condições de
escravidão, se não tiver surdez de alma, ouvirá o clamor dos oprimidos. E o clamor dos
oprimidos é a voz de Deus”
26
.
Segundo o relato de alguns santos e místicos, ao longo da história cristã, escutar a
voz de Deus nem sempre é fácil. Tantos testemunham processos de décadas para poderem
afirmar terem ouvido essa voz. Para Dom Helder, diante do grito dos pobres, escancarado
em tantas favelas e periferias, “É fácil, relativamente fácil, escutar o chamado de Deus
através dos acontecimentos do nosso tempo e do nosso meio. Difícil é não parar em
atitudes emotivas de compaixão e de pesar. Dificílimo é arrancar-nos do comodismo
[...]”
27
. O pobre se torna lugar místico e teológico no encontro com Deus. Mais uma vez, o
Papa Francisco manifesta sua sintonia espiritual com as palavras de Dom Helder, ao dizer
que a busca por uma vida cômoda e o aburguesamento do coração paralisam a vida dos
vocacionados. Por outro lado, o contato com a carne de Cristo na pessoa dos pobres,
abandonados, doentes e marginalizados possibilita a superação da passividade
28
.
3.5 Uma causa para dedicar a vida
Por fim, um último conselho aos vocacionados extraído da obra helderiana seria
possível ir muito além é o de não buscar apenas um cargo, posição, estado de vida ou se
ver contente a fazer parte de uma instituição ainda que as instituições sejam necessárias.
É preciso ter uma causa pela qual vale a pena dedicar a vida! reside o segredo para ser
eternamente jovem. De fato, ao longo de sua vida, Dom Helder se deparou com pessoas
assim, como é o caso do Papa João XXIII, que debilitado no corpo, teve uma mente
jovem para convocar o Concílio Vaticano II e o aggiornamento da Igreja.
Contudo, o Dom não parou por aí, que existem “causas e causas”. quem
dedique a vida a causas mesquinhas, marcadas pelo individualismo e o egoísmo. Gastar a
vida em torno de armas, do ódio e da violência certamente não compensa. Existem
questões, diante das quais a vida se torna plena de sentido. Dom Helder lembra do
movimento abolicionista brasileiro:
[...] é fácil entender a vibração dos jovens que corriam, alegremente, riscos,
ajudando escravos a escapar para a liberdade e promovendo todo um belo
movimento de opinião pública para derrubar a estrutura da escravidão. Poetas,
jornalistas, tribunos, sacerdotes [...] fraternizavam na luta sagrada de querer
livres todos os filhos de Deus!
29
A busca pela independência de todos os povos, através dos movimentos
anticolonialistas aparece como exemplo, entre tantas outras causas significativas em favor
25 Iniciativa encabeçada por Dom Helder, o banco foi fundado em 1959 com o objetivo de auxiliar os mais necessitados.
26 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.23.
27 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.25.
28
Cf. PAPA FRANCISCO, Missa de canonização de Laura Montoya e María Guadalupe García Zavala, 12 de maio de 2013.
29 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.38.
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de um mundo livre. Viver uma vocação “de sacristia” sabendo da existência da causa do
século é uma tolice. A causa para a qual toda e qualquer vocação precisa estar orientada é
“[...] completar a libertação dos escravos sem nome e que são, hoje, dois terços da
Humanidade; completar a independência política dos países que conquistaram a própria
soberania, encorajando-os a obter a independência econômica [...]”
30
.
No tempo presente, este paradigma de reflexão possivelmente contemplaria
problemáticas como o decolonialismo e a questão ecológica. A escravidão contemporânea
é mais sutil e fica visível na dificuldade das sociedades pobres em se libertarem da
dependência do pensamento e culturas dos países ricos, propositalmente difundidas com a
finalidade de dominação. A urgência em abraçar a questão ecológica, por sua vez, coloca
em xeque o modelo de vida baseado no lucro e no consumo desenfreado e ameaça a
existência futura da humanidade.
Um olhar para o pensamento de Dom Helder deixa claro que vocações fechadas em
falsas seguranças, das mais diferentes naturezas, ou ingênuas em relação à realidade e ao
mundo em que vivem o tendem a perdurar ao se depararem com a realidade do povo. O
pior acontece quando travam os processos de libertação, por o desejarem assumir a
postura de Jesus e do Evangelho. Os peregrinos de um mundo novo enfrentarão desertos,
precisarão estar abertos ao diálogo, terão que sair de si, conjugando a com a vida. Mas
nada disso é em vão. Viver a vocação, responder a Deus por inteiro é apaixonante!
