ECONOMIA E JUSTIÇA SOCIAL À LUZ DA ENCÍCLICA FRATELLI TUTTI
Economy and social justice in the light of the encyclical Fratelli Tutti
DOI: https://doi.org/10.52451/7nkqfz88
Recebido em 24/02/2024
Aprovado em 04/05/2024
Tiago Arcego da Silva
Mestre em História pela Universidade de Passo Fundo - UPF. Graduado em História pela Universidade Federal da Fronteira Sul (2014). Especialista em Espiritualidade pela Faculdade de Teologia e Pastoral - Itepa Faculdades, de Passo Fundo. Especialista em Educação no Campo com ênfase em Estudos da Realidade Brasileira pela Universidade Federal da Fronteira Sul - Campus Chapecó. Membro da Articulação da Economia de Francisco e Clara. Contato: tiago_xxe@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4573-0683
Resumo: Este trabalho analisa como a Encíclica Fratelli Tutti propõe os princípios de Economia e Justiça Social. Para tanto, é percorrido um caminho metodológico de apresentação das condições e debates que inspiraram a publicação da mesma, diante do cenário econômico mundial, altamente predador, que gera desigualdades e destruição do planeta. Percebe-se que a Encíclica não é a inauguração do pensamento econômico do Papa Francisco, mas sim, está conectada a uma série de documentos anteriores, que já provocavam movimentos e ações concretas. O primeiro passo para a proposição da superação das desigualdades é a leitura consciente da realidade, nisso é possível estabelecer diálogo entre o texto do Papa Francisco com outros autores que já traçavam esse panorama. Por fim, estabelece-se uma leitura de cada capítulo da Encíclica, observando os temas chave, que são os princípios fundamentais de Francisco para uma nova economia e para a Justiça Social, convite que é feito para além dos muros da Igreja Católica.
Palavras-Chave: Encíclica Fratelli Tutti; Economia; Justiça Social; Papa Francisco.
Abstract: This work analyzes how the Encyclical Fratelli Tutti presents the principles of Economy and Social Justice. To this end, a methodological path is followed to present the conditions and debates that inspired its publication, given the highly predatory global economic scenario, which generates inequalities and destruction of the planet. It is clear that the Encyclical is not the inauguration of Pope Francis’ economic thought, but rather, it is connected to a series of previous documents, which already provoked movements and concrete actions. The first step towards overcoming inequalities is the conscious reading of reality, in which it is possible to establish a dialogue between Pope Francis’ text and other authors who have already outlined this panorama. Finally, a reading of each chapter of the Encyclical is established, observing the key themes, which are Francis’s fundamental principles for a new economy and Social Justice, an invitation that is made beyond the walls of the Catholic Church.
Keywords: Encyclical Fratelli Tutti; Economy; Social justice; Pope Francis.
INTRODUÇÃO
Desde o início do seu pontificado o Papa Francisco tem proposto um longo caminho para a reaproximação da humanidade com o sonho mais íntimo de Deus: o da Justiça Social. Suas encíclicas apontam um caminho metodológico que rompe as barreiras da crítica limitada ao sistema capitalista e trazem aspectos pedagógicos para sua superação. Mas, ainda há tempo e forças para se pensar um mundo pós capitalista e outro sistema econômico? Concretamente, o que Francisco propõe?
Dentro deste breve panorama pode-se destacar dois conceitos chave: Economia e Justiça Social. Importantes trabalhos, longos ou curtos, já foram elaborados em torno dessa temática. Neste texto, no entanto, o intuito não é fazer uma colaboração etimológica, teórica ou histórica dos termos, mas, sim, trazer elementos para uma leitura atual através da Encíclica Fratelli Tutti.
No Documento, publicado em outubro de 2020, Francisco chama a atenção, de maneira muito direta, para a necessidade de uma economia que seja inclusiva, promova a justiça social e esteja a serviço do bem comum. Esse apelo se contrapõe ao modelo econômico atual, cujas marcas são a desigualdade, o individualismo, a exclusão e a busca insustentável pelo lucro. O Papa ainda aponta para outros valores que balizarão uma nova economia, tais como, a fraternidade, a solidariedade e o cuidado mútuo (FT Capítulo IV).
