Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
FOME E PRODUÇÃO DE
ALIMENTOS NO BRASIL FACE ÀS
EXIGÊNCIAS DO DIREITO À
ALIMENTAÇÃO
HUNGER AND FOOD
PRODUCTION IN BRAZIL IN THE
FACE OF THE DEMANDS OF THE
RIGHT TO FOOD
Guilherme C. Delgado*
Resumo: Este artigo analisa um paradoxo empírico: de um lado a
superprodução de alimento- ‘commodities’, e de outro, o alto nível da
fome detectado em inquérito domiciliar sobre a segurança alimentar.
Neste contexto é necessário apelar às políticas sociais e econômicas, tendo
em vista obter a diversificação da produção de alimentos e também
elevação da renda disponível às famílias pobres, condições que são
imprescindíveis para essas pessoas acessarem aos alimentos em tais
condições. Mas a concepção de economia política do sistema de
agronegócio e outros arranjos de economia neoliberal hegemônicos
bloqueiam ações de política pública nessa direção comum segurança
alimentar e Estado do Bem-estar Social. Essas objeções são o principal
problema político a enfrentar, que é necessário em um novo arranjo de
economia política para a questão em foco.
Palavras-Chave: Fome. Produção de Alimentos no Brasil. Economia
neoliberal. Direito à Alimentação.
Abstract: This paper analyse an empirical paradox: overproduction of
commodities- food-grain and feed-grain for export in Brazil and a high
level of hunger detected in a national inquire of food security. In this
condition, It’s necessary to appell to social and economic policies in order
to generate diversification of food production and income diponible for
poor peoples. These policies are essentials conditions for poor peoples
acesss foods on food security situation.But conceptions of political
ecoonomy of agrobussiness system and anothers arrangements of
neoliberal economics has blocked actions in direction of food security and
Social State.These objections are the main policy problem, that is
necessary to face in a new political approach of this question.
Keywords: Hunger. Food Production in Brazil. Neoliberal Economy.
Right to Food.
v. 40, n. 134, Passo Fundo,
p. 40-49, Jan./Jun./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:
dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i134.185
* Doutor em Economia pela Universidade de
Campinas-SP (1984), pesquisador do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA) em Brasília por mais de 30 anos, ora
aposentado, com áreas de concentração em
agricultura e políticas sociais; e atualmente
participa da direção colegiada da Associação
Brasileira de Reforma Agrária – ABRA.
E-mail: guilhermecostadelgado@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-5846-1753
Recebido em 12/05/2023
Aprovado em 15/08/2023
41
INTRODUÇÃO
O artigo se inicia pela enunciação empírica de um paradoxo ou enigma a decifrar: a
superprodução de alimentos à escala global, com origem no Brasil; com paralelo
recrudescimento da ‘Insegurança Alimentar Grave (fome) e Moderada...’ em 30,7 % dos
domicílios nacionais pesquisados em Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar...’,
realizado entre 2021/2022.
Por sua vez, o paradoxo contém algumas pistas a decifrar. A superprodução é de
alimentos ‘commodities’, ou seja, de mercadorias mundiais produzidas explicitamente para
gerar resultado comercial excedentário no comércio exterior. Isto se realiza como meta de
política econômica, conduzida ‘a qualquer custo’, visto que o país passou a depender
essencialmente do setor primário para exportar.
Por outro lado, o “Inquérito Nacional de Insegurança Alimentar...” está apurando
situações de estado de necessidade alimentar das famílias, medidas de conformidade com
acesso e ingestão regular dos alimentos nos domicílios.
As duas classes de fenômenos produção mercantil e atendimento de necessidades
básicas alimentares- seguem lógicas distintas-, como se analisa na seção 2. Paira entre elas
uma situação de estado de necessidade não atendida pelos mercados, precisamente por
estar fora do seu raio de operação; mas que é critério indispensável ao funcionamento de
uma economia humana, fundada em exigências éticas universais.
Pelo exposto precedentemente pode aduzir a hipótese de que a existência do
paradoxo empírico, no caso brasileiro, não é casual ou circunstancial. Isto porque houve
construção ideológica de uma economia política, que se promove como autossuficiente e
independente de critérios de economia humana para funcionar. Isto tem consequências
para explicação do fenômeno que ora se investiga: causa da fome em presença da
superprodução de alimentos, sob regulação mercantil estrita.
