FRATERNIDADE E DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO

Fraternity and interreligious dialogue

DOI: https://doi.org/10.52451/teopraxis.v41i136.208

Recebido em 10/12/2023

Aprovado em 22/03/2024

Paulo César Nodari

Formado em Filosofia e Teologia. Doutor e Pós-Doutor em Filosofia. Professor na Universidade Católica de Brasília (UCB). Coordenador dos Cursos de Filosofia, Teologia e Gestão Paroquial e Projetos Sociais na Modalidade EAD da UCB. Contato: paulocesarnodari@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4123-8683 .

Resumo: O presente artigo objetiva analisar a relação existente entre a fraternidade e o diálogo inter-religioso e sua respectiva relevância para a construção de uma nova cultura. Desse modo, busca-se refletir sobre algumas questões e alguns problemas expostos pelo Papa Francisco em sua Carta Encíclica Fratelli Tutti, sobretudo, no que se refere à importância do diálogo inter-religioso para a efetivação de uma cultura de encontro e de fraternidade, baseada na amizade social e no amor político. Para tanto, em um primeiro momento, trata-se de analisar o conceito de fraternidade, para, em um segundo momento, apresentar alguns pressupostos imprescindíveis, para que, de fato, seja possível articular e desenvolver um diálogo inter-religioso respeitoso, construtivo e cooperativo, cuja finalidade seja o desenvolvimento integral do ser humano em uma sociedade mais fraterna e pacífica.

Palavras-chave: Fraternidade; Diálogo Inter-religioso; Amizade Social; Cultura; Religiões; Paz.

Abstract: This article aims to analyze the relationship between fraternity and interreligious dialogue and its respective relevance for the construction of a new culture. In this way, we seek to reflect on some questions and problems exposed by Pope Francis in his Encyclical Letter Fratelli Tutti, especially with regard to the importance of interreligious dialogue for the implementation of a culture of encounter and fraternity, based in social freindship and political love. To This end, initially, it is about analyzing the concept of fraternity, and, secondly, presenting some essencial assumptions, so that, in fact, it is possible to articulate and develop a respectful, constructive and cooperative interreligious dialoge, whose purpose is the integral development of human beings in a more fraternal and peaceful society.

Keywords: Fraternity; Interreligious Dialogue; Social Friendship; Culture; Religions; Peace.

1 Introdução

Fratelli Tutti: sobre a fraternidade e a amizade social” (doravante: FT) é o título da Carta Encíclica do Papa Francisco, lançada, em Assis, na Itália, em outubro de 2020. Em meio a tantas dificuldades, turbulências, angústias e medos, o Papa Francisco, o primeiro papa na história da Igreja Católica proveniente do continente americano, mais especificamente, da denominada periferia latino-americana, lança um olhar, ao mesmo tempo, crítico e problematizador, mas, também, esperançoso sobre a realidade econômica, social, cultural, política, e religiosa em que o mundo se encontrava e se encontra. Os fatores e as causas são múltiplas a respeito do contexto internacional globalizado deste primeiro quartel do século XXI. Referencia-se, especialmente, a pandemia do coronavírus. A Covid 19 trouxe, mundo afora, além de muita dor, sofrimento e tristeza, muitos desafios, muitas mortes, também, muitas perguntas. Ela trouxe, por sua vez, questionamentos, bem como, algumas possíveis respostas à humanidade enquanto tal, ainda que a mesma não as queira, ou talvez, prefira não as discernir, assumir e responsabilizar-se.

Buscar-se-á, a seguir, refletir sobre algumas questões e alguns problemas expostos pelo Papa Francisco na FT, sobretudo, no que se refere à compreensão de fraternidade e diálogo inter-religioso. Desse modo, em um primeiro momento, tentar-se-á esboçar alguns traços acerca da compreensão do conceito amizade social e fraternidade, para, em um segundo momento, traçar pontos imprescindíveis para tornar possível, de fato, o diálogo inter-religioso. Acerca do tema da Fraternidade e Amizade Social, que também é a temática e o próprio tema da Campanha da Fraternidade (doravante: CF) de 2024, cujo lema traz de modo emblemático a expressão do evangelista Mateus: “Vós sois todos irmãos e irmãs” (Mt 23,8), eis como se expressa o Papa Francisco, na Carta Encíclica:

As páginas seguintes não pretendem resumir a doutrina sobre o amor fraterno, mas detêm-se na sua dimensão universal, na sua abertura a todos. Entrego esta Encíclica social como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras. Embora a tenha escrito a partir das minhas convicções cristãs, que me animam e nutrem, procurei fazê-lo de tal maneira que a reflexão se abra ao diálogo com todas as pessoas de boa vontade. (FT, 6).

2. Fraternidade Universal

O Para Francisco, com corajosa ousadia, ao lançar uma Carta Encíclica sobre uma temática tão importante à vida de toda humanidade, levanta sérios questionamentos a respeito de como são tratados de maneira, por assim dizer, ardilosa, manipulada, ludibriada e camuflada, temas e questões tão complexas, mas, ao mesmo tempo, imprescindíveis que interferem, coincidem e até se confundem diretamente com a própria vida de todos os seres humanos no planeta. Eis algumas, dentre outras, dessas questões e temáticas inevitáveis de questionamento e de enfrentamento em nossa época, considerada não apenas como época de mudanças, mas, sobremaneira, mudança de época: as temáticas da mobilidade humana atual; da abertura ou fechamento das fronteiras dos países; da supremacia da economia do mercado globalizado; da exclusão dos pobres, vulneráveis e fracassados ante o insucesso econômico e profissional; da discussão das diferenças existentes entre as pessoas, as culturas e os povos; da crise climática e ecológica; da justiça intergeracional; etc. Tais temáticas, é claro, vêm e estão envoltas em muitos aspectos complexos, sem dúvida, mas, também, elas vêm sobrecarregadas, sobrepujadas de doses muito bem articuladas, homeopática e massivamente, interesseiras, mercadológicas, discriminatórias e excludentes, a ponto de serem, por vezes, ou até, na maioria das vezes, imperceptíveis, invisíveis ou dificilmente decifradas.