A Encíclica Fratelli Tutti não apenas diagnostica as falhas do sistema atual, mas faz também uma convocação para a ação concreta, que seja fundamentada em uma nova compreensão e promoção de uma política necessária, reconhecer todos os povos como irmãos e praticar a caridade para com os mais pobres e com todo o planeta (FT Capítulo V). Na Igreja Católica do Brasil, a Campanha da Fraternidade de 2024, propõe a possibilidade de um grande debate nacional em torno do que se entende por essa “Fraternidade e Amizade Social”.1
Logo, percebe-se que as sugestões contidas no pensamento econômico e reflexões do Papa Francisco não são meramente conjecturas teóricas, mas, também, imperativo ético e moral necessário em meio às diferentes crises planetárias, sejam de ordem ambiental, social ou econômica. Diante dos níveis sem precedentes de desigualdade econômica, é urgente pensar e agir em direção a um mundo que esteja alinhado com os valores da verdade, da paz e do perdão (FT Capítulo VII).
É neste bojo de discussões que se propõe este artigo, organizado em dois blocos complementares. O primeiro trará uma análise mais ampla sobre a Encíclica Fratelli Tutti, diante do contexto de sua publicação e as provocações para a ação concreta encontrado nos documentos do Papa Francisco. O segundo apontará para o diálogo que a Encíclica faz com a realidade global, suas perspectivas para a superação das desigualdades e a inauguração de uma fraternidade universal.
1. “TODOS IRMÃOS”: O CHAMADO DO PAPA FRANCISCO PARA A FRATERNIDADE UNIVERSAL
É marca de todas as Encíclicas Papais que o seu título seja o mesmo das primeiras palavras do primeiro parágrafo, o que demonstra uma profunda convicção no “resumo” a ser dito em todas as referências de cada Documento. Assim como em Laudato Si2, em Fratelli Tutti3 o Papa Francisco buscou inspiração em São Francisco de Assis. Se na primeira ele recorria ao Cântico da Criaturas, agora são as Admoestações4 que darão nome ao amplo manifesto do Papa Francisco.
Somadas a Evangelli Gaudium5, Laudato Si e Fratelli Tutti, formam uma trilogia fundamental para a compreensão do pensamento de Bergoglio à frente do papado. Nesses documentos encontram-se as inspirações para compreender e superar os desafios do anúncio do Evangelho no mundo globalizado; as preocupações e o cuidado com a “Casa Comum”, ou seja, as relações de irresponsabilidade humana, amparadas no consumismo e no desenvolvimento a qualquer custo, que provocam o desiquilíbrio e a degradação de todo o planeta; e as relações entre os seres humanos, diferentes povos e culturas, baseadas na justiça social, que gerarão um mundo melhor. Esse tripé forma uma sólida e ousada contribuição de uma das principais lideranças mundiais atualmente.
Nesta última Encíclica, Francisco quer retomar o acúmulo de reflexões e apontar para novas saídas coletivas e universais rumo à Justiça Social. Mesmo a escrevendo a partir de convicções cristãs, o Papa manifesta que houve a preocupação em buscar um diálogo com “todas as pessoas de boa vontade” (FT 6), apresentando a Fratelli Tutti “como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras” (FT 6).
