Fratelli Tutti e a superação do individualismo pela educação
Fratelli Tutti and the overcoming of individualism through education
DOI: https://doi.org/10.52451/teopraxis.v41i136.204
Recebido em 22/02/2024
Aprovado em 14/04/2024
Professora do curso de Letras no Instituto de Humanidades, Ciências, Educação e Criatividade da Universidade de Passo Fundo. Mestre em Letras e doutoranda no Programa de Pós-graduação em Educação na mesma instituição. Contato: david@upf.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0527-4807
Resumo: Fratelli Tutti, encíclica escrita pelo Papa Francisco, aborda temas de fraternidade e amizade social, enfatizando a necessidade de se reconhecer, valorizar e amar a todas as pessoas, independentemente de sua proximidade física ou do local onde nasceram ou vivem. O individualismo, contudo, é tratado como um dos principais desafios da sociedade contemporânea neoliberal. Ao refletir sobre essa questão e suas implicações para o bem comum, busca-se, neste artigo, situar a educação como forma de enfrentamento à indiferença egoísta. Com base em Charlot (2020), Laval e Vergne (2023) e Benincá (2010), defende-se a formação para a escuta e para o diálogo como elemento imprescindível para a promoção da cultura do encontro e do senso de irmandade.
Palavras-chave: Individualismo; Educação; Diálogo; Fraternidade.
Abstract: Fratelli Tutti, an encyclical written by Pope Francis, addresses the themes of fraternity and social friendship, emphasizing the need to recognize, to value and to love all people, regardless of the physical proximity or the place where they were born or live. Individualism, however, is approached as one of the main challenges of contemporary neoliberal society. By reflecting on this issue and its implications for the common good, this article seeks to situate education as a form of overcoming selfish indifference. Based on Charlot (2020), Laval and Vergne (2023) and Benincá (2010), the dialogical education is defended as an essential element for promoting a culture of encounter and a sense of brotherhood.
Keywords: Individualism; Education; Dialogue; Fraternity.
INTRODUÇÃO
Todos Irmãos. É com esse chamamento que Francisco, na Carta Encíclica “Fratelli Tutti”, interpela cada um a vencer barreiras geográficas, políticas, econômicas, de comunicação e, especialmente, atitudinais em prol da fraternidade e da amizade social. Publicada ao final de 2020, no período da pandemia da Covid-19, o documento do Pontífice, de forte natureza social, tem inspiração em São Francisco de Assis, que, no seu tempo, apesar da distância, do idioma, das diferenças de cultura e de religião, sem medo dos perigos, foi ao encontro do Sultão Malik-al-Kamil. Reconhecendo naquele ato a simbologia da irmandade, do amor que a todos abraça, o Papa motiva: “Sonhemos com uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos desta mesma terra que nos abriga a todos, cada qual com a riqueza da sua fé ou das suas convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos.” (Francisco, 2020, p. 14).
O sentimento de pertença à mesma humanidade é o pilar que sustenta a atitude de abertura ao outro e ao meio ambiente e, por implicação, o sonho de uma sociedade fraterna, onde todo o ser humano é respeitado em sua dignidade, em seus direitos e deveres. Contudo, o projeto de fraternidade e de convivência como irmãos enfrenta, a cada nova geração, o desafio de se colocar, mais uma vez, como princípio e prioridade. Cada tempo histórico, a sua maneira, ameaça o desejo de comunhão e o espírito social. No contexto em que vivemos, nota-se que novas formas de colonização cultural, de se relacionar e de se comunicar com os outros, por exemplo, vêm fragilizando a fraternidade universal. Acompanhamos, no cotidiano real e nos ambientes digitais, o aumento da agressividade social, da autoproteção egoísta, da violência aos migrantes, do trabalho análogo à escravidão, da intolerância religiosa, da dificuldade de, na diversidade, viver em conjunto. Denunciam Francisco e Al-Tayyeb1 (2020, p. 140):
Temos de reconhecer que, entre as causas mais importantes da crise do mundo moderno, se contam uma consciência humana anestesiada e o afastamento dos valores religiosos, bem como o predomínio do individualismo e das filosofias materialistas, que divinizam o homem e colocam os valores mundanos e materiais no lugar dos princípios supremos e transcendentes.