Deus é amor. “Deus é amor, e quem permanece no amor permenece em Deus e Deus nele” (1Jo 4,16). Segundo o Catecismo da Igreja Católica, Deus é amor (CIC, 221), e a Criação é obra do querer e do amor de Deus à humanidade toda e de que Deus é Pai de todos e todas (CIC, 238), e, sendo, por isso, todos irmãos e irmãs. Trata-se de um princípio fundamental da doutrina Católica e também das Igrejas Cristãs (CIC, 239). Nesse sentido, segundo o próprio Papa Francisco, a realidade do mundo atual apresenta-se muito fechada e com muitas sombras, conforme ele mesmo trabalha e analisa no primeiro capítulo da FT (As sombras de um mundo fechado). A sustentação e a manutenção desse mundo de sombras não oferecem as condições necessárias para ser, de fato, um mundo no qual se possa afirmar ser a Casa Comum, na qual todos se sentem irmãos e irmãs, pois veem-se sobrepor em muitas situações e realidades aos princípios da dignidade e da inviolabilidade da vida e do bem comum os interesses privados e a ganância de concentração, de acúmulo de bens e privilégios por parte de quem detém o poder decisório e quer tudo para o seu bem-estar, não importando-se, por conseguinte, com a vida em comum de toda a humanidade e de todos os seres vivos na Casa Comum. Afirma, pois, o Papa Francisco:

Neste mundo que corre sem um rumo comum, respira-se uma atmosfera em que “a distância entre a obsessão pelo próprio bem-estar e a felicidade da humanidade partilhada parecem aumentar: até fazer pensar que, entre o indivíduo e a comunidade humana, já esteja em curso um cisma. (...) Porque uma coisa é sentir-se obrigado a viver junto, outra é apreciar a riqueza e a beleza das sementes de vida em comum que devem ser procuradas e cultivadas em conjunto”. A tecnologia avança continuamente, mas “como seria bom se, ao aumento das inovações científicas e tecnológicas, correspondessem também uma equidade e uma inclusão social cada vez maiores! Como seria bom se, enquanto descobrimos novos planetas longínquos, também descobríssemos as necessidades do irmão e da irmã que orbitam ao nosso redor!”. (FT, 31).

Caso alguém se debruçar para olhar, verificar e analisar o próprio sumário da Carta Encíclica FT, aqui em questão, entenderá que o Papa Francisco, enquanto líder da Igreja Católica, está assumindo, decididamente, o protagonismo do convite, e, caso se quiser, da convocação feita a toda humanidade para a construção e para a realização de um percurso que trilha o caminho rumo a uma civilização do amor, isto é, para uma civilização da fraternidade universal. Ao se lançar os olhos e o entendimento fixos nos títulos dos capítulos e nos respectivos e sucessivos itens elencados em cada um dos capítulos da FT, chega-se, facilmente, a considerar e a ponderar que o Papa Francisco parte da constatação de um mundo alinhavado e alicerçado sobre pilares sustentadores de uma cultura, dominantemente, de fechamento e de exclusão, cujos privilégios são reservados a um grupo de pessoas cada vez mais minoritário, concentrado e poderoso, em detrimento de uma grande maioria que mingua para poder, quando e quanto muito, sobreviver, lutando para conseguir algumas migalhas que sobram. Essa é a constatação a que se chega e pode ser defendida com muito bons argumentos e análises críticas (Costa, 2016; Galimberti, 2006; Nodari; Síveres, 2021).

No entanto, o Bispo de Roma não aceita apenas constatar e permanecer neste mundo excludente, referência ao qual ele escreve, especialmente, o primeiro capítulo: “As sombras de um mundo fechado”. O Papa Francisco, buscando trazer luzes para superar o fechamento e a exclusão, rumo a um mundo aberto e de encontro, lança um olhar para a Parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 25-37), argumentando que o “estranho”, ou então, o “forasteiro” não é um empecilho, antes, muito pelo contrário, ele é uma oportunidade que é oferecida e dada para cada qual crescer como ser humano, e, também, como humanidade, composta por diferentes rostos, culturas e povos, sendo esta diversidade uma riqueza inominável de embelezamento, complementação e realização. “Essa parábola é um ícone iluminador, capaz de manifestar a opção fundamental que precisamos fazer para reconstruir nosso mundo ferido. Diante de tanta dor, à vista de tantas feridas, a única via de saída é ser como o bom samaritano.” (FT, 67).

Trata-se, pois, de pensar e gerar um mundo aberto, alicerçado sobre os pilares do encontro, do diálogo, da paz e do amor. Com outras palavras, de acordo com o Papa Francisco, é urgente superar um mundo de sócios, de noções inadequadas de um amor universal, nas quais há sempre compreensões lacunares e unidimensionais. Faz-se necessário gerar um mundo aberto em que os direitos sem fronteiras sejam observados e a solidariedade seja, de fato, um valor primordial capaz de promover o amor universal e de repropor a própria função social da propriedade e dos bens, a fim de que todos e todas, filhos e filhas do mesmo Pai, possam viver com dignidade e seja possível e assumido, por conseguinte, o processo de formação e desenvolvimento integral de todos os seres humanos. E isso significa, em última análise, de uma nova rede de relações, sejam pessoais, comunitárias, sociais, culturais, políticas e econômicas. Afirma a FT a respeito da nova mentalidade de convivência não mais alicerçada no poder, no consumo e no desperdício e na cultura do descartável, e, sim, no cuidado com todos os habitantes da Casa Comum:

Trata-se, sem dúvida, de outra lógica. Se não se fizer esforço para entrar nessa lógica, as minhas palavras parecerão um devaneio. Mas, se se aceita o grande princípio dos direitos que brotam do simples fato de possuir a inalienável dignidade humana, é possível aceitar o desafio de sonhar e pensar em uma humanidade diferente. É possível desejar um planeta que garanta terra, teto e trabalho para todos. Esse é o verdadeiro caminho da paz, e não a estratégia insensata e míope de semear medo e desconfiança perante ameaças externas. Com efeito, a paz real e duradoura é possível só “a partir de uma ética global de solidariedade e cooperação a serviço de um futuro modelado pela interdependência e a corresponsabilidade na família humana inteira”. (FT, 127).