Para Zampiere, a Fratelli Tutti, embora seja uma síntese pessoal do Papa Francisco, está:
[...] em sintonia com os predecessores e com as conferências de bispos do mundo inteiro. E é uma introdução porque o Ensino Social da Igreja tem uma longa história e marcado por documentos célebres que vão da Rerum Novarum (1891), do Papa Leão XIII, passando por Quadragesimo Ano (1931), Divini Redemptoris (1937), Non Abbiamo Bisogno (1937), Mit brenender Sorge (1937), de Pio XI e Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963) do Papa João XXIII. O Concílio Vaticano II formulou uma síntese e abriu caminhos novos com a Constituição Pastoral Gaudium et Spes (1965). Depois do Vaticano II os Papas continuaram o caminho da defesa da dignidade humana, do trabalho, da justiça e da paz em vários momentos. De Paulo VI destaca-se Populorum Progressio (1967) e o Sínodo dos Bispos: A justiça no mundo (1967); De João Paulo II destaca-se Loborem Exercens (1981), Sollicitudo Rei Socialis (1987) e Centesimus Annus (1991). Papa Bento XVI colaborou com Deus Caritas Est (2005) e o Papa Francisco nos premiou com uma belíssima encíclica sobre a casa comum, intitulada, Laudato Si’ (2015) (Zampiere, 2020).
Assim, é preciso compreender a Encíclica como parte da Doutrina Social da Igreja. É um apontamento para a abertura dos cristãos com as diferentes realidades, credos, culturas, etc., pois todos habitam a mesma Casa Comum e devem todos perceberem-se como irmãos. No entanto, o texto não é endereçado somente aos cristãos católicos.
1.1 FRATELLI TUTTI E A ECONOMIA DE FRANCISCO
A Encíclica Fratelli Tutti é dividida em 8 capítulos que articulam uma profunda crítica às estruturas contemporâneas de poder, economia e sociedade, propondo uma nova visão de fraternidade e solidariedade como antídotos contra os males do individualismo e do capitalismo desenfreado. Além disso, Francisco desafia a ordem econômica global, criticando a maneira pela qual o neoliberalismo tem promovido uma “cultura do descarte” e exacerbado as desigualdades sociais e econômicas. Ele afirma que “o mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes, nos queiram fazer crer neste dogma de fé neoliberal” (FT 168).
No entanto, antes mesmo de lançar a Encíclica Fratelli Tutti, o Papa Francisco já anunciava sua preocupação com o modelo econômico atual.
Em meados de 2019, o Papa Francisco lançou um convite a jovens pesquisadores e estudantes de graduação e pós-graduação em economia e áreas correlatas, empreendedores e outros agentes de transformação social (a serviço do bem comum e de uma economia justa, sustentável e inclusiva) do mundo inteiro, para a construção de um pacto por uma nova economia. Intitulada como Carta do Santo Padre para o Evento A Economia de Francisco, o Pontífice fez a publicação desta mais precisamente no dia 1º de Maio, data celebrativa do Dia do Trabalhador em vários países e, na tradição do catolicismo, dedicado à memória de São José Operário, como há menção ao término do documento. Nela estão expressos, além do chamado a um evento específico sobre economia na cidade de Assis, as bases e inspirações para pensar um novo modelo econômico, [...] e o apelo que se configura como um importante movimento institucional da Igreja Católica em direção à contestação de modelos pautados em crescimento econômico que degradam a vida, em suas mais diversas formas (Silva et als., 2020, p. 72).
Com essa convocação de jovens do mundo todo, o Papa Francisco também conectava o seu pensamento ao pensamento de São Francisco de Assis, no intuito da busca pelo “realmar” da economia mundial. O movimento, mesmo tendo enfrentado os desafios da pandemia da COVID-19, o que o fez ainda mais necessário, ganhou adeptos do mundo todo. No Brasil, o segundo país com a maior delegação que iria participar do evento em Assis, na Itália, a Economia de Francisco tornou-se “Economia de Francisco e Clara”6 e foi pensada uma Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara (ABEFC), que impulsiona diversos debates e ações em torno das provocações do Papa.
Todo esse movimento mundial já introduzia o pensamento econômico de Francisco, dialogando para fora dos muros da Igreja Católica, no intuito de reunir lideranças, intelectuais, ativistas para pensarem alternativas possíveis e concretas para a superação de um modelo econômico predador. Assim, a Encíclica Fratelli Tutti foi mais um passo rumo a consolidação desta iniciativa, visando que a inclusão e a justiça social sejam colocadas no centro das políticas econômicas.7
1.2 FRATELLI TUTTI NÃO SOMENTE EM PALAVRAS
Como já mencionado, Fratelli Tutti não é apenas um documento destinado aos cristãos católicos, pelo contrário, é um chamado global à fraternidade, à solidariedade e ao compromisso com a justiça social e ambiental. Através de suas páginas, o Papa Francisco oferece uma visão de esperança e ação, incentivando todos, independentemente de sua fé ou falta dela, a trabalharem juntos e concretamente pela justiça social na Casa Comum.