Não, não pares. É graça divina começar bem. Graça maior, persistir na caminhada
certa, manter o ritmo... Mas a graça das graças é o desistir. Podendo ou não podendo,
caindo, embora aos pedaços, chegar até o fim...
31
Assim como o grupo dos discípulos de Jesus era inicialmente pequeno, mas foi capaz
de dar passos na construção do Reino de Deus e sua justiça, é fato que, em meio à pressão
da sociedade atual, marcada pelo individualismo e a idolatria do dinheiro, também o
poucos os que despertam como peregrinos de um mundo novo. Porém, a atuação de
poetas, jornalistas, membros da Igreja com um olhar para os pobres, tem um potencial
transformador que não pode ser ignorado.
4 ASVOCAÇÕESDE DOM HELDER
Dom Helder viveu sua vocação de ministro ordenado de forma intensa. Seu carinho pelo
sacerdócio foi cultivado desde cedo. Este amor é visível na forma como o sacerdócio foi vivido
e aparece em algumas declarações, tais como: “se eu nascesse cem vezes, cem vezes eu
agradeceria a Deus a vocação para o sacerdócio”
32
e ainda, “a missa é o ponto alto do meu dia”
33
.
Ao longo da vida foram descobertas outras “vocações especiais” ou formas de
aprofundar o chamado recebido. Por rias vezes, o Dom expressou o fato de se sentir
chamado para fazer a diferença em frentes, como a vida profética, a promoção da paz, do
Concílio Vaticano II, em formar grupos e estar junto aos pobres.
O ato de estar ao lado dos pobres é uma “vocação especial” helderiana bastante
destacada. Depois da guinada em sua vida, motivada pela indagação do Cardeal Gerlier
“Por que, querido irmão Dom Hélder, não coloca todo este seu talento de organizador que
o Senhor lhe deu a serviço dos pobres?”
34
, despontou mais esta vocação. A partir de então,
30 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.39.
31 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.41.
32 Dom Helder Camara ser padre, Youtube.
33 Apud Ivanir Antonio RAMPON, O caminho espiritual de Dom Helder Camara, p.328.
34 Apud Ivanir Antonio RAMPON, O caminho espiritual de Dom Helder Camara, p.105.
RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice
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as periferias e as causas que afligiam a vida do povo passaram a ocupar lugar central em
sua vida e missão. Sua vocação aos pobres permitiu que o palácio episcopal se tornasse casa
dos pobres e de todo o povo. Do mesmo modo, a casa dos pobres se tornou também a sua
casa. Como Jesus, a Boa Notícia do Evangelho frutificou em meio aos pobres.
Dom Helder sentiu-se chamado a ser pregador do Concílio Vaticano II. Nos
bastidores do Concílio, realizou seu “apostolado oculto”, optando por não falar nas sessões
plenárias, mas fazendo um trabalho intenso na mobilização de teólogos, nas reuniões com
os bispos e articulações. O trabalho de Dom Helder contribuiu para a abertura da Igreja e a
consistência dos documentos. Mas foi vivendo e colocando em prática a nova imagem de
Igreja do Concílio que Dom Helder descobriu sua vocação complementar de pregador do
Vaticano II. Em meio aos desafios e retrocessos do tempo presente, urge a retomada desta
vocação helderiana.
A promoção da paz foi outra pauta à qual Dom Helder se sentiu chamado a assumir.
Em meio à década de 1960 e 1970, sua luta em favor dos direitos humanos e contra as
injustiças, durante a uma ditadura militar, ganhou repercussão mundial. Ao lado de
personalidades como Madre Teresa de Calcutá, proferiu inúmeras conferências,
denunciando a realidade brasileira e semeando caminhos novos, como o da não-violência
ativa. O reconhecimento pelo Nobel da Paz o veio por conta da articulação do
governo militar, que fez intensas campanhas internacionais de difamação do bispo
brasileiro, favorito ao prêmio em 1970 e 1971. Em 1972 a estratégia do governo ficou tão
explícita, que a comissão do Nobel preferiu não entregar o prêmio a ninguém.