Dentre elementos diversos, o agravamento do individualismo parece ser o núcleo que, na contramão da cultura do encontro, gera o isolamento e o fechamento ao outro, como afirma Francisco (2020, p. 16): “Encontramo-nos mais sozinhos do que nunca neste mundo massificado, que privilegia os interesses individuais e fragiliza a dimensão comunitária da existência”.
Neste artigo objetiva-se refletir, à luz da Carta Encíclica Fratelli Tutti, acerca das consequências do individualismo para a sociedade, ressaltando a necessidade de a ele reagir, como critério para a construção de horizontes convergentes. Com base em Charlot (2020) e Laval e Vergne (2023), defende-se a importância de que o debate a respeito do homem e da sociedade a se formar seja recolocado nas discussões sobre a educação na contemporaneidade. O fortalecimento de práticas pedagógicas voltadas à integralidade da formação dos sujeitos sustenta o desenvolvimento de pessoas capazes de construir, com ética, respeito e espírito de colaboração, a sociedade democrática essencial à convivência no mundo plural e intercultural.
Na sequência, com Benincá (2010), fortalece-se a ideia da educação, na relação professor, aluno e comunidade, como o lócus privilegiado da escuta e do diálogo e, por conseguinte, como o principal investimento a ser feito em cada ser humano, sem medida, de modo a fortalecer a solidariedade e a responsabilidade para com o bem comum.
1. O INDIVIDUALISMO E OS FLAGELOS SOCIAIS
Papa Francisco utiliza-se da parábola do Bom Samaritano2, no segundo capítulo de Fratelli Tutti, para ilustrar como a atitude de cuidar do outro demanda opção e, acima de tudo, consciência da condição humana como valor irrefutável. A valorização da dignidade de todo ser humano coloca-se como condição primeira, que supera qualquer diferenciação de origem, religião, cor, identidade cultural, condição econômica ou social. O reconhecimento de cada indivíduo como pessoa única e irrepetível alimenta o amor autêntico, que cria vínculos e amplia a existência: trata-se da amizade social, gerada pela consciência de unidade entre os homens, que impele ao fazer-se próximo e a viver conjuntamente.
Na sociedade que nos cerca, o individualismo se revela no estilo de vida incentivado pelo neoliberalismo. Por vezes, fomenta indivíduos consumistas, competitivos, materialistas, ansiosos, imediatistas, que enxergam a vida a partir de um ponto de vista restrito ao seu próprio entorno. Comparando o individualismo a um vírus resistente, Francisco (2020, p. 59) alerta: “O individualismo não nos torna mais livres, mais iguais, mais irmãos. A mera soma dos interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para toda a humanidade”.
Dentre os problemas sociais agravados pelo individualismo está a diminuição da solidariedade entre as pessoas, acentuando a indiferença, ou seja, o sentimento de desobrigação com o outro. Ao se instrumentalizar a relação humana, os afetos não se estabelecem e a sensibilidade ao sofrimento alheio arrefece. Por óbvio, as mazelas causadas pela indiferença, especialmente aos mais vulneráveis, dificultam a construção de vínculos interpessoais fundamentais (dentre eles, a empatia) para se iniciar e gerar processos e transformações sociais e políticas, passíveis de combater a exclusão.
Em paralelo, amplia-se a cultura da competitividade e do descarte - que atinge especialmente os últimos, ou seja, os mais excluídos da sociedade - favorecendo as desigualdades sociais. Quando os indivíduos privilegiam seus próprios interesses em detrimento aos da coletividade, todos perdem com a negligência às questões comuns, como, por exemplo, a preservação do meio ambiente, o fortalecimento da cultura da paz, o combate ao tráfico de pessoas ou à mitigação da fome.
A solidão e a depressão são também agravadas pelo isolamento social, já que as pessoas se fecham em si mesmas e não se envolvem com a comunidade ao seu redor. Nota-se o enfraquecimento dos laços familiares e comunitários nas residências, na estrutura urbana, nos espaços públicos; também na Igreja, na vida política, junto às instituições não governamentais.
Agir como o bom samaritano pressupõe renunciar aos particularismos, às necessidades individuais, às barreiras culturais e históricas, aos preconceitos, ao nacionalismo fechado. Requer, igualmente, a capacidade de trabalhar em conjunto - observa-se que mesmo o Samaritano precisou de ajuda para cumprir sua tarefa, contando com o dono da hospedaria para a recuperação do homem ferido. Para fazer a transição da globalização da indiferença para a da solidariedade, Francisco propõe a fraternidade e a amizade social como alternativas à superficialidade nas relações.