Mas a abordagem ou solução do enigma o se resolve nos domínios da própria
economia de mercado; requer interpretação ética sobre o abandono dos critérios de
economia humana –atendimentos de necessidades de subsistência, proteção contra riscos
incapacitantes ao trabalho humano e desenvolvimento ou reabilitação de capacidades
humanas-, que de longa data são referencial do chamado Estado Social. Mas também
relativo abandono da política social de Estado e concentração exclusiva da política agrícola
ao espaço das ‘commodities’, orientações de política públicas que para se legitimarem,
apelam ostensivamente à mitologia de uma economia política autossuficiente, com
características típicas da idolatria e do fetiche.
Propomos na seção 3 ‘Produção do mito e da idolatria...’ o levantamento de uma
classe de fenômenos no contexto temático sob exame, que nos leva a enveredar pelos
domínios da Teologia, tendo em vista compreender e também denunciar a utilização do
mito e da idolatria na situação sob análise. Isto porque, consequências a certa anestesia
ética da opinião blica, como também de inversão de significados ético teológicos
fundamentais de economia humana, que bloqueiam políticas públicas indispensáveis à
construção da segurança alimentar.
Por último, na Seção 4 o texto enuncia critérios e condições concretas aplicáveis à
política agrícola e política social aqui no Brasil-, que são necessários à efetivação do
princípio da segurança alimentar, de sorte a regular a economia de mercado à finalidade
abandonada, da universalização do direito à alimentação prevista na Constituição Federal
(Art. 6 – Caput).
DELGADO, Guilherme C.
Fome e prodão de alimentos no Brasil face às exigências do direito à alimentação
Revista Teopxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 40-49, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
42
Atender exigências éticas, como as que ora se colocam, não se resolve pelo apelo a
princípios mágicos da ‘mão invisível dos mercados’ ou de ideologias contemporâneas da
superprodução de mercadorias mundiais, cujo determinante ético particular e exclusivo
o individualismo utilitário, não se compraz com as exigências éticas universais do direito
humano à alimentação ou com direitos sociais universais.
1 PARADOXO DA SUPERPRODUÇÃO FACE À CARÊNCIA EXTREMA DOS ALIMENTOS NOS
DOMICÍLIOS
No período de 1996/2020 o Produto Interno Bruto da Agropecuária brasileira
cresceu em termos reais 3,5% ao ano em média anual, resultado que é de quase o dobro do
desempenho do PIB geral da economia no mesmo período, que é de 1,9% a.a.
Dados imediatos (2021) e projeções a 2030 do Ministério da Agricultura
1
apresentam verdadeiro ‘espetáculo do crescimentoda produção de cereais e carnes
2
, com
acréscimos projetados de 71,6 milhões de toneladas de grãos até 2030 e 7,0 milhões de
toneladas de carnes entre 2021/31. Essa empiria, descrita em documento oficial como ‘Projeções
do Agronegócio - de Longo Prazo...’ está na linha de convergência do sistema de economia
política hegemônico, no sentido de credenciá-lo e especializá-lo cada vez mais à condição
de campeão mundial ao fornecimento de alimentos -‘commodities’
3
à escala planetária.
Por outro lado, ao consultar o “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no
Contexto da Pandemia COVID 19 no Brasil”
4
(deparamo-nos com uma situação alimentar
e nutricional interna, de cerca de 30,7% dos domicílios brasileiros pesquisados em situação
de ‘insegurança alimentar moderada e grave (fome)’, situação que era ruim antes da
Pandemia e com esta se agravou, a ponto de trazer o País de volta ao “Mapa da Fome”,
segundo os indicadores da FAO/ONU.
Os dados de produção agrícola citados (MAPA) e do ‘Inquérito Nacional sobre
Segurança Alimentar...’ (PENSAN) revelam um paradoxo empírico com características de
enigma a decifrar: produção de carnes em crescimento contínuo e firme, perante uma
situação constatada de agravamento da fome e da ‘insegurança alimentar moderada’
5
.
Os dois fenômenos referidos refletem dinâmicas distintas, mas com alguma
correlação. O primeiro, está diretamente associado à vinculação da produção de
‘mercadorias mundiais’ brasileiras destinadas à exportação, que se orientam por margens
de lucratividade planejadas, ora pelos preços externos dessas ‘commodities’, ora pelos
incentivos fiscais, financeiros e cambiais explicitamente dirigidos à geração de saldos
comerciais externos. o segundo fenômeno apontado, reflete uma situação de
necessidade humana, sem contrapartida da possessão de renda e riqueza susceptível de
incluir essas pessoas no mercado comprador de alimentos.
1 MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E ABASTECIMENTO, Projeções do Agronegócio - Brasil 2020/2021 a
2030/2031.