A vocação para trabalhar em grupos também merece destaque. Não faltam exemplos
dessa atuação. A Família Mecejanense lhe deu sustentação e se tornou um elo de diálogo e
envolvimento nas grandes causas em que esteve envolvido. Seus registros das vigílias nas
madrugadas, partilhados com a família, sustentavam a opção e impulsionavam para a
missão. Seus amigos espirituais das vigílias são um grupo muito especial: João XXIII,
Paulo VI, São Francisco de Assis, São Vicente de Paulo são alguns destes amigos
espirituais. Sua metodologia pastoral contemplava o envolvimento de muitas pessoas dos
meios eclesiais, sociais e culturais. E como não lembrar das pessoas que se aproximavam e
eram envolvidas graças às noitadas de literatura, artes, filosofia e teologia? A presença de
crianças, dos pobres e o diálogo com todas as pessoas revelam como Dom Helder fazia
questão de estar rodeado de gente e o fato de saber, como poucos, despertar e envolver
estas forças em torno de projetos. Ivanir Rampon destaca esta característica:
Desde o seminário, Helder tinha uma capacidade enorme de trabalhar em
equipe. Ele aglomerava, liderava, despertava para o bem, para a verdade, para o
belo, para a unidade. Com isso, Deus fez grandes maravilhas em sua vida e, por
meio dele, na vida da Igreja e do mundo. Esse seu modo de ser, essa sua
espiritualidade e mística foram extremamente importantes para que fundasse a
CNBB e o Celam, conduzisse o Congresso Eucarístico Internacional de 1955 e a
renovação da Ação Católica Brasileira e fosse um dos grandes articuladores dos
padres no Vaticano II.
[...]
O estilo helderiano de “governar” despertava para a “eclesiologia do povo de
Deus”, na qual o clero se sentiu presbítero, corresponsável com seu bispo pela
caminhada local, enquanto os leigos se organizavam em comunidades, em
pastorais, em associações, em movimentos e setores paroquiais e, em comunhão
com a hierarquia, assumiam suas responsabilidades na evangelização, dando
conscientemente sua indispensável contribuição para a construção do Reino de
Deus – Reino de paz, justiça e amor
35
.
35 Dom Helder: um testemunho para os presbíteros. Disponível em: https://www.vidapastoral.com.br/artigos/dom-helder-
um-testemunho-para-os-presbiteros/
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O grupo de Espiritualidade e Estudo Re-Vivendo Dom Helder Camara, ligado à
Itepa Faculdades, compartilha e busca viver estas vocações especiais helderianas. O ato de
formar grupo no cultivo de uma amizade espiritual permite assumir as opções de Jesus, em
especial a opção pelos pobres, em sintonia com o Concílio Vaticano II a Igreja latino-
americana e o pontificado do Papa Francisco
36
. O Grupo tem consciência que faz parte da
nossa comunidade espiritual, o querido Dom Helder Pessoa Camara!
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A habilidade única conjugada com a espiritualidade do seguimento a Jesus Cristo
permite entrever na vida de Dom Helder uma vocação marcada pelo cultivo, a busca e a
valorização dos dons recebidos no encontro com os pobres. Ao chamar os discípulos, Jesus
pediu uma entrega total. Com o vocacionado Helder, Deus colheu uma resposta
abundante, com uma vida doada em favor do seu Reino na Igreja e no mundo. Sua vida e
missão têm potencial para uma vivência vocacional fecunda.
Olhando para o Terceiro Ano Vocacional do Brasil e a necessidade de aprofundar a
reflexão vocacional, Dom Helder emerge como uma referência para uma autêntica
Animação Vocacional. Seu discernimento, cultivo da espiritualidade e opções de vida têm
muito a contribuir aos jovens e, em especial, aos que sentem o chamado ao presbiterato.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice
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Passo Fundo, v.40, n.134, p. 62-76, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
36 O Objetivo do Grupo de Espiritualidade e Estudo Re-Vivendo Dom Helder Camara é: “Estudar, meditar e rezar o
pensamento helderiano a fim de cultivar e difundir uma espiritualidade libertadora, a serviço da fermentação de uma
Igreja Pobre e Servidora e de uma sociedade justa, fraterna, pacífica e solidária”.
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PAPA FRANCISCO. Mensagem do Papa para o 56° Dia Mundial de Oração pelas Vocações. Disponível
em: https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2019-03/mensagem-papa-para-56-dia-mundial-
oracao-vocacoes.html. Acesso em 11 de setembro de 2022.
PAPA FRANCISCO. Missa de canonização de Laura Montoya e María Guadalupe García Zavala, 12 de maio
de 2013. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2013/documents/
papa-francesco_20130512_omelia-canonizzazioni.html. Acesso em 11 de setembro de 2022.
RAMPON, Ivanir Antonio. Dom Helder: um testemunho para os presbíteros. Revista Vida Pastoral
novembro-dezembro de 2016. Disponível em: https://www.vidapastoral.com.br/artigos/dom-
helder-um-testemunho-para-os-presbiteros. Acesso em 13 de setembro de 2022.
RAMPON, Ivanir Antonio. O caminho espiritual de Dom Helder Camara. São Paulo: Paulinas, 2013.
RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice
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