Nesse sentido, o Papa chama a atenção para a importância de que os processos educativos formais e não formais “... incluam, de forma mais direta e clara, o sentido social da existência, a dimensão fraterna da espiritualidade, a convicção sobre a dignidade inalienável de cada pessoa e as motivações para amar e acolher a todos” (2020, p. 50). Com esse chamamento, a educação para a democracia e para o diálogo serão ressaltadas, na próxima seção, como condições para o desenvolvimento, nas crianças, jovens e adultos, da capacidade de se identificar com o outro e de se sentir corresponsável pela geração de um mundo melhor para a família humana.
2. EDUCAR QUE HOMEM E PARA QUAL SOCIEDADE?
A educação pode ser um meio eficaz de resistência ao individualismo, porque tem o potencial de promover a solidariedade, a empatia e a cooperação. Os processos educativos podem levar a um senso de responsabilidade do indivíduo mais amadurecido para com os outros e para com a sociedade como um todo. Ao ajudar a desenvolver uma consciência coletiva e a compreensão de que somos parte de uma comunidade maior, promove-se a ideia de que o sucesso coletivo é tão importante quanto o particular.
Na obra “Educação ou Barbárie? - uma escolha para a sociedade contemporânea”, Bernard Charlot (2020) problematiza a condição humana e sua centralidade para a proposição de processos educativos transformadores. Resgata o fato de que, historicamente, as pedagogias baseadas em uma antropologia da natureza humana consideraram, na teoria e na prática, o constante movimento do homem em busca do que lhe falta, de compreender quem é e do papel que ocupa na sociedade.
Contudo, ao traçar um diagnóstico do contexto educacional atual, o autor denuncia a inexistência de uma discussão transparente e profunda sobre questões basilares do processo pedagógico: o que é o humano? Que ser humano se quer formar na sociedade atual? Quais são suas potencialidades e seus limites? Que sociedade se deseja para o presente e para o futuro? Critica, então, a visão empobrecida do ser humano no mundo contemporâneo, e a tendência à simplificação do papel da educação para a preparação do sujeito ao mercado de trabalho ou restrita aos limites dos indicadores estabelecidos pelos governos, em detrimento do desenvolvimento integral do indivíduo.
Ao refletir sobre o porquê de a questão antropológica não ser colocada com mais clareza e precisão no contexto de hoje, ressalta o avanço do capitalismo neoliberal nas sociedades ocidentais. A lógica do mercado e do lucro, da competição, das tecnologias, das rupturas culturais, por exemplo, enfraquece o discurso da integralidade da formação. Exige velocidade e resultados. Em vista disso, uma mistura de recursos, técnicas e artifícios invade a escola, pressionando professores para a constante incorporação de novas ferramentas ao seu planejamento, de modo a aumentar o desempenho dos alunos.
Na dinâmica da sociedade capitalista, parâmetros antropológicos – saber que homem se quer educar e qual sociedade se quer viver – são neutralizados em meio à dinâmica econômica, que valoriza demasiadamente o alto desempenho e a utilidade do aprendizado. É nesse contexto que o discurso da qualidade educativa está presente: nas escolas, na mídia, nas redes sociais, na fala de representantes governamentais, nas diferentes instituições da sociedade. São manifestações geralmente preocupadas com a produtividade da aprendizagem, mas balizadas por outras referências, que não a visão de mundo, de homem e de sociedade a se construir.
Charlot (2020) retoma que o conceito de qualidade se consolidou após a revolução industrial e se estabelece, na área educacional, marcado por elementos e preocupações muito característicos do meio da indústria e da produção, da lógica mercantil e econômica. Como se aprende mais? O que interessa ser aprendido? Que resultados são esperados? Como quantificá-los? Essas e outras questões têm sido utilizadas como parâmetros para caracterizar o ‘bom ensino’, a ser verificado por uma quantidade de rankings disponíveis, tanto no âmbito nacional como internacional, em todos os níveis de educação.