Outro pensamento muito importante trazido à tona pelo texto do Santo Padre diz respeito à importância do agir e da ação política no pequeno ambiente, mas, também, no ambiente de prospecção mais amplo. Segundo o Papa Francisco, precisa-se ter clareza tanto a respeito do mundo cotidiano e local, ou seja, no ambiente no qual cada um vive, caminha e partilha a vida, como também, simultaneamente, do mundo global, das relações macros. “É preciso olhar para o global, que nos resgata da mesquinhez caseira. Quanto a casa deixa de ser lar para se tornar confinamento, calabouço, resgata-nos o global, porque é como a causa final que nos atrai para a plenitude.” (FT, 142). A dialética da metáfora “pés bem alicerçados no chão em que se pisa” e “olhos para um mundo aberto” é muito significativa. “Ao mesmo tempo, temos de assumir intimamente o local, pois tem algo que o global não possui: ser fermento, enriquecer, colocar em marcha mecanismos de subsidiariedade.” (FT, 142). Trata-se, pois, da comunhão, ou então, da simbiose que precisa haver entre a fraternidade universal e a amizade social em cada sociedade. A dicotomia entre as duas levaria, muito provavelmente, à impossibilidade da realização e efetivação de uma civilização do amor. “Portanto, a fraternidade universal e a amizade social dentro de cada sociedade são dois polos inseparáveis e ambos essenciais. Separá-los leva a uma deformação e a uma polarização nociva.” (FT, 142). Nessa perspectiva, é preciso o intercâmbio contínuo entre o regional e o nacional e entre o nacional e o internacional, sendo, pois, urgente, pensar caminhos e estruturas capazes de possibilitar e sustentar políticas de abertura e de discussão e implementação de medidas de garantia do bem comum para todas as pessoas, para todas as culturas e para todos os povos. Precisa-se superar, pois, a cultura de muralhas e de muros e passar para uma concepção, para uma mentalidade, e, enfim, para uma cultura do encontro, de responsabilidade e de amor. Faz-se urgente crescer e desenvolver-se em cada ser humano um novo estilo de vida baseado e sustentado em uma cultura aberta e acolhedora. Afirma o Papa Francisco:

A solução não é uma abertura que renuncie ao próprio tesouro. Tal como não há diálogo com o outro sem identidade pessoal, assim também não há abertura entre povos senão a partir do amor à terra, ao povo, aos próprios traços culturais. Não me encontro com o outro se não possuo um substrato no qual estou firme e enraizado, pois é a partir dele que posso acolher o dom do outro e oferecer-lhe algo de autêntico. Só posso acolher quem é diferente e perceber a sua contribuição original, se estiver firmemente ancorado a meu povo com a sua cultura. Cada um ama e cuida, com particular responsabilidade da sua terra e preocupa-se com o seu país, assim como deve amar e cuidar da própria casa para que não caia, ciente de que não o fração os vizinhos. O próprio bem do mundo requer que cada um proteja e ame a sua própria terra; caso contrário, as consequências do desastre de um país repercutir-se-ão em todo o planeta. Isso se baseia no sentido positivo do direito de propriedade: guardo e cultivo algo que possuo, a fim de que possa ser uma contribuição para o bem de todos. (FT, 143).

Ao mencionar-se uma nova mentalidade, estima-se e enseja-se uma cultura política alinhada e conectada com o princípio do bem comum, em sintonia cuidadosa e zelosa com as coisas públicas e comuns. Segundo Arendt: “A política trata da convivência entre diferentes. Os homens se organizam politicamente para certas coisas em comum [...].” (2028, p. 21). Só uma organização e um planejamento comuns, envolvendo todas as áreas do conhecer e do agir humanos, poderão conduzir a um desenvolvimento humano integral, uma vez que a política visa à preservação da vida humana e ao sentido da vida humana e de todos os seres vivos na Casa Comum (Nodari, 2022, p. 108). “A boa política procura caminhos de construção de comunidade nos diferentes níveis da vida social, a fim de reequilibrar e reordenar a globalização para evitar seus efeitos desagregadores.” (FT, 182) A política tem dignidade e tem uma missão inexoravelmente ligada ao bem viver de todas as pessoas, tendo um olhar e uma atenção muito especial e preferencial às políticas públicas, sobretudo, em consideração à população mais carente e pobre. Trata-se de um projeto de fraternidade universal e amizade social, no qual o fim a que se busca é, em última análise, uma cultura de paz e de convivência pacífica. “Requer- se coragem e generosidade para estabelecer livremente certos objetivos comuns e assegurar o cumprimento em todo o mundo de algumas normas essenciais.” (FT, 174).

A Carta Encíclica FT traz elementos muito importantes à luz dos quais as diversas e diferentes instâncias devem deixar-se questionar e também precisam fomentar a discussão e o debate abertos e amplos. Como registro, lembram-se algumas categorias muito importantes a serem tomadas em consideração no projeto de fraternidade e amizade social, tais como: identidade de povo, princípio do bem comum, importância do mercado, educação política, caridade social e política, amor político, poder internacional. Tais categorias, no fim de contas, querem auxiliar a reconhecer a todo ser humano sua dignidade e sua riqueza e importância para o embelezamento da criação de Deus. É preciso pensar e trabalhar por uma civilização do amor presente e futura na qual e para a qual todos contam e são relevantes, e, para tanto, a política precisa assumir as rédeas e não estar submissa e subserviente à economia depredatória e excludente da denominada economia globalizada. Afirma a FT:

Gostaria de insistir que a “política não deve submeter-se à economia, e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia” (LS, n. 189). Embora se deva rejeitar o mau uso do poder, a corrupção, a falta de respeito às leis e a ineficiência, “não se pode justifica uma economia sem política, porque seria incapaz de promover outra lógica para governar os vários aspectos da crise atual” (LS, n. 196).

Pelo contrário, “precisamos de uma política que pense com visão ampla e leve por diante uma reformulação integral, abrangendo em um diálogo interdisciplinar os vários aspectos da crise” (LS, n. 197). Penso em uma “política salutar, capaz de reformar as instituições, coordená-las e dotá-las de bons procedimentos, que permitam superar pressões e inércias viciosas” (LS, n. 181). Não se pode pedir isso à economia, nem aceitar que ela assuma o poder real do Estado. (FT, 177).