2 Segundo o Ministério da Agricultura (in “Projeções do Agronegócio...”, op. cit) a produção de grãos entre 2021 e
2031 crescerá de 262,0 milhões de toneladas para 331,0 milhões. No mesmo período a produção de carnes é estimada
a crescer de 27,0 para 34,0 milhões de toneladas.
3 A noção técnica de “commodities” é a seguinte: mercadorias mundiais tipificadas e armazenáveis, negociadas em
Bolsas Internacionais de Mercadorias à vista e nos mercados futuros de forma regular.
4 Conferir nota 5.
5 O “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar...” apura a situação alimentar e nutricional das famílias
pesquisadas (amostra nacional de 12.745 domicílios em 26 Estados mais o DF) com base em quatro critérios de
segurança alimentar: 1) - Segurança Alimentar: com acesso regular aos alimentos em quantidades e qualidades
adequadas; 2 - Insegurança Alimentar Leve: quando há incerteza futura em relação ao acesso regular aos alimentos; 3
- Insegurança Alimentar Moderada: quando redução quantitativa resultante da falta de alimentos; Insegurança
Alimentar Grave: quando há falta de alimentos pela falta de dinheiro para comprá-los.
DELGADO, Guilherme C.
Fome e prodão de alimentos no Brasil face às exigências do direito à alimentação
Revista Teopxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 40-49, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
43
A dinâmica dos mercados de ‘commodities’, sob a regência de um pacto de economia
política do chamado agronegócio, especializa o sistema econômico na exportação de
mercadorias mundiais (‘commodities’) agrícolas e minerais, com consequências externas e
internas muito distantes do desenvolvimento social e ecológico, resvalando adicionalmente
à pressão inflacionária sobre os alimentos, que é também componente do tema sob análise.
Por seu turno, nos últimos sete anos ocorrem coetaneamente vários processos
socioeconômicos e políticos concorrentes para elevação da desigualdade social
crescimento negativo da economia (PIB ‘per capita’ negativo), relativa desmontagem das
políticas sociais de Estado, estagnação ou queda na produção de não ‘commodities’,
pressões inflacionárias sobre a cesta básica salarial etc.; que no seu conjunto contribuem à
insegurança alimentar, seja pelo lado da produção, seja pelo lado da desigualdade de renda
monetária disponível às famílias.
A situação revelada de insegurança alimentar, como de tantas outras necessidades
humanas desatendidas no espaço específico dos mercados, aponta para falhas endógenas de
um sistema, que deixado a funcionar de forma autossuficiente pela chamada ‘mão invisível’
dos mercados, reproduz dicotomias e paradoxos como o que ora estamos examinando.
2
PRODUÇÃO ECONÔMICA X ATENDIMENTO DE NECESSIDADES BÁSICAS: EXIGÊNCIAS
ÉTICAS
Ao contrário do pensamento ao estilo senso comum, o sistema econômico de
mercado o se destina endogenamente a atender necessidades básicas da população
alimento, teto, agasalho, saúde etc.; mas a produzir mercadorias que possam ser
demandadas pelos consumidores portadores de renda e riqueza monetária. Para estes, o
sistema está construído na perspectiva de oferecer bens e serviços que atendam desejos e
preferências de consumo, enquanto que necessidades básicas desacompanhadas dos
requisitos mercantis descritos, entram em uma zona anômala do sistema de mercado o
estado de necessidade.
Por sua vez, as necessidades humanas de provisão de bens e serviços de subsistência
são tão antigas como a própria humanidade, assim como as situações das carências
desatendidas. Os textos mais antigos da Bíblia, a exemplo de Ex. 22,20-26, atribuem ao
imigrante, aos órfãos e às viúvas e aos pobres em geral preferências explícitas reveladas
por Deus aos profetas de Israel, no sentido da prioridade ao atendimento de necessidades
básicas de subsistência.
Essa tradição é completamente confirmada em todos os Evangelhos, que
efetivamente erigem os fundamentos éticos da economia humana em inúmeras passagens,
a exemplo, que seria ocioso repetir, não fora a necessidade de ilustrar para ligar com que se
prática nos tempos modernos.
O Sermão das Bem-aventuranças (Mt 5,1-11 e Lc 6,20-27) e o discurso articulado na
Sinagoga de Nazaré (Lc 4,16-27), citando o Profeta Isaias e destacando a prioridade pelos
pobres, oprimidos e incapacitados.