Embora não se negue a validade de se buscar, sempre mais, a excelência nos processos de ensinar e aprender, Charlot alerta para a necessidade de uma pedagogia contemporânea que possa repensar o conceito de qualidade na educação a partir de critérios mais formativos. Defende princípios mais relacionados à evolução da emancipação do ser humano, com respeito às diferenças históricas, culturais, sociais que constituem os sujeitos, e em favor da solidariedade, como se observa a seguir:
A educação é humanização, entrada em um mundo humano. Uma sociedade contemporânea diretamente confrontada com a questão de seu futuro deveria ensinar explicitamente aos jovens, sob diversas formas, que a espécie humana é uma aventura, que o mundo é um produto dessa aventura, que o futuro do planeta, das outras espécies e da nossa espécie está sob nossa responsabilidade. O que implica uma valorização, simultânea, da espécie humana, de seu mundo e de seu planeta. [...]. Pensar a educação como humanização solidária me parece ainda mais necessário em nossa época de globalização e de internet (Charlot, 2020, p. 299-300).
Portanto, retomar a compreensão do que ‘qualidade’ significa na área educacional requer pensar sobre os objetivos da educação, sobre o que e como se ensina, sobre que vida em sociedade se deseja construir. “Quando não definimos o que entendemos por ‘qualidade na educação’ e quando utilizamos critérios não postos em debate, eles funcionam dentro da lógica dominante – que hoje é a do desempenho e da concorrência.”, conclui Charlot (2020, p. 79).
Se o homem se constitui a partir das relações que estabelece, seu processo formativo se alimenta das mediações e interlocuções experienciadas. Assim, questões como a diversidade social e cultural dos alunos, a adesão aos valores éticos e a consciência histórica sociopolítica são aspectos que, transversalizando os processos educativos, favorecem a compreensão de que a humanidade tem um destino comum. Para construir a fraternidade universal e a amizade social, o posicionamento pedagógico a ser assumido nos processos formativos formais e não formais necessita estar em coerência com tais objetivos. Nesta direção, Francisco (2020, p. 62-63) recomenda:
Quanto aos educadores e formadores que têm a difícil tarefa de educar as crianças e os jovens, na escola ou nos vários centros de agregação infantil e juvenil, devem estar cientes de que a sua responsabilidade envolve as dimensões moral, espiritual e social da pessoa. Os valores da liberdade, respeito mútuo e solidariedade podem ser transmitidos desde a mais tenra idade. [...] Cada sociedade precisa garantir a transmissão dos valores; caso contrário, transmitem-se o egoísmo, a violência, a corrupção nas suas diversas formas, a indiferença e, em última análise, uma vida fechada a toda a transcendência e entrincheirada nos interesses individuais.
Frente ao questionamento de qual pedagogia poderia melhor atender às necessidades humanas de uma sociedade democrática e ecológica, Laval e Vergne (2023) mencionam aquelas que fazem da democracia um princípio de funcionamento da instituição escolar e da formação de alunos. Na obra “Educação Democrática: a revolução escolar iminente”, defendem que o fortalecimento da capacidade de pensar e agir em conjunto decorre das
… pedagogias que procuraram desenvolver nos alunos condutas de cooperação em vez de condutas de competição, relações de solidariedade e atitudes de responsabilidade coletiva em vez da busca apenas do sucesso individual, uma autonomia individual e uma participação coletiva de deliberação em vez da passividade e da obediência à autoridade do mestre e à hierarquia administrativa (Laval e Vergne, 2023, p. 158-159).
A educação democrática requer a abertura de espaço ao coletivo, a práticas que incentivem a participação, que provoquem a cooperação, que possibilitem a vivência da responsabilidade individual para com o todo. “Isso pressupõe que a educação seja ela mesma autorreflexiva, concebida como um ambiente de deliberação, participação e tomada de decisão”, afirmam os autores (2023, p. 161). Desse modo, reflete-se a seguir sobre o papel do diálogo na educação, entendendo-se que experiências pedagógicas que se voltam à vida coletiva não podem prescindir desse princípio fundamental, cujo valor formativo se descreve na sequência.
3. A EDUCAÇÃO COMO ALAVANCA PARA A CULTURA DO ENCONTRO
No capítulo VI de Fratelli Tutti, especialmente, Francisco (2020, p. 105) discorre sobre o diálogo e a amizade social. Utiliza-se dos seguintes adjetivos - paciente, perseverante, corajoso, aberto, respeitoso, genuíno - para caracterizar o diálogo, localizando-o, paradoxalmente, “entre a indiferença egoísta e o protesto violento”. Seu entendimento de diálogo perpassa os vocábulos “ouvir-se, olhar-se, conhecer-se, esforçar-se por entender”, entre outros. Vale notar que são verbos que expressam uma ação executada pelo sujeito sobre ele mesmo. Por isso, o indivíduo executa e sofre a ação, sendo, ao mesmo tempo, o sujeito e o objeto desse verbo. Para além de uma explicação linguística, percebe-se aqui o movimento dinâmico do diálogo, que vai e vem, que implica em dar e receber, que se dirige ao outro, mas que também é consigo mesmo. Nesse balanço, o equilíbrio alcançado é a novidade: a síntese elaborada entre os envolvidos permite ir além de um e de outro, de forma a se aproximar um pouco mais da verdade, cujas múltiplas facetas nem sempre são visíveis de um único ângulo.