Busca-se, então, criar condições e processos para uma nova mentalidade e para uma nova cultura, a saber, uma cultura de encontro e de fraternidade universal. Não obstante cada um nasça dentro de uma sociedade já constituída, cada um seja único e singular, nasça pertencente a uma denominada cultura, cada um parta para estabelecer seu mundo, é imprescindível perceber e superar a falsa ideia de que o outro, o diferente, seja enquanto indivíduo, seja enquanto expressão cultural de um povo constitua-se como um empecilho para a efetivação e a realização da jornada existencial de cada pessoa e de cada povo. Compreender- se, pois, como seres de relação, seres de finitude, seres de abertura e inacabamento, tanto singular como comunitariamente, é muito importante para a efervescência e para a efetivação de uma cultura de diálogo, de encontro e de paz. As diferenças não são causa de distanciamentos, de conflitos violentos, de construção de muros, mas, pelo contrário, ocasião para aproximação, para o diálogo e para a comunicação e troca de experiências e riquezas sociopolíticas e culturais. A abertura dialogal do intercâmbio das diferenças, embora possam criar tensões e algumas dificuldades a serem superadas, são, certamente, ocasião e possibilidade de desenvolvimento humano. Em uma sociedade plural o diálogo é sempre o caminho mais adequado para edificar a humanidade em sua dignidade em todo e qualquer tempo e lugar, porque todos são importantes e ninguém é inútil. E, nesse sentido, segundo o Papa Francisco, a vida é a arte do encontro e do encontro com o outro, que é diferente e precisa ser reconhecido como outro. Precisa-se, pois, criar hábitos e processos de encontro, isto é, é preciso cultivar a arte do encontro de modo a ter disposição e atitude de encontro e superar as possibilidades de desencontro.

Sabe-se que a cultura do encontro não virá sem muito trabalho, dedicação, perdão e boa vontade por parte de toda a humanidade, especialmente, por parte, também, das lideranças políticas de todas as nações. A história da humanidade em seu longo caminho é marcado e assinalado por muitos e inúmeros conflitos, violências e guerras. Trabalhar os caminhos para a construção de uma fraternidade universal exige muito esforço, muita paciência, muita resiliência, mas, evidentemente, sem ingenuidades e estratégias de camuflagem, ou então, imaginar que se possa, de momento para momento, alcançar o patamar de uma nova mentalidade e de uma cultura de encontros. “Novo encontro não significa voltar ao período anterior aos conflitos. Com o tempo, todos mudamos. A tribulação e os confrontos transformam-nos. Além disso, já não há espaço para diplomacias vazias, dissimulações, discurso com duplo sentido, ocultações, bons modos que escondem a realidade.” (FT, 226).

Trata-se, portanto, de um trabalho paciente e perseverante da verdade e da justiça, sem, contudo, esquecer o sofrimento, sequelas e as mazelas de dor e sofrimento causadas por tais acontecimentos. Não é possível reconstruir a história sem tomar em consideração a memória das vítimas, isto é, sem levar em conta a história em sua realidade “nua e crua”. Não se aceita a história em sua unilateralidade dos que contam, narram e relatam a história de um ponto de vista do progresso técnico-científico sem tomar em conta todo o seu invólucro, em suas diversas e múltiplas particularidades. Lembra-se, por isso, que a via para os caminhos de encontro e de paz não significa homogeneizar as sociedades e as nações, mas, sim, trabalhar juntos em prol do bem comum. “O caminho para uma melhor convivência implica sempre reconhecer a possibilidade de que o outro contribua com uma perspectiva legítima, pelo menos em parte, algo que possa ser reavaliado, mesmo que se tenha enganado ou agido mal.” (FT, 228). A arquitetura da cultura de encontro e de paz não é simples, não é fácil e não é momentânea. O engajamento de cada pessoa, de cada cultura e de cada sociedade exige disposição, convicção, perseverança, perdão, misericórdia e clareza de que se trata de um longo caminho a ser percorrido, e, muito provavelmente, incansavelmente, de busca constante e inconclusa, uma vez que o projeto arquitetônico de paz e dignidade prevê um mundo justo e melhor para toda a humanidade e não apenas para alguns grupos e nações. Logo: “Aqueles que pretendem levar a paz a uma sociedade não devem esquecer que a desigualdade e a falta de desenvolvimento humano integral impedem que se gere a paz.” (FT, 235). Afirma com muita clareza e convicção o Papa Francisco acerca dos graves problemas que rondam e assolam a nossa humanidade, rememorando que a arquitetura do encontro e da paz não se alicerça exclusivamente em regras e leis, embora as mesmas sejam extremamente importantes:

Tampouco serão suficientes as normas, se se pensa que a solução para os problemas atuais consiste em dissuadir os outros através do medo, ameaçando-os com o uso de armas nucleares, químicas ou biológicas. Com efeito, “se tomarmos em consideração as principais ameaças contra a paz e a segurança com as suas múltiplas dimensões neste mundo multipolar do século XXI – por exemplo, o terrorismo, os conflitos assimétricos, a segurança informática, os problemas ambientais, a pobreza –, muitas dúvidas emergem acerca da insuficiência da dissuasão nuclear para responder de modo eficaz a tais desafios. Essas preocupações assumem ainda mais consistência quando consideramos as catastróficas consequências humanitárias e ambientais que derivam de qualquer utilização das armas nucleares com efeitos devastadores indiscriminados e incontroláveis no tempo e no espaço. (…) Devemos perguntar-nos também quão sustentável é um equilíbrio baseado no medo, quando de fato ele tende a aumentar o temor e a ameaçar as relações de confiança entre os povos. A paz e a estabilidade internacionais não podem ser fundadas num falso sentido de segurança, na ameaça de uma destruição recíproca ou de um aniquilamento total, na manutenção de um equilíbrio de poder. (…) Em tal contexto, o objetivo final da eliminação total das armas nucleares torna-se um desafio mas também um imperativo moral e humanitário. (...) A crescente interdependência e a globalização significam que a resposta que se der à ameaça de armas nucleares deve ser coletiva e planeada, baseada na confiança recíproca, que só pode ser construída através do diálogo sinceramente dirigido para o bem comum e não para a tutela de interesses velados ou particulares”. E, com o dinheiro usado em armas e noutras despesas militares, constituamos um Fundo mundial (PP, n. 51), para acabar de vez com a fome e para o desenvolvimento dos países mais pobres, a fim de que os seus habitantes não recorram a soluções violentas ou enganadoras, nem precisem de abandonar os seus países à procura de uma vida mais digna. (FT, 262).