Do ponto de vista da análise teórica, o documento permite interconexões múltiplas que conectam o pensamento crítico à realidade, possibilitando novas abordagens. Para Bavaresco e Jung, por exemplo:
A Carta de Francisco faz aproximações implícitas com a teoria crítica e a construtivista para análise das relações internacionais. As teorias críticas descrevem de forma holística os fundamentos da ordem internacional, numa lógica dialética e emergente, ou seja, o mundo presente não é imutável, mas é o resultado de um processo histórico dinâmico. As desigualdades e inseguranças são o produto de um processo histórico, socialmente construído, que evolui em permanente tensão transformativa para a criação de um novo multilateralismo. Propõe-se um projeto emancipatório cosmopolita, isto é, a necessidade de expandir as fronteiras morais das comunidades políticas atuais, através de uma ética cosmopolita que questione o valor moral das fronteiras nacionais, nomeadamente os seus “déficits morais”. Enfim, as abordagens críticas defendem a dimensão crítico/normativo/política para transformar/mudar o mundo, numa perspectiva emancipatória e inclusiva (Bavaresco; Jung, 2020, p. 5-6).
Logo, este documento não é apenas uma crítica, mas também um convite à ação. Encoraja a criação de pontes de diálogo e cooperação entre diferentes setores da sociedade e busca inspirar uma nova forma de solidariedade global. Tal movimento, coloca o Papa Francisco em papel de destaque na geopolítica e relações internacionais, onde “percebe-se a postura progressista [...] no seu ativismo quanto a temas sociais, com ênfase na questão dos direitos humanos” (Bavaresco; Jung, 2020, p. 2).
A influência da Encíclica Fratelli Tutti estende-se para além do campo religioso ao propor questões delicadas e sensíveis da atualidade, como a crise ambiental, o tratamento dado aos migrantes e refugiados e a urgência de políticas públicas mais efetivas. O documento serve como um lembrete de que os desafios enfrentados pela humanidade são interconectados e requerem soluções colaborativas, inclusive no campo do diálogo inter-religioso e intercultural.
2. ECONOMIA E JUSTIÇA SOCIAL NA LEITURA DA FRATELLI TUTTI
Como já exposto, em Fratelli Tutti, o Papa Francisco alerta para os perigos de uma mentalidade que coloca o mercado acima da pessoa humana, levando à marginalização dos pobres e à destruição do meio ambiente. Em contraposição, propõe uma visão de economia que coloque o ser humano no centro, garantindo que todas as pessoas tenham acesso aos recursos necessários para uma vida digna.
No entanto, é preciso que haja uma solidariedade global para o enfrentamento dos mais diversos desafios econômicos e sociais. Isso inclui medidas para combater a desigualdade econômica, garantir o acesso universal aos serviços básicos, como saúde e educação, e promover o desenvolvimento sustentável em todo o mundo. Para Francisco,
Solidariedade [...] é também lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, a terra e a casa, a negação dos direitos sociais e laborais. É fazer face aos efeitos destrutivos do império do dinheiro (...). A solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo, é uma forma de fazer história e é isto que os movimentos populares fazem (FT 116).
Percebe-se assim a importância dada às comunidades locais e à sociedade civil na promoção da justiça social, a partir de uma participação mais ativa na esfera política e econômica, promovendo “uma política melhor, ao serviço do verdadeiro bem comum” (FT 154). Pode-se refletir também que a Justiça Social e uma Economia mais justa passam pelo meio político. Nesse sentido, o Papa dialoga com as teses de que a desigualdade é também o resultado de escolhas políticas.