A tradição judaico-cristã é recuperada na modernidade em três eixos de uma
economia humana que convém destacar, porque exercem papéis completamente distintos
em relação à economia de mercado convencional: 1) atendimento de necessidades básicas
de subsistência; 2) proteção social contra riscos incapacitantes ao trabalho; 3)
desenvolvimento e reabilitação de capacidades humanas
6
.
6 Para uma abordagem de fundamentação ética da Economia Humana, ver Delgado, Guilherme C. (2021) Cap 5
“Fundamentos da Economia Humana – Ética e Política”, op. Cit, p. 93-111.
DELGADO, Guilherme C.
Fome e prodão de alimentos no Brasil face às exigências do direito à alimentação
Revista Teopxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 40-49, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
44
Essa economia humana a que estamos fazendo referência é o espaço socioeconômico
onde se exercitam os direitos sociais, incluindo o direito à alimentação, os direitos
trabalhistas e previdenciários, o direito à saúde e à assistência social, tendo em cada país
um perfil peculiar; que, infelizmente, nos últimos tempos tem sofrido restrições de toda
ordem, em nome da restauração dos princípios neoliberais da economia de mercado.
Não vou por ora entrar em considerações específicas sobre política social
relacionada ao chamado Estado do Bem-estar concretamente operante no Brasil, para não
misturar os níveis de argumentação – pragmático e conceitual. Pois o que importa na linha
de argumentação conceitual a destacar, são os critérios de economia humana fundados em
princípios de direito social universal, como condição necessária à provisão de necessidades
básicas, sem o que situações de fome e insegurança alimentar recrudesceriam em toda
parte onde a economia de mercado autossuficiente fosse predominante.
Ademais, a própria ideia de uma economia autossuficiente ou para usar a expressão
utilizada pelo próprio sistema – autorregulada –, é em si um absurdo ético; e para utilizar a
linguagem teológica apelo à idolatria econômica. Esta tem no princípio do
individualismo utilitário associado ao progresso técnico de caráter competitivo, espécie de
pedra angular do comportamento dos agentes econômicos, tudo o mais lhes ficando
externo do ponto de vista ético-econômico.
Por sua vez, atender necessidades de subsistência, como também às situações
incapacitantes ao trabalho, sejam estas provocadas pelo próprio funcionamento do
sistema, como é o caso do desemprego involuntário, como também às muitas situações de
incapacitação ao trabalho ‘naturais’ do ponto de vista demográfico idade avançada,
acidente de trabalho, doença, invalidez permanente etc.; o condições imprescindíveis ao
atendimento de necessidades humanas, sob regência de critérios ético e teológicos universais.
Esses critérios estão em uma espécie de DNA da cultura humana da comunidade
primitiva
à civilização industrial dos tempos atuais, com exceção daqueles que elegeram a idolatria
econômica da autossuficiência dos mercados como paradigma a seguir.
3 PRODUÇÃO DO MITO E DA IDOLATRIA DE UMA ECONOMIA (AGRÍCOLA)
AUTOSSUFICIENTE
A ideia de uma economia especializada nas exportações agrícolas e minerais
protagonizando o conjunto do sistema econômico, suficiente para alimentar 800 milhões de
consumidores no mundo e garantir pelo seu saldo de mercadorias exportadas o decantado
‘equilíbrio das contas externas’, tem sido utilizada como expressão senha de um sistema
erigido há pouco mais de duas décadas – a autodenominada economia do agronegócio
7
.
Dispondo de aparato publicitário massivo, esse sistema difunde mensagens
aparentemente técnicas, como estas acima citadas, que como vimos, compõem o
paradoxo explorado inicialmente; e no mínimo servem para deixar o público
conformado com a senha do “equilíbrio das contas externas”, que tampouco se sustenta,
como ainda veremos adiante.
Por sua vez, o gigantesco aparato publicitário do sistema difunde também muitos
anos mensagens publicitárias em horário nobre de TV, que pela repetição sistemática
reivindicam foros de verdade inconteste “Agro é Pop, Agro é Tech, Agro é tudo”. A
própria mensagem e sua repetição sistemática assumem características típicas de difusão
do mito, com apelos subliminares de sentido demiúrgico à totalidade, à ubiquidade e
certa insinuação de potência e onisciência extraordinárias associadas a entidade “Agro”.
7
Para uma análise contextualizada da Economia do Agronegócio no Brasil, ver – Delgado, Guilherme C. (2012) – op. cit.
DELGADO, Guilherme C.