Sabe-se que a convivência pacífica não é tarefa simples e momentânea. Tem-se consciência de que há muitos interesses em jogo e que o capital, as riquezas e os benefícios jogam com grande poder e força no compromisso responsável pela construção de uma nova cultura de paz e de encontro. Vê-se, também, infelizmente, com evidências clarividentes, a propagação da globalização da indiferença e da efetivação de formas de vida alinhadas e sustentadas em um individualismo fechado em uma espécie de redoma inquebrantável e inatingível. Importante é que cada qual possa gozar de sua vida e de seus benefícios alcançados não importando de que maneira, mas, em todo caso, em tal patamar se encontrando, fechando- se e não solidarizando-se com o sofrimento, com o desespero do outro que clama por comida, moradia, trabalho, respeito e vida digna, o mínimo exigido para que se possa afirmar ser minimamente denominada de uma vida humana, de fato. Eis o grande desafio a que todos estão submetidos e convidados a perceber, ver, sentir, pensar e agir, por conseguinte. Situações que constatam e exemplificam a globalização da indiferença e uma espécie de desumanização do ser humano enquanto tal não faltam. Muitos exemplos há. Citam-se, neste momento, duas situações de indiferença e negligência, sendo uma em sentido global e outra em sentido local:

1) a guerra entre Israel e Palestina é um exemplo clássico de descuido e indiferença da comunidade internacional com os seres humanos, especialmente, os civis, envoltos no conflito armado, não sendo atendida, minimamente, uma das condições básicas de vida, a própria alimentação, tornando-se a entrega de alimentos, inclusive, ocasião e oportunidade para atingir mais mortes; 2) a proliferação da dengue em nosso país é uma realidade, em não raros ambientes e lugares, de descuido, desleixo e falta de responsabilidade comum com o meio ambiente e com a Casa Comum, ocasionando, por conseguinte, a proliferação e a multiplicação de pessoas infectadas pelo dengue, levando, inclusive, algumas pessoas a óbito, infelizmente.

Tem-se clareza de que o cuidado com a Casa Comum não é tarefa reservada para algumas pessoas, para algumas organizações não governamentais, para algum partido político, para algum governo, ou ainda, para algumas religiões. Trata-se, outrossim, de uma tarefa e um compromisso responsável e solidário para todas as pessoas, instituições, governos. Constitui- se, também, em uma missão inadiável e irrenunciável para todas as religiões que creem em um Deus que ama a humanidade, que ama toda a criação e chama a todos para o projeto de uma nova cultura na qual todos são irmãos e irmãs e buscam incessantemente a convivência pacífica na Casa Comum.

3. Diálogo Inter-religioso

Para o Papa Francisco, as religiões, ou melhor, todas as religiões precisam caminhar e trabalhar juntas para que todos os filhos e filhas de Deus sejam reconhecidos como tal no mundo. Todas precisam trabalhar pela fraternidade universal e pela amizade social em todas e quaisquer sociedades. De acordo com o Papa Francisco, a liberdade religiosa é uma direito fundamental para todas as pessoas onde quer que estejam e vivam. “Existe um direito humano fundamental que não deve ser esquecido no caminho da fraternidade e da paz: é a liberdade religiosa para as pessoas que creem em todas as religiões.” (FT, 279). E, nessa perspectiva da cultura de encontro e de paz, sem dúvida, as religiões têm uma missão importantíssima. Trata- se de uma verdadeira mudança da vivência religiosa a partir do pluralismo religioso (Barros, 2023, p. 131). Mas, para tanto, urge superar e vencer a violência fundamentalista1, a mentalidade ufanista2, o proselitismo3 numérico e estatístico, e a cultura maniqueísta4. Tal caminho não é fácil e simples. Porém, sabe-se ser missão urgentíssima e eminentíssima de cada religião e para cada religião, uma vez estar a humanidade enquanto tal vivendo um processo acelerado e intenso de mobilidade humana. “A compreensão da realidade religiosa plural do nosso tempo conduz à reflexão sobre como o fator pluralidade é elemento constitutivo de cada sistema religioso e da identidade religiosa da pessoa crente.” (Wolf; Oliveira, 2023, p. 239: grifos dos autores). As religiões precisam assumir o caminho da pluralidade, uma vez que o mesmo favorece a convivência e a paz. “Entre as religiões, é possível um caminho de paz. O ponto de partida deve ser o olhar de Deus.” (FT, 281).

Antes de prosseguir, ainda que breve, é imprescindível que se tenha em mente existir uma diferença entre ecumenismo e diálogo inter-religioso. Segundo Wolff, por ecumenismo, pode-se entender o esforço de diálogo entre algumas igrejas cristãs visando a busca da unidade de fé e a paz na convivência eclesial e social (Wolff, 2015, p. 234). Por sua vez, por diálogo inter-religioso pode-se entender a constante busca de uma aproximação entre as diferentes expressões de religiosidade, buscando conhecimento mútuo, aceitação e respeito. Trata-se de uma tentativa cujo pressuposto fundamental é o desejo de aproximação por meio do diálogo. Sem diluição de doutrinas, cada religião é consciente do que é, está atentamente situada na realidade, e, por isso, se põe em atitude de disposição para ouvir e aprender, bem como deixar- se humildemente confrontar sua crença (Queiruga, 2016, p. 23). O diálogo inter-religioso consiste e configura-se como uma das expressões de maturidade por parte das diferentes religiões, uma vez que se abrem e se disponibilizam para escutar e estar em atitude de acolhimento, escuta, compreensão daquela denominação religiosa que, porventura, pensa diferente (Do Vale; Dantas; Frezzato, 2021, p. 610). Não se trata, pois, de persuasão e proselitismo, antes pelo contrário, de um convivência religiosa com os diferentes e com os que pensam e vivem, possivelmente, de modo diferenciado. Importante é a convivência, o respeito, o diálogo franco e aberto, afinal de contas, as comunidades religiosas precisam estar sempre atentas para cuidar do vaso de argila que é a humanidade e zelar por ele. As religiões precisam cuidar do vaso de argila não violento da humanidade (Nodari, 2023, 623). “As religiões estão lá para recordar nossa ambiguidade e nossa ambivalência, mas também para nos dizer de nossas potencialidades e possibilidades! Elas podem nos mostrar o pior da humanidade, como também podem nos apresentar o melhor!” (Guimarães, 2019, p. 33).