2.1 FRATELLI TUTTI: ONDE ESTAMOS E UM NOVO CAMINHO PARA UMA ECONOMIA QUE PROMOVA A JUSTIÇA SOCIAL
Como já apontado, o chamado à solidariedade global e ao comprometimento mútuo entre todos os povos, não é apenas teórico, mas, também um programa de ações. Em O Tao da Libertação, extenso e importante trabalho de Hathaway e Boff, já era possível encontrar os mesmos rumos para o encontro de caminhos que levassem à superação de um sistema que gera a exclusão e a desigualdade. Para os autores:
O primeiro passo na procura do caminho para o mundo no qual a vida, a beleza e dignidade possam florescer verdadeiramente é entender atual realidade nosso planeta. Como já vimos, vivemos numa época na qual os ecossistemas da Terra estão sendo rapidamente destruídos e uma minoria da humanidade monopoliza as riquezas do planeta. Ao mesmo tempo, experimentamos profundas e rápidas mudanças na maneira como organizamos as sociedades humanas. De uma forma múltipla, podemos dizer que estamos numa encruzilhada. Tecnologicamente falando, avanços em comunicação, em computação e em genética amplificam os poderes humanos de modo nunca visto antes. Economicamente falando, o mundo está sendo subjugado em todos os níveis pelos princípios de “mercado” e pela procura de lucro. Politicamente, as corporações transnacionais estão se tornando forças dominantes globais, apoiadas pelo poderio bélico de nações que só querem defender seus próprios interesses. Culturalmente, a mídia, a comunicação em massa, impõe valores desejos consumistas mundo afora (Hathaway; Boff, 2012, p. 50).
Para ampliar a reflexão, ainda pode-se citar o agravamento dos níveis de desigualdade no contexto pós pandemia da COVID-19 e o avanço dos conflitos bélicos pelo mundo todo. “Essas situações de violência vão se ‘multiplicando cruelmente em muitas regiões do mundo, a ponto de assumir contornos daquela que se poderia chamar de uma ‘terceira guerra mundial em pedaços” (FT 25).
Há acordo com Hathaway e Boff, quando traçam que a vida no planeta está passando por uma “doença que afeta o mundo todo” (Hathaway; Boff, 2012, p. 52).8 Tal doença apresenta três sintomas principais:
O primeiro sintoma dessa patologia é o aumento da diferença entre ricos e pobres. Muitos argumentariam, pelo menos em termos monetários, que a humanidade nunca foi tão rica. Nós vivemos no mundo cheio de maravilhas que nossos antepassados um século atrás teriam dificuldade em imaginar; por exemplo viagens e comunicação rápidas, medicina sofisticada, mecanismos facilitadores de trabalho e conforto suntuosos. Algumas estimativas até dizem que há maior diversidade de produtos consumíveis de que de espécies de organismos viventes. Globalmente os seres humanos agora produzem quase cinco vezes mais por pessoa do que há um século (Hathaway; Boff, 2012, p. 52).
É possível estabelecer paralelo do pensamento dos autores com a análise inicial de Francisco, em Fratelli Tutti. Para o Papa, parafraseando a Populorum Progressio, de Paulo VI, “há regras econômicas que foram eficazes para o progresso, mas não para o desenvolvimento humano integral” (FT 21). Francisco continua afirmando que “aumentou a riqueza, mas não a equidade; e, assim, nascem novas pobrezas” (FT 21).
Seguindo o raciocínio, Hathaway e Boff descrevem o segundo sintoma da doença global como o “rápido esgotamento das riquezas da terra, riquezas que incluem água límpida, ar puro, solo fértil e a grande diversidade de comunidades orgânicas. A mesma ganância que causa pobreza para humanidade também empobrece a terra” (Hathaway; Boff, 2012, p. 53-54). Essa relação de exploração desenfreada do ser humano sobre a natureza, também é preocupação no pensamento de Francisco.