Fome e prodão de alimentos no Brasil face às exigências do direito à alimentação
Revista Teopxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 40-49, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
45
A construção do mito relativamente ao sistema que se autopromove contém
objetivos mais profundos que da mera propaganda comercial. Pretende-se ocupar o
imaginário coletivo não propriamente com informação sobre o sistema de economia
política, mas à percepção de um ídolo a cultivar. E, neste ponto, explicitamente,
precisamos nos deslocar por necessidade analítica, da abordagem da Economia Política
para outra abordagem fundamentada nos domínios da Teologia.
Antes da explicação teológica, convém caracterizar esse sistema que se autopromove - o
denominado ‘Agro’-, como uma construção de economia política datada - (anos 2000) - ,
voltado às exportações primárias, dotado de numerosa bancada parlamentar (Frente
Parlamentar da Agropecuária), detentor de aparato acadêmico próprio (Instituto PENSA e rede
de apoiadores). Conta também com potente estrutura de comunicação midiática referida e
principalmente apoio ostensiva de finanças públicas à meta da exportação de “commodities’ ao
longo de seis mandatos presidenciais sucessivos (FHC II, Lula I, Lula II, Dilma I, Dilma II,
Temer e Bolsonaro), que vem se caracterizando ao longo do tempo na linha da especialização
primário exportadora, conduzida com absoluta prioridade pela política econômica.
Vou me valer de excelente contribuição à abordagem teológica do tema em pauta - a
idolatria econômica -, de uma coletânea de biblistas e cientistas sociais, que ainda nos
primórdios da Teologia da Libertação (anos 80 do século passado) trataram de questões
conexas que dão título ao próprio livro La Lucha de los dioses – los ídolos de la opressión y La
búsqueda del Dios Liberador
8
.
Referida abordagem teológica faz o esclarecimento e decodificação de justificativas
econômicas misturadas a idolatrias teológicas nos seguintes termos, que os declara em
trecho de sua introdução que escolhi para citar, cuja tradução livre segue abaixo:
O problema central hoje na América Latina (...) é a idolatria como culto aos
deuses falsos do sistema de opressão. Mais trágico do que o ateísmo é a e a
esperança nos deuses falsos do sistema. Todo sistema de opressão se caracteriza
precisamente pela criação de deuses e geração de ídolos sacralizadores da
opressão e da antivida. Finalmente, cabe destacar a grande importância da
presente discussão em nosso continente latino-americano com seu passado de
dominação política e religiosa e seu presente de repressão e miséria. Cremos que
o problema dos ídolos da opressão e a busca do Deus Libertador adquire hoje
uma nova dimensão, tanto na tarefa evangelizadora, como na tarefa política. A
teologia da libertação encontra aqui um dos seus desafios mais fecundos.
Associada a esta síntese geral expressa na introdução da coletânea, o próprio
organizador e autor de um dos ensaios – Pablo Richard- conclui ensaio específico: ‘Nuestra
Lucha es contra lós ídolos’
9
que a realidade econômica e política do capitalismo na
América Latina tem característica distintiva do profundo apelo idolátrico em suas
prioridades às ações humanas nas esferas econômica, cultural, social, política e religiosa. E
isto se faz de forma tácita ou ostensiva em estado de confronta à no Deus da vida e da
plena libertação humana. Daí que não podemos ficar neutros nesta sociedade, sob pena do
abandona às exigências éticas da nos nossos discernimentos pragmáticos em economia
política, como também de caráter pastoral-evangelizador.
Observe o leitor, que o sistema de agronegócio pela eficácia com que cumpre sua
meta econômica de elevado custo social - a exportação máxima e crescente de ‘commodities’
-, algo de que se jacta em fazê-lo e se projeta assim contin-lo (Ver Projeções do
Agronegócio até 2031, cf. nota 2); coloca-se na linha de uma economia política
autossuficiente, que dispensa os critérios de economia humana referidos na seção 2. Mas é
8 Ver Richard, Pablo (Org. – 1980) – op. cit.
9 Ver Richard Pablo – Capítulo 1, p.31-32
DELGADO, Guilherme C.
Fome e prodão de alimentos no Brasil face às exigências do direito à alimentação
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 40-49, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
46
principalmente no processo de legitimação política para obter hegemonia que o sistema
apela à mistificação, de caráter demiúrgico, escondendo do debate público as enormes
distorções em segurança alimentar, desigualdade social e contaminação ecológica que
promove como ‘externalidades’. Ademais, indicadores claros de aumento da dependência
externo na ‘Conta Corrente com Exterior’
10
na última década, ao contrário da propaganda
do ‘equilíbrio externo’ esgrimida no repertório de ‘marketing’ da entidade “Agro”.