De modo complementar, ao escrever sobre o diálogo, Benincá (2010) caracteriza o sujeito que, por meio da palavra, torna-se transparente e coloca sua consciência em confronto com aquele com quem interage: “Quem pronuncia a palavra pronuncia-se a si mesmo; mostra sua intimidade; revela o seu interior, isto é, revela o que foi gerado e o que cresce dentro de si. Pronunciar a palavra significa, portanto, tornar visível o invisível, revelar o oculto, ou seja, anunciar o mistério” (2010, p. 110). O diálogo, então, compromete, à medida em que revela a identidade pessoal, expõe o pensamento, as intenções, a compreensão da relação homem-mundo construída na subjetividade. Mas o diálogo também é escuta atenta e interessada: “Não basta, porém, o pronunciar-se. Se não houver disponibilidade de receber o anúncio, o diálogo cederá lugar ao monólogo” (Benincá, 2010, p. 116).
Percebe-se, assim, que há um ‘espírito fraterno’ em quem dialoga, pois, se não existe o desejo de se fazer próximo, de ser irmão, de buscar ouvir o outro, não há relação dialógica verdadeira. Benincá insiste: “A riqueza do diálogo reside na capacidade de o ouvinte acolher o anúncio da riqueza espiritual que o anunciante possui” (2010, p. 116). O desejo de entender o outro, ainda que sua convicção não possa ser assumida pelo interlocutor, é o que marca o diálogo social autêntico, como esclarece Francisco (2020, p. 107): “O diálogo social autêntico inclui a capacidade de respeitar o ponto de vista do outro, admitindo a possibilidade de que nele contenha convicções ou interesses legítimos”. Trata-se de dar ao outro o direito de ser ele próprio, ainda que diferente de com quem se relaciona.
O pontífice chama a atenção, contudo, para a problemática do diálogo nos meios de comunicação, especialmente nas mídias sociais, na atualidade. Na mesma proporção com que facilitam a interação, minimizando distâncias e aproximando pessoas, têm sido questionados pela força com que podem disseminar informações distorcidas, criando divisões. Usados como canais para “monólogos paralelos”, fragmentam e danificam as relações, desagregam, criando inimizades de toda a ordem. Como inverter essa lógica agressiva no mundo de hoje? De que forma a internet pode ser ferramenta de promoção da fraternidade, da amizade social e do diálogo autêntico? Como engajar as pessoas em diálogos respeitosos e construtivos, tanto online quanto offline? É possível minimizar os entraves que dificultam o diálogo e que tornam as pessoas mais distantes umas das outras?
Ao se retomar, exatamente, os requisitos que circunscrevem um diálogo autêntico é que se encontram as pistas para fomentar o combate ao individualismo. Educar as pessoas para dialogar significa prepará-las para a vida em sociedade e para a cidadania. Escutar o outro, suas necessidades e desejos, embora desafiador, é um exercício ético - o primeiro passo para o diálogo com o diferente. E, como afirma Francisco (2020, p. 107): “... as diferenças são criativas, criam tensão e, na resolução de uma tensão, está o progresso da humanidade”.
Uma educação que visa apoiar os indivíduos para o bom convívio no mundo plural, complexo e interdisciplinar necessita, obrigatoriamente, formar para a capacidade de ouvir e de dialogar. E a sala de aula é um espaço privilegiado para o diálogo, onde o confronto dos pontos de vista de professores e alunos desafia ao desenvolvimento das potencialidades do homem: “A aula é o tempo despendido na correlação dos fatos, dando-lhes ordem e forma lógica, isto é, tomando deles consciência, fazendo deles experiência, atribuindo-lhes significado” (Benincá, 2010, p. 114). O diálogo leva à formação do raciocínio, ao espírito participativo e crítico e ao exercício de reflexão. O debate, viável pela atitude dialógica, gera novas perguntas, tanto para professores quanto para alunos, em um processo continuado de formação.