O diálogo inter-religioso é uma emergência nos tempos atuais, uma vez estarem abertos muitos flancos e brechas de fundamentalismo religioso. Trata-se, pois, por meio do diálogo inter-religioso de buscar encontros e atitudes entre pessoas, entre denominações religiosas, entre instituições de diálogo e respeito mútuos e recíprocos. É preciso buscar solidificar as relações humanitárias, respeitosas e tolerantes, visto que a ideia intolerante de achar que uma religião é a única e verdadeira se afasta da busca pela verdade, tanto filosófica, quanto teológica, supondo uma presunção já por demais questionada, bíblica e cientificamente, e bastante trabalhada nos dias de hoje em uma sociedade plural. É imprescindível não esquecer o que o Papa Paulo VI na Exortação Apostólica Evangelli Nuntiandi (EN) afirma acerca da liberdade religiosa: “Desta justa libertação, ligada à evangelização e que visa alcançar o estabelecimento de estruturas que salvaguardem as liberdades humanas, não pode ser separada a necessidade de garantir todos os direitos fundamentais do homem, entre os quais a liberdade religiosa ocupa um lugar de primária importância.” (EN, 39). Logo, a respeito do diálogo interpessoal, inclusive, acerca de questões religiosas, sem sombras de dúvida, o diálogo fraterno, amigável e verdadeiro favorece a saída do individualismo, do egocentrismo e do fechamento assoberbado, tão presentes e arraigados nos tempos hodiernos, para que as pessoas possam se lançar nas relações plurais e comunitárias, estimando e valorizando a alteridade, a diversidade e o valor da cultura e da religião do outro como forma de conhecimento, respeito e compreensão de realidades vividas de modos distintos, mas não excludentes. Urge encontrar, reencontrar, auscultar o verdadeiro sentido das religiões, uma vez que estas devem ligar e encontrar e não desligar e desencontrar. Afirma-se com a FT:

O culto sincero e humilde a Deus “leva, não à discriminação, ao ódio e à violência, mas ao respeito pela sacralidade da vida, ao respeito pela dignidade e a liberdade dos outros e a um solícito compromisso em prol do bem-estar de todos”. Na realidade, “aquele que não ama não chegou a conhecer a Deus, pois Deus é amor” (1Jo 4, 8). Por isso, “o terrorismo execrável que ameaça a segurança das pessoas, tanto no Oriente como no Ocidente, tanto no Norte como no Sul, espalhando pânico, terror e pessimismo não se deve à religião – embora os terroristas a instrumentalizem –, mas tem origem no cúmulo de interpretações erradas dos textos religiosos, nas políticas de fome, de pobreza, de injustiça, de opressão, de arrogância; por isso, é necessário interromper o apoio aos movimentos terroristas através do fornecimento de dinheiro, de armas, de planos ou justificações e também a cobertura mediática, e considerar tudo isto como crimes internacionais que ameaçam a segurança e a paz mundial. É preciso condenar tal terrorismo em todas as suas formas e manifestações”. As convicções religiosas sobre o sentido sagrado da vida humana consentem-nos “reconhecer os valores fundamentais da nossa humanidade comum, valores em nome dos quais se pode e deve colaborar, construir e dialogar, perdoar e crescer, permitindo que o conjunto das diferentes vozes forme um canto nobre e harmonioso, e não gritos fanáticos de ódio” (FT, 283).

Nessa perspectiva, o movimento a ser empreendido pelas comunidades religiosas em direção ao diálogo redescobre o sentido do próprio encontro, como reacender a identidade presente em cada cultura e em cada povo. Daí que a prática da vida dinamiza-se à medida que ressurge o crescimento dos atos em prol do diálogo e do entendimento, como forma de iluminar a própria identidade de ser humano, jogando para longe os caminhos que reforçam os traços de uma identidade nunca plenamente vivida. “Tecendo-se na dinâmica da alteridade, criadora de justiça, a ética é capaz de tornar fecunda a ação do ser humano, numa redescoberta do que lhe é vital, especialmente em tempos de transição e de crise como o nosso.” (Agostini, 2001, p. 629). Faz-se necessário assumir uma atitude peregrina e itinerante de luta contra toda a falta de diálogo, de tolerância e de discriminação. Essa é a atitude e a posição da Igreja Católica firmada e declarada oficialmente na declaração do Concílio Vaticano II Nostra Aetate (NA) acerca da fraternidade universal e de toda e qualquer reprovação de discriminação racial ou religiosa:

Não podemos, porém, invocar Deus como Pai comum de todos, se nos recusamos a tratar como irmãos alguns homens, criados à Sua imagem. De tal maneira estão ligadas a relação do homem a Deus Pai e a sua relação aos outros homens seus irmãos, que a Escritura afirma: “quem não ama, não conhece a Deus” (1Jo 4,8). Carece, portanto, de fundamento toda a teoria ou modo de proceder que introduza entre homem e homem ou entre povo e povo qualquer discriminação quanto à dignidade humana e aos direitos que dela derivam. A Igreja reprova, por isso, como contrária ao espírito de Cristo, toda e qualquer discriminação ou violência praticada por motivos de raça ou cor, condição ou religião. Consequentemente, o sagrado Concílio, seguindo os exemplos dos santos Apóstolos Pedro e Paulo, pede ardentemente aos cristãos que, “observando uma boa conduta no meio dos homens. (1Ped 2,12), se ‚ possível, tenham paz com todos os homens, quanto deles depende, de modo que sejam na verdade filhos do Pai que está nos céus ”. (NA, 5).

Sobre o diálogo com outras religiões não cristãs e seus valores a EN, de 1975, tem encaminhamentos e declarações muito importantes acerca do diálogo inter-religioso. Este precisa ter como condição primeira o respeito e a abertura para o diferente, sem pretensões de proselitismo e de soberba. Nesse sentido, segundo o Papa Paulo VI, as religiões não cristãs estão muito presentes na compreensão do sentido da evangelização cristã, uma vez que, segundo o Papa Paulo VI:

Um tal anúncio destina-se também a porções imensas da humanidade que praticam religiões não cristãs, que a Igreja respeita e estima, porque elas são a expressão viva da alma de vastos grupos humanos. Elas comportam em si mesmas o eco de milênios de procura de Deus, procura incompleta, mas muitas vezes efetuada com sinceridade e retidão de coração. Elas possuem um patrimônio impressionante de textos profundamente religiosos; ensinaram gerações de pessoas a orar; e, ainda, acham-se permeadas de inumeráveis “sementes da Palavra” e podem constituir uma autêntica “preparação evangélica”, para usarmos a palavra feliz do Concílio Ecumênico Vaticano II, assumida, aliás, de Eusébio de Cesaréia. (EN, 53).