Em relação ao tema específico da segurança alimentar, como vimos, o sistema se
confronta com as faces oprimidas dos domicílios brasileiros identificados no ‘Inquérito
Nacional sobre Segurança Alimentar...’, como incluídos na situação de fome explícita
ou moderada.
Precisamos explorar de forma mais específica as relações dessa prioridade ao sistema
para exportar commodities’-alimento, a qualquer custo, e suas consequências sobre a
alimentação suficiente e saudável às pessoas mais pobres, que o referido ‘Inquérito
Nacional...’ quantifica em 31% dos domicílios brasileiros.
4 PROVISÃO DE ALIMENTOS NO BRASIL: COMO FUNCIONA UM SISTEMA DE MERCADO
AUTOSSUFICIENTE
Os inquéritos domiciliares que apuram a provisão e o consumo de alimentos das
famílias medem a suficiência e adequação dos alimentos consumidos disponíveis face às
necessidades alimentares dos diversos membros, classificando, como referido na nota n. 5,
os diversos graus de suficiência e insegurança alimentar discutidos. Mas para apurar
sobre as causas da insegurança alimentar e de como enfrentar o problema detectado, é
preciso recorrer ao mecanismo da formação de preços dos alimentos que comparecem às
diversas cestas básicas alimentares, que estão sendo investigadas nesses domicílios.
Por razões de economia política interna, a política oficial do Brasil pouco mais de
duas décadas, persegue a valorização dos preços externos dos chamados alimentos
‘commodities (‘feed-grainssoja, milho e farelos para ração animal e food-grainsgrãos
para consumo humano direto, dentre os quais o trigo é o principal). Ademais a exportação
das carnes e dos produtos lácteos armazenáveis entram também nesse rol de valorização
para exportação.
Por sua vez, os produtos “não commodities” arroz, feijão, mandioca, frutas e
verduras, que por diversas razões não se classificam como ‘mercadorias mundiais,’ seguem
outro padrão de regulação de política agrícola e comercial, que no geral deixa-os à margem
dos mecanismos de valorização operados pela política econômica, tais como crédito
subvencionado, subvenções tributárias, preços de garantia e estímulos cambiais. Essa
política diferencial funciona como sinalização clara à sustentação de margem de
lucratividade protegida às ‘commodities’, enquanto as não ‘commodities’ disputam espaço
nos mercados em condições mais adversas. Sob tais condições, cedem espaços territoriais
mais férteis e mais próximos aos centros consumidores ao grupo de produtos valorizados
pela política econômica, de claro viés exportador.
Em tais condições, não é de se estranhar a pressão sobre os preços dos alimentos da
cesta básica, seja pela valorização externa nos períodos de pico das ‘commodities’; seja pela
escassez conjuntural das não ‘commodities’. O período 2020-2022 é típico de uma elevação
10 A ‘Conta Corrente com o Exterior” brasileira, que expressa a totalidade do movimento comercial de mercadorias e
serviços no tempo, apresenta-se sistematicamente deficitária desde o triênio 2008/2010 até o presente, não obstante
revele saldo comercial positivo na exportação de ‘commodities agrícolas e minerais. Mas este saldo mostra-se
completamente insuficiente para suprir os elevados ‘deficits’, principalmente da Indústria e dos Serviços. Para uma
análise histórica do período 1995/2021 – ver Delgado, Guilherme C. (2022), op. cit.
DELGADO, Guilherme C.
Fome e prodão de alimentos no Brasil face às exigências do direito à alimentação
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 40-49, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
47
conjugada dos dois conjuntos de preços: do preço das ‘mercadorias mundiais ‘pelo efeito da
desvalorização cambial
11
e dos preços de produtos típicos do mercado interno, que crescem
ainda mais que a inflação geral.
Como o sistema econômico está estruturado para gerar resultados comerciais
exportadores pelo setor primário, a política de valorização interna de ‘commodities’ segue
seu curso e o sistema “Agro” idem. Mesmo revelando disfunções à provisão necessária de
alimentos às chamadas cestas básicas salariais, que a esta altura já estão bem diagnosticadas.
Por outro lado, transparece evidente quando se utilizam critérios de economia
humana para avaliar as políticas blicas brasileiras, a necessidade de adoção de princípios
de segurança alimentar aplicáveis às políticas - agrícola e política social -, tendo em vista
atender à função de provisão de bens alimentares necessários e rendimentos compatíveis
às famílias para adquiri-los; para o que são necessárias mudanças significativas, que
precisamos enunciar.