Em Laudato Si’, o Papa já se pronunciava sobre esse sintoma como sendo um apelo para a humanidade. “Infelizmente, muitos esforços na busca de soluções concretas para a crise ambiental acabam, com frequência, frustrados não só pela recusa dos poderosos, mas também pelo desinteresse dos outros” (LS 14). Já em Fratelli Tutti, Francisco segue a mesma tendência de denúncia sobre a exploração da natureza, alertando ainda que: “Frequentemente, as vozes que se levantam em defesa do meio ambiente são silenciadas ou ridicularizadas, disfarçando de racionalidade o que não passa de interesses particulares” (FT 34).
Contudo, surge o terceiro sintoma da doença global, que:
[...] pode ser a maior ameaça de todas. Como nós continuamos a produzir uma quantidade cada vez maior de dejetos, esmagamos a capacidade natural do planeta de absorver, decompor e reciclar elementos contaminadores. Mais sério ainda que isto é o fato do que nós introduzimos materiais químicos e nucleares que envenenam e continuam a existir por longos períodos de tempo; e estamos também mudando a própria química de nossa atmosfera. Esses problemas de tolerância estão seriamente minando a saúde de todas as criaturas do planeta, bem como seus habitats (Hathaway; Boff, 2012, p. 56).
O envenenamento da vida compromete a saúde de todo o planeta para longo prazo. Demorará para que o Terra se refaça. Mesmo que os seres humanos parassem imediatamente com todo o tipo de poluição e descarte irregular de dejetos, demoraria muito para o planeta se regenerasse em condições ideais de habitabilidade.
Essa tríade de sintomas de uma sociedade doente, faz observar o modo como a economia e política estão distantes do ideal da justiça social. Como já mencionado, todas essas críticas e denúncias se apresentam também nas Encíclicas anteriores, bem como, em homílias, discursos, entrevistas e outros documentos publicados pelo Papa Francisco. O ponto de partida é perceber que humanidade caminha por um trilho de difícil retorno e somente com um pacto global, de irmandade universal, como sugerido em Fratelli Tutti, se chegará a outro cenário que não seja fim trágico para todos.
2.2. O CAMINHO A PERCORRER À LUZ DA FRATELLI TUTTI
Os 8 capítulos da Fratelli Tutti desenham caminho do pensamento de Francisco para a superação das desigualdades e a implementação da Justiça Social, diante de um contexto mundial grave. O Papa Francisco apresenta suas preocupações e esperanças para a realidade do início da década de 2020 e já com a leitura das consequências incalculáveis da pandemia da COVID-19.
No início da Encíclica aparece uma leitura geral sobre como Francisco enxerga o mundo, o “primeiro passo” mencionado pelos autores supracitados, trazendo elementos fundamentais que sintetizam seu ponto de partida para a Justiça Social. No Capítulo 1, As Sombras de um Mundo Fechado, Francisco apresenta os diversos desafios à fraternidade no mundo contemporâneo, incluindo o individualismo, o racismo, o descarte de pessoas e a globalização da indiferença. O Papa enfatiza como essas “sombras” contribuem para a “erosão” do senso de comunidade global.
Seguindo, através da parábola do Bom Samaritano, no Capítulo 2, Um Estranho no Caminho, o Papa propõe a fraternidade como resposta aos desafios sociais. Francisco convida a ver cada pessoa como um irmão ou irmã, independentemente de sua origem ou situação.
Já no Capítulo 3, Pensar e Gerar um Mundo Aberto, há o destaque para a importância de criar espaços inclusivos que acolham a diversidade e promovam o diálogo, a partir do amor universal. O Papa propõe que o bem moral e a solidariedade também são bases para se propor outra visão de propriedade e novos entendimentos para os direitos dos povos. Esse tema é essencial para o desenvolvimento de uma sociedade justa e fraterna.
No capítulo 4, Um estranho no caminho, Francisco aborda a questão da migração e do acolhimento aos estrangeiros. O Papa critica a tendência de fechar fronteiras e promover uma cultura do descarte em relação aos migrantes. Ele defende a necessidade de políticas e práticas que promovam a integração e a inclusão dos migrantes na sociedade, reconhecendo a riqueza que sua diversidade pode trazer. O Papa também alerta para os perigos do nacionalismo exacerbado e do populismo que alimentam o medo e a xenofobia. Em vez disso, ele apela para uma abordagem baseada na solidariedade e na fraternidade, onde todos se vejam como membros de uma única família humana, partindo do local para o global.
O Papa Francisco entende no Capítulo 5, A Melhor Política, como aquela que está firmemente focada no bem comum e no serviço à comunidade, promovendo a paz e a justiça social. Traz a abordagem sobre as diferentes tendências políticas, sendo que percebe como central a prática do amor para conduzir cada processo e decisão. É o amor que dá veracidade a uma “política sã” que
poderia conduzir o processo, envolvendo os mais diversos setores e os conhecimentos mais variados. Dessa forma, uma economia integrada em um projeto político, social, cultural e popular que vise o bem comum pode “abrir caminho a oportunidades diferentes, que não implica frenar a criatividade humana nem o seu sonho de progresso, mas orientar esta energia por novos canais” (FT 179).
No Capítulo 6, Diálogo e Amizade Social, é enfatizado o papel fundamental do diálogo na superação de conflitos e na construção de pontes entre diferentes grupos sociais e culturais, visando a amizade social e a compreensão mútua. Francisco conclama a humanidade para uma nova cultura do diálogo, construída coletivamente. “O diálogo perseverante e corajoso não é noticiado como as desavenças e conflitos; contudo, de forma discreta, mas além do que podemos notar, ajuda o mundo a viver melhor” (FT 198).
É no Capítulo 7, Caminhos de um Novo Encontro, que Francisco aborda os desafios e as oportunidades de reconstrução após crises e conflitos. Ele destaca a importância de aprender com os erros do passado e promover uma cultura do encontro e da reconciliação, baseada na verdade, perdão, na justiça e na solidariedade. Eliminar o outro não é uma possibilidade, de forma alguma, na busca pela Justiça Social. Paz, perdão, inclusão, superação e memória, são conceitos que contribuem a pavimentar esse caminho.
Por fim, o Capítulo 8, As Religiões ao Serviço da Fraternidade no Mundo, discute o papel das religiões na promoção da fraternidade e da paz mundial. O Papa argumenta que, apesar das diferenças, todas as tradições religiosas são chamadas a contribuir para a harmonia global. Sob uma ótica ecumênica, Francisco afirma que:
O diálogo entre pessoas diferentes religiões não se faz apenas por diplomacia, amabilidade ou tolerância. Como ensinaram os bispos da Índia, “o objetivo do diálogo é estabelecer amizade, paz, harmonia e partilhar valores e experiências morais e espirituais em espírito de verdade e amor (FT 271).
Esse é panorama geral do programa do Papa Francisco para a construção de uma nova economia, que resulte em Justiça Social, sem que ninguém fique para trás, nenhuma cultura, nenhum povo, nenhuma pessoa. Esse lugar, onde o sonho de Deus mora, é também um sonho realizável para todos os povos, no entanto, a realização se dará a partir do diálogo, testemunho e comunhão.
CONCLUSÃO
É imperativo reconhecer o chamado urgente para uma revisão profunda de como o ser humano está conduzindo a vida no planeta. Nesse sentido, o Papa convida a contemplar uma economia que transcende a busca incessante por lucro, priorizando, em vez disso, o bem-estar humano e a sustentabilidade ambiental. Tal propositiva não é meramente teórica, mas um apelo à ação concreta para instituições, governos e indivíduos, sugerindo uma virada radical em direção à solidariedade e ao cuidado, especialmente, com os mais vulneráveis.
A Encíclica Fratelli Tutti, embora não seja a inauguração do pensamento econômico do Papa Francisco, serve como um farol de esperança e um roteiro para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. Nela a fraternidade e a amizade social são os alicerces necessários para uma economia que serve verdadeiramente ao bem comum. Francisco desafia a cultura do descarte e o individualismo exacerbado, enfatizando a necessidade de uma conversão coletiva que rejeite a indiferença e abrace a responsabilidade compartilhada, tanto pelo planeta, como uns pelos outros.
Compreender o cenário atual e a preocupante realidade da vida no planeta é o primeiro passo para desenhar a rota de superação. O Papa Francisco fez esse movimento com provocações anteriores a Fratelli Tutti. Sua contribuição se soma a outras análises e propostas para a superação de um sistema econômico que gera pobreza e desigualdade, explora o meio ambiente e agride, de maneira estrutural e irreparável, o planeta Terra.
Contudo, os 8 capítulos da Encíclica Fratelli Tutti, propõem-se como um caminho para a inauguração de outra economia. Todos os valores contidos são balizados na solidariedade, amizade social, amor universal, fraternidade e diálogo. É neste cenário que Francisco busca fortalecer sua contribuição para além dos muros da Igreja Católica, a fim de efetivar o sonho corajoso de Deus, o da Justiça Social.
Referências Bibliográficas
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ZAMPIERE, Gilmar. Fratelli Tutti: Uma Introdução. Disponível em: https://www.gilmarzampieri.com.br/post/fratelli-tutti-uma-introdu%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 17 dez. 2023.
1 Em 2024, a Igreja Católica no Brasil marca 60 anos de Campanhas da Fraternidade, que ocorre no período da quaresma. O tema escolhido foi “Fraternidade e amizade social” e referencia muito a Encíclica papal Fratelli Tutti.
2 Encíclica lançada pelo Papa Francisco em 25 de maio de 2015. “Laudato Si” quer dizer “Louvado Seja”, de inspiração no Cântico da Criaturas de São Francisco de Assis.
3 Terceira Encíclica do Papa Francisco, assinada em 03 de outubro de 2020, na cidade de Assis. Fratelli Tutti significa “Todos Irmãos”.
4 São um conjunto de 28 textos atribuídos a São Francisco de Assis que abordam temas variados. Especificamente, Fratelli Tutti aparece no texto 06, onde, segundo o Papa Francisco, o Santo “Com poucas e simples palavras, explicou o essencial de uma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada uma nasceu ou habita” (FT 1).
5 “A Alegria do Evangelho”. Primeira Encíclica lançada pelo Papa Francisco, ainda em 2013. Esse documento pretende ser uma inspiração diante dos desafios do anúncio do Evangelho no mundo moderno.
6 Já possível encontrar vários trabalhos importantes sobre a temática. Os jovens e pesquisadores, ligados a Articulação Nacional da Economia de Francisco e Clara produziram uma série de artigos publicados no site IHU – Adital: https://www.ihu.unisinos.br/publicacoes/mais-publicacoes?q=economia%20de%20francisco. Outros trabalhos iniciais são: BRASILEIRO, Eduardo (Org.). Realmar a economia: a economia de Francisco e Clara. São Paulo: Paulus, 2023; SILVA, Tiago Arcego da; et als. ECONOMIA DE FRANCISCO E CLARA: Respostas das juventudes brasileiras para e por uma nova economia. Revista P2P & Inovação. Disponível em: https://revista.ibict.br/p2p/article/view/5414/5069. Acesso em: 13 dez. 2023; ABEFC. A Economia de Francisco e Clara: Denúncia às violências financeiras e anúncio de economias para o bem viver. Disponível em: https://anima.pucminas.br/wp-content/uploads/2023/03/Cartilha-Economia-de-Francisco-e-Clara.pdf. Acesso em: 14 dez. 2023.
7 Para Lomonaco e José (2021), a encíclica também é fruto do “encontro de 2019 com o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb em Abu Dhabi e ao Documento sobre a fraternidade humana pela Paz Mundial e a convivência comum”.
8 Nesse sentido, é possível encontrar muitas referências com caminho metodológico parecido nas encíclicas papais anteriores, especialmente em Laudato Si, onde o Papa reforça faz uma ampla análise sobre as condições de vida na “Casa Comum”.