Quer-se relembrar um outro marco documental da Igreja para o diálogo inter-religioso, ainda que não seja o propósito deste artigo elencar todos os textos e documentos da Igreja Católica para tal finalidade. Por ocasião do Concílio Vaticano II, o Papa Paulo VI, em 1964, crio o Secretariado para os não-cristão, que atualmente é denominado de Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso. Por ocasião dos seus 20 anos, houve, após a Assembleia Plenária de 1984, a publicação do documento intitulado de Diálogo e Anúncio (DA), afirmando logo no início, que a missão evangelizadora da Igreja “[...] ‘é uma realidade unitária mas complexa e articulada’. Indica os seus elementos principais: presença e testemunho; empenho pela promoção social e pela libertação do ser humano; vida litúrgica, oração e contemplação; diálogo inter-religioso; e, por fim, anúncio e catequese.” (DA, 2). Sem entrar, especificamente, nos aspectos trabalhados pelo documento DA quer-se salientar a importância de unir esforços para a luta a favor dos direitos humanos, para a proclamação das exigências de justiça, e, por conseguinte, da denúncia das injustiças, independentemente, de quem seja e à qual crença religiosa pertença. Trata-se de unir os esforços a fim de “[...] procurar resolver os grandes problemas que a sociedade e o mundo devem enfrentar, e para promover a educação em favor da justiça e da paz.” (DA, 44). Eis, pois, segundo o Documento DA, as quatro principais formas diferentes de diálogo inter-religioso:

Existem formas diferentes de diálogo inter-religioso. Pode ser útil recordar aqui as mencionadas pelo documento de 1984 do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter- Religioso (cf. DM 28-35). As formas citadas são quatro, sem que se tenha procurado estabelecer uma ordem de prioridade: a) O diálogo da vida, onde as pessoas se esforçam por viver num espírito de abertura e de boa vizinhança, compartilhando as suas alegrias e tristezas, os seus problemas e as suas preocupações. b) O diálogo das obras, onde os cristãos e os outros colaboram em vista do desenvolvimento integral e da libertação da gente. c) O diálogo dos intercâmbios teológicos, onde os peritos procuram aprofundar a compreensão das suas respectivas heranças religiosas, e apreciar os valores espirituais uns dos outros. d) O diálogo da experiência religiosa, onde pessoas radicadas nas próprias tradições religiosas compartilham as suas riquezas espirituais, por exemplo, no que se refere à oração e à contemplação, à fé e aos caminhos da busca de Deus e do Absoluto. (DA n. 42).

Pode-se, por fim, sem adentrar no aprofundamento das questões envoltas no diálogo inter-religioso, tomar em consideração três condições elementares para o diálogo aberto e não violento, caso se queira que as religiões colaborem para o contexto de uma nova cultura de paz. A primeira é que cada religião precisa ser capaz de reconhecer as outras religiões como iguais, não obstante serem diferentes. É preciso ir superando e erradicando o fundamentalismo, a ignorância e os preconceitos religiosos. A segunda condição é ter ciência de que cada religião está sujeita às condições socioculturais e sociopolíticas de sua época e que pode ser utilizada como massa de manobra ideológica. A terceira é a busca da liberdade para a vivência e a ação na sociedade civil. As religiões não podem deixar-se manipular na perspectiva da concepção de que a religião é, exclusivamente, uma dimensão de vivência individual e intimista, ou mesmo, deixar-se utilizar como meio de controle do Estado. E com tal afirmação pode vir também a manipulação, a tirania e os possíveis e inevitáveis desvios fomentados pela ambição e proselitismo religioso. Logo, a arte do discernimento e apelo constante de conversão fazem parte do itinerário e da agenda das religiões. Elas precisam libertar-se das constantes forças que buscam usá-las para seus próprios propósitos que não a de uma boa convivência. As religiões precisam ter ciência de que elas têm uma missão profética importantíssima para a construção de uma nova cultura de paz e de boa convivência (Nodari, 2023, p. 631).

As religiões têm a missão, não obstante, as especificidades e as diferenças de cada religião, que precisam ser consideradas, respeitadas e reconhecidas, de ser, por assim dizer, elo, ambiente, espaço, casa e dimensão de (re)ligação, (re)conexão entre Deus e o ser humano, do ser humano entre si, do ser humano com os demais seres vivos na Casa Comum, e da própria humanidade com Deus (Nodari, 2023, p. 635). “Entre as religiões, é possível um caminho de paz. O ponto de partida deve ser o olhar de Deus.” (FT, 281). Assim sendo, as religiões precisam aprender, contínua e incansavelmente, por meio do diálogo respeitoso e não violento, a conviver pacificamente, a fim de que haja humanidade, por assim dizer, mais humanizada, mais respeitosa, mais livre, mais justa, mais aberta ao diálogo, e, nesse sentido, mais pacífica, auxiliando e tralhando, árdua e incansavelmente, por uma nova cultura, isto é, de fraternidade e amizade social.

As várias religiões, ao partir do reconhecimento do valor de cada pessoa humana como criatura chamada a ser filho ou filha de Deus, oferecem uma preciosa contribuição para a construção da fraternidade e para a defesa da justiça na sociedade. O diálogo entre pessoas de diferentes religiões não se faz apenas por diplomacia, amabilidade ou tolerância. Como ensinaram os bispos da Índia: ‘o objetivo do diálogo é estabelecer amizade, paz, harmonia e partilhar valores e experiências morais e espirituais em espírito de verdade e amor’. (FT, 271).

Considerações finais

Para finalizar, quer-se tecer algumas breves considerações gerais, a fim de sustentar a tese de que a FT busca dar sustentação e argumentação para a construção de uma cultura sustentada sobre a amizade social e o amor político, em cujo olhar se vislumbra uma cultura de paz e de convivência fraternal. Eis alguns pontos importantes a marcar e sinalizar com ênfase para uma nova cultura de diálogo inter-religioso, dentre outros, evidentemente.

Cultura da compaixão e da proximidade. Para que seja possível a saída do mundo de sombras, é urgente dar-se conta de ser necessário configurar e adentrar em um outro processo e em uma outra atitude. O Papa Francisco lembra que o diálogo e a proximidade acontecem entre pessoas, grupos, comunidades, denominações religiosas apenas se houver disposição e coragem de aproximação e o desenvolvimento de uma capacidade de superação do distanciamento deliberado, do determinismo e da indiferença. Nessa perspectiva, a parábola do Bom Samaritano, “[...] habilita-nos a criar uma cultura diferente, que nos conduza a superar as inimizades e a cuidar uns dos outros.” (FT, 57). No final do segundo capítulo da FT o Santo Padre convoca a Igreja, para que assuma, com muita convicção, o caminho e o itinerário processual de uma nova cultura (FT, 86).