A política agrícola brasileira precisaria mudar no sentido de que se lhe
reintroduzissem objetivos de regulação do abastecimento da economia interna, no sentido
da provisão dos alimentos das várias cestas básicas salariais brasileiras, a salvo das pressões
inflacionárias que as acometem sistematicamente no quadro regulatório atual. Neste
sentido, é provável que se tenha de retornar à formação de estoques públicos de alimentos
não perecíveis e de fomento a estruturas produtivas normalmente vinculadas à produção
diversificada de alimentos, com especial ênfase à agroecologia, e recuperação com base em
fomento produtivo diferencial à multiforme agricultura familiar brasileira.
Por sua vez, o sistema de produção de ‘commodities-alimento’ precisa se adequar,
pela política agrícola do Plano-Safra e de outras políticas públicas, ao atendimento das
exigências contemporâneas de sustentabilidade ecológica, mediante utilização de critérios
de zoneamento agro-hidro-ecológicos, que lhes confiram prêmios e sanções de acordo
com indicadores de desempenho. Isto viria em substituição aos critérios de valorização
irrestrita atualmente vigentes às ‘commodities’, que servem de estímulo econômico
indireto à maximização da emissão de dióxido de carbono e à degradação hídrica.
Por sua vez, a segurança alimentar é princípio orientador também de política social,
visto que é a partir desta que as famílias mais pobres podem recorrer a rendimentos
monetários extramercado - aposentadorias, pensões, ‘bolsa-família’, salário-mínimo’ e
subvenções alimentares específicas -, compatíveis com a concretização do direito humano
à alimentação previsto na própria Constituição Federal (Art. 6º- Caput).
Em síntese, o que se está enunciando nesta seção são as condições de transição das
políticas agrícola e social vigentes a princípios de segurança alimentar e sustentabilidade
ecológica, algo que muda qualitativamente o padrão de regulação de economia política ora
vigente, sob hegemonia do sistema do agronegócio. E isto tem por pressuposto oferecer
respostas de políticas públicas à insegurança alimentar principalmente, sem deixar de fora
objetivos conexos de sustentabilidade ecológica, que não sendo objeto específico deste
texto, são componentes indispensáveis de uma perspectiva de ecologia integral. Isto
porque o debate político contemporâneo da segurança alimentar está intrinsecamente
integrado à transição ecológica no desenvolvimento rural, por razões que reservamos aos
comentários das “Considerações Finais”.
11 A taxa cambial do real em relação ao dólar entre 2019 e 2022 desvalorizou-se substancialmente, variando de 3,79 no
início do período (mês de julho) para 5,16 no mês de julho de 2022, patamar aproximadamente seguido nos anos de
2020 e 2021.
DELGADO, Guilherme C.
Fome e prodão de alimentos no Brasil face às exigências do direito à alimentação
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 40-49, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
48
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O grande paradoxo de um País que se jacta de alimentar 800 milhões de
consumidores no mundo com suas exportações de cereais e carnes; mas revela ao mesmo
tempo 30,7% de domicílios em situação de ‘insegurança alimentar grave ou moderada’,
como revelamos documentalmente neste texto; não é situação fortuita, casual ou isolada.
Essa situação paradoxal reflete opções e movimentos invertidos na concepção e
gestão da economia política, marcados por relativo abandono de critérios de economia
humana aplicáveis às políticas agrícola e social. Isto se pela inversão ética em apostar
todas as fichas nos princípios da autossuficiência econômica, aplicáveis em especial à
economia primário-exportadora, balizada por uma meta macroeconômica dos elevados e
exclusivos resultados exportadores em ‘commodities’, a qualquer custo.
Por sua vez, uma inversão radical de critérios éticos vigentes mais de duas
décadas, dificilmente poderia se realizar em ambiente de certa normalidade ao pleno
funcionamento de instituições democráticas; tendo em vista a provável ocorrência de
pressões sociais em sentido contrário.
É preciso atentar para o fato de que o reconhecimento da fome e da miséria como
situações eticamente inaceitáveis não são algo normal ao funcionamento do sistema
econômico de mercado, que pela sua pretensão aética, desconhece famintos e outros
despossuídos de meios de subsistência, relegando-os à condição externa à economia.
Por sua vez, ao se (re)construir no Brasil um polo exportador global de cereais e
carnes, associado a aparato de propaganda e ‘marketing’ de um mito com características de
idolatria econômica, anestesiou-se de certa forma a opinião blica para as rias
consequências adversas daí decorrentes: inflação de alimentos, aumento da desigualdade
social, dilapidação ambiental e agora explicitamente revelado, o reingresso do Brasil no
‘mapa da fome mundial’.