Contudo, o diálogo pressupõe o estabelecimento de uma relação horizontal entre professor e aluno, de modo a possibilitar a pergunta e a participação. Como esclarece Benincá (2010), cabe ao docente preparar o aluno para o diálogo, dando-lhe condições de se envolver no debate, provendo-lhe consciência dos assuntos em estudo e orientando-os à aproximação com as temáticas. A postura pedagógica do professor que assume o diálogo como princípio torna a educação transformadora e libertadora, porque, além de instigar o espírito curioso e investigativo nos estudantes, exercita-os para a vida democrática, ou seja, à experiência do coletivo. Laval e Vergne (2023. p. 163) ressaltam a importância de se instigar, nos estudantes, pela ação educativa, a consciência dos laços sociais que nos unem:
A educação deve ser integral: ela vincula a formação intelectual da mente, a educação moral da pessoa e a educação política do cidadão. A prática pedagógica participa da criação de uma consciência coletiva que serve como reguladora dos desejos e das necessidades individuais, que os enquadra, orienta e lhes dá um sentido social.
É o diálogo que nos abre infinitas possibilidades para mobilizar os sentidos, para estabelecer relações e para prospectar os rumos futuros de nossa existência. Afinal, como humanos, não nos repetimos, somos absolutamente distintos. O sujeito vai se constituindo pela educação e, então, em seu processo de singularização, amplia seu potencial para renovar o legado da humanidade.
Percebe-se, portanto, como a relação com o saber, no mundo humano, atravessa a linguagem, a cultura e a história da humanidade, sendo elaborada no coletivo pelas conexões estabelecidas com o outro e consigo mesmo. Mediando a interlocução entre a criança e o mundo, a educação permite que os jovens se apropriem do legado deixado pelas gerações anteriores e, abrindo o espaço da socialização, ao mesmo tempo, produzam sua própria herança para quem há de vir habitar essa casa comum, nos tempos vindouros. A educação articula, portanto, um conjunto de valores humanos - universais, porque digno de todos; singulares, porque ressignificados a cada nova geração -, que, em sintonia, mantêm o equilíbrio imprescindível para a vida em sociedade.
Ainda que lenta e difícil de se constituir, é por meio da cultura do encontro que a paz mundial se sustenta. Com a intenção de esclarecer o que entende por tal conceito, Francisco utiliza-se da imagem do poliedro3. Simbolicamente, “representa uma sociedade em que as diferenças convivem integrando-se, enriquecendo-se e iluminando-se reciprocamente” (2020, p. 112). Quando os processos educativos criam pontes entre as pessoas, promovem pontos de intersecção, envolvem, valorizando a participação e a contribuição do indivíduo para o grupo. Eles têm o potencial de inspirar a superação de posicionamentos dicotômicos e de incentivar o diálogo social autêntico para este fim. Nessas trocas, o ponto de vista do outro provoca o diálogo interno que leva ao autoconhecimento e à visão de mundo sob um novo ângulo, o que, por sua vez, conduz à maturidade. Fundamental, então, é criar processos de encontro, como incentiva o Pontífice (2020, p. 113): “Armemos nossos filhos com as armas do diálogo! Vamos ensinar-lhes o bom combate do encontro!”.
Considerações finais
A educação é uma atividade essencialmente humana e, portanto, a noção de homem e de sociedade está em sua base. Somente mediante a sociedade é que o sujeito se constitui, o que implica compreendê-lo pelo contexto, pela cultura, pelos acontecimentos históricos, pelas condições e oportunidades de vida.
Fratelli Tutti é um chamado para a construção de um mundo melhor, mais justo e pacífico - onde o amor e a fraternidade prevaleçam sobre o individualismo -, com a contribuição de todas as pessoas e instituições. “Uma sociedade contemporânea confrontada com o retorno da barbárie deveria, em suas diversas formas de educação e ensino, afirmar como princípio antropológico o valor e a dignidade de cada vida humana, de cada ser humano” (Charlot, 2020, p. 300). De fato, para que o projeto de uma sociedade fraterna seja viável, os valores da solidariedade, da cooperação, da escuta ativa e do diálogo também necessitam estar vivos nos processos formativos de nosso tempo.