Cultura de um coração aberto e fecundo. O ser humano é dado ao amor e à fecundidade. O amor coloca a cada um e a todos no processo de comunhão e de encontro. “Por sua própria dinâmica, o amor exige uma progressiva abertura, uma maior capacidade de acolher os outros, em uma aventura sem fim, que faz convergir todas as periferias rumo a um sentido pleno de mútua pertença.” (FT, 95). E, nessa perspectiva, a justiça, intimamente conectada ao amor de comunhão, exige, por sua vez, reconhecer e respeitar não só os direitos individuais, mas também os direitos sociais e os direitos dos povos (FT, 122). Acentua o Para Francisco: “Trata-se, sem dúvida, de outra lógica. Se não se fizer esforço para entrar nessa lógica, as minhas palavras parecerão um devaneio.” (FT, 127). Faz- se urgente, nessa perspectiva, assumir a nova lógica do conviver fraterno. “Mas caso se aceite o grande princípio dos direitos que brotam do simples fato de possuir a inalienável dignidade humana, é possível aceitar o desafio de sonhar e pensar em uma humanidade diferente.” (FT, 127).

Cultura de uma conversão gratuita e comprometida. Urge entender a realidade de exclusão atual e desenvolver uma outra sensibilidade, ancorada na aproximação, na edificação de pontes, e, enfim, agir buscando a mudança e a transformação do coração (sentir), da cabeça (pensar) e das mãos (agir). Não basta só imaginar que os outros precisam mudar, que as estruturas precisam mudar. Urge que a mudança aconteça em cada ser humano e também nas estruturas institucionais. “A afirmação de que, como seres humanos, somos todos irmãos e irmãs, se não é apenas abstração, mas se materializa e se concretiza, coloca-nos uma série de desafios que nos movem, nos obrigam a assumir novas perspectivas e a produzir novas reações.” (FT, 128). Logo, segundo o Sumo Pontífice, faz-se urgente desenvolver um outro modelo de intercâmbios, de conexões e de relações entre as pessoas, entre as culturas, e, também, entre os países. As novas relações precisam estar embasadas em relações fraternas, cujo princípio do seja propulsor da amizade social em face do bem comum de toda a humanidade. “Quem não vive a gratuidade fraterna transforma a sua existência em um comércio cheio de ansiedade: está sempre medindo aquilo que dá e o que recebe em troca.” (FT, 140). Nesse horizonte de uma cultura de fraternidade universal, embasada sobre os alicerces da amizade social e do amor político. “Só poderá ter futuro uma cultura sociopolítica que inclua o acolhimento gratuito.” (FT, 141).

Cultura de uma boa política. Faz-se necessário recuperar o sentido da política, ou melhor, entender a melhor política como a busca do bem comum como o horizonte urgente e necessário do agir político. A compreensão da política na perspectiva do bem comum é a capacidade de superar a dimensão dos interesses individuais e pensar nas questões coletivas, pois, hoje, a política, submetida aos interesses econômicos e financeiros, acaba distanciando-se do bem comum e associando-se aos interesses privados e corporativos. O Santo Padre lembra que a melhor política pensa e está à disposição do bem comum. É importante fazer o exercício da caridade, tanto no âmbito pessoal, como também no âmbito comunitário. É fundamental que a ação política seja entendida como uma atitude necessária em vista do bem comum. Assevera o Papa Francisco: “A tarefa educativa, o desenvolvimento de hábitos solidários, a capacidade de pensar a vida humana de forma mais integral, a profundidade espiritual são realidades necessárias para dar qualidade às relações humana (...).” (FT, 167).

Cultura do diálogo. O diálogo é um convite para construir uma nova cultura, capaz e apta para dialogar e de assumir as diferenças como possibilidade de encontro, de entendimento e de convivência pacífica. Portanto, a necessidade de acolher com gratuidade o diferente leva- nos a uma atitude de não aceitação do distanciamento e da indiferença, conduzindo-nos, por conseguinte, a uma nova cultura, reconhecendo que a vida é a arte do encontro. Trata-se, pois, de compreender as diferenças como possibilidade de convivência e não em processo de exclusão. Acentua o Papa Francisco: “Aproximar-se, expressar-se, ouvir-se, olhar-se, conhecer-se, esforçar-se por entender- se, procurar pontos de contato: tudo isto se resume no verbo “dialogar”. Para nos encontrarmos e ajudarmos mutuamente precisamos de dialogar.” (FT, 198).

Cultura do encontro. Para realizar um percurso de uma nova cultura, é preciso não se descuidar e não se afastar da verdade. “Só da verdade histórica dos fatos poderá nascer o esforço perseverante e duradouro para se compreenderem mutuamente e tentar uma nova síntese para o bem de todos.” (FT, 226). A verdade é condição para a construção de uma cultura de fraternidade universal, salientado que a verdade precisa estar conectada, intimamente, com a justiça e com a misericórdia. “Com efeito, ‘a verdade é uma companheira inseparável da justiça e da misericórdia. Se, por um lado, são essenciais – as três juntas – para construir a paz, por outro, cada uma delas impede que as restantes sejam adulteradas [...].” (FT, 227). O caminho para a construção da paz exige de todos o esforço e o empenho e a convicção de que todos podem ser considerados artífices e colaboradores dessa nova cultura de encontro e de paz. Sublinha a respeito o Papa Francisco: “O caminho para a paz não implica homegeneizar, mas permite-nos trabalhar juntos. Pode unir muitos nas pesquisas comuns, em que todos ganham.” (FT, 228).

Cultura do diálogo inter-religioso. Tendo presente o projeto de uma nova cultura, o Santo Padre convida as religiões, para que elas assumam o projeto de fraternidade universal, uma vez que a missão das religiões é ligar e conectar os seres humanos a Deus e os seres humanos entre si. “O culto sincero e humilde a Deus ‘não leva à discriminação, ao ódio e à violência, mas ao respeito pela sacralidade da vida, ao respeito pela dignidade e pela liberdade dos outros e a um solícito compromisso em prol do bem-estar de todos’.” (FT, 283). Essa dimensão de diálogo inter-religioso religa os seres humanos a Deus, cientes, no entanto, de que quem deseja religar-se a Deus precisa religar-se aos irmãos e irmãs. “Entre as religiões, é possível um caminho de paz. O ponto de partida