A transição de uma economia dominantemente voltada às exportações ao estilo
“Agro”, para um modelo de economia política balizada por critérios de economia humana,
que atendam necessidades de segurança alimentar interna; contém vários ingredientes de
reestruturação. Alguns foram abandonados pelo modelo hegemônico e outros lhes são
absolutamente extrínsecos, por princípio.
No primeiro caso, temos notoriamente a questão da regulação do abastecimento
interno de produtos da cesta básica alimentar, que praticamente desapareceu das
formulações de política agrícola, sob pressão da prioridade macroeconômica da
maximização do resultado exportador em ‘commodities’, a qualquer custo. O reingresso da
inflação de alimentos em tais condições não é resultado.
Por seu turno, uma transição de regulação econômica nos moldes ora sob conjectura
haveria que abarcar também critérios de transição ecológica, que são absolutamente
externos à produção mercantil estrita. E por esta condição converteram o espaço rural
brasileiro no principal foco de emissão de dióxido de carbono na atmosfera e o Brasil no 6º
maior poluidor mundial do efeito estufa (Cf. Relatório do IPCC à 2 Conferência do
Clima – Cairo 2022).
Segurança Alimentar e Economia Ecológica são ingredientes gêmeos de uma
concepção de ecologia integral aplicável ao desenvolvimento rural, plenamente
consistentes com os Ensinamentos da Encíclica Laudato Si (2015)
12
do Papa Francisco, que
nos são úteis às mudanças necessárias de políticas públicas no Brasil.
12 Ver em especial o Capítulo V da Carta Encíclica Laudato Sì – “Algumas Linhas de Orientação e Ação”, op. cit.
DELGADO, Guilherme C.
Fome e prodão de alimentos no Brasil face às exigências do direito à alimentação
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 40-49, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
49
Finalmente, é preciso alertar para o fato de que políticas públicas em processo de
transição requerem alguns condicionantes para se somente se concretizarem. Um destes
condicionantes é, no Estado Democrático, a conquista de mentes e corações paro os novos
termos do pacto político que se pretende estabelecer em substituição à velha ordem. Nesse
contexto é plenamente legítima a pressão sobre Poderes de Estado para reversão do atual
quadro hegemônico, fortemente condicionado por valores de idolatria econômica. E até
mesmo por esta condição, o papel das Igrejas é muito importante e legítimo, para
esclarecer e motivar Poderes de Estado a realizarem mudanças no espaço regulatório de
políticas públicas notoriamente vinculado ao direito à vida digna. Diga-se de passagem o
discurso da segurança alimentar e da transição ecológica explicitamente se inclui na
agenda do Presidente eleito declarado por ocasião da Cop. 27, no Cairo; mas internamente
as pressões em contrário provavelmente ainda persistirão no novo governo em razão dos
interesses particulares contrariados.
REFERÊNCIAS BIBLI OGRÁFICAS
DELGADO, Guilherme C. Do ‘Capital Financeiro na Agricultura’ à Economia do Agronegócio: mudanças
cíclicas em meio século (1965/2012). Porto Alegre: UFRGS Editora, 2012.
DELGADO, Guilherme C. Rumo ao mundo de Francisco: economia, humanismo e ecologia em tempos de
crise. Brasília: AFPEA, 2021.
DELGADO, Guilherme. “Mudanças Cíclicas do Espaço Rural Brasileiro e Perspectivas de Futuro”
in Barros, Geraldo S. e Navarro, Zander (Orgs) – Brasil Rural Contemporâneo: Interpretações
(Capítulo 4). São Paulo: Ed. Baraúna, 2022.
MAPA - Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Projeções do Agronegócio – Projeções de
Longo Prazo: Brasil 2020/2021 a 2030/2031. Brasília: Sec. de Política Agrícola (SPA/MAPA), 2022
(disponível na internet).
PAPA FRANCISCO. Carta Encíclica ‘Laudato Sì’ - Sobre o Cuidado da Casa Comum. Brasília: Ed.
CNBB, 2015.
Rede PENSAN. 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia COVID-19
no Brasil. São Paulo: Rede PENSAN, 2022.
RICHARD, Pablo (Org.). La lucha de lós dioses - los ídolos de La opressión y La búsqueda del Dios
liberador. San José - Costa Rica: Departamento de Investigación Ecumênica, 1980.
DELGADO, Guilherme C.
Fome e prodão de alimentos no Brasil face às exigências do direito à alimentação
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 40-49, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.