Em sintonia com os autores que sustentaram a reflexão neste artigo, ratifica-se a necessidade de se pensar a educação a partir da condição humana, enxergando o mundo humano como uma construção histórica, articulado com as demandas sociais e econômicas de cada época, mas profundamente aberto ao novo. A visão de educação como um instrumento para o desenvolvimento de competências individuais em um mundo globalizado baseado na competição e concorrência empobrece e simplifica a compreensão do ser humano. Defender uma visão de educação orientada para o bem comum e para a cooperação requer, enfim, enfrentar a discussão antropológica do humano que se quer formar neste momento social e histórico, como um meio de promover a democracia e a cooperação.
O ato de educar, tendo o diálogo como princípio pedagógico, implica na construção da consciência e leva o aluno a ver, compreender e vivenciar sua realidade; a poder expressar sua realidade e a si mesmo; a descobrir e assumir a responsabilidade de ser elemento de mudança da realidade (Benincá, 2010). A metodologia docente e o planejamento adequado da aula para preparar os alunos ao debate têm potencial para incentivar o exercício democrático, a experiência da vida social e do espaço comum, a cultura do encontro - tão enfatizada por Francisco (2020, p. 105): “Um país cresce quando dialogam de modo construtivo suas diversas riquezas culturais: a cultura popular, a cultura universitária, a cultura juvenil, a cultura artística e tecnológica, a cultura econômica e familiar, e a cultura dos meios de comunicação”. Mais do que nunca, é preciso rechear as experiências formativas de valores que se opõem ao individualismo e que, ao incentivar o cuidado com o próximo e com o ambiente, ajudem a compreender que conveniências pessoais não podem impedir o cultivo da amabilidade e a aproximação generosa com o diferente.
A formação integral de crianças, jovens e adultos, na perspectiva da constituição de um mundo humano comum, de uma sociabilidade baseada na solidariedade, no respeito mútuo e na fraternidade, é premissa para o enfrentamento ao individualismo egoísta que nos segrega. Mas quais são as condições para se viabilizar essa educação democrática? Como sustentar a escuta e a pergunta (e o perguntar-se) sobre o mundo e as relações sociais, isto é, a prática pedagógica dialógica nos processos educativos?
Há de se fortalecer, sem dúvida, a formação docente inicial e continuada, bem como as questões estruturais, para que a reflexão, a participação e o desenvolvimento da consciência crítica sejam constantes nas salas de aula. Contudo, sabe-se que a educação formal, isoladamente, não será suficiente nesta missão. Há de insistir, igualmente, em outros espaços. A responsabilidade da Igreja, no âmbito da formação de leigos, de religiosos, de sacerdotes, de agentes de pastoral, é grande para inspirar a articulação que se estabelece na e em comunidade, de modo a também qualificar o diálogo com o diferente. Afinal, é na relação humanizada e processual com os outros, especialmente com os mais vulneráveis, que nos colocamos a caminho nesta necessária travessia do individualismo à fraternidade.
Referências bibliográficas
BENINCÁ, Elli. A prática pedagógica em sala de aula: princípios e métodos de uma ação dialógica. In: BENINCÁ, Elli. Mühl, Eldon Henrique (Org.). Educação: práxis e ressignificação pedagógica. Passo Fundo: UPF Editora, 2010.
CHARLOT, Bernard. Educação ou barbárie? Uma escolha para a sociedade contemporânea. São Paulo: Cortez, 2020.
FRANCISCO. Fratelli Tutti: sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo: Paulus, 2020.
LAVAL, Christian e VERGNE, Francis. Educação Democrática: a revolução escolar iminente. Petrópolis/RJ: Vozes, 2023. p. 158-200.
1 Em 2019, o Papa Francisco e o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb se reuniram em Abu Dhabi e assinaram o Documento sobre a Fraternidade Humana em prol da Paz Mundial e a Convivência Comum - um exemplo e um convite aos povos do mundo para colaborar com o avanço dos valores universais do diálogo, da coexistência e da paz.
2 A parábola do Bom Samaritano, contada por Jesus e registrada no Novo Testamento, tem em sua narrativa a história de um homem atacado, que foi deixado ferido na estrada. Um sacerdote e um levita passam por ele, ignorando-o. Mas um samaritano resolve ajudá-lo, cuida de seus ferimentos e paga por sua estadia em uma hospedaria. A parábola desafia a indiferença, destacando a importância do cuidado com o próximo como requisito para superar inimizades e preconceitos.
3 O poliedro é uma figura geométrica com muitas faces que compõem a mesma unidade - “o todo é mais que a parte, sendo também mais do que a simples soma delas” (Francisco, 2020, p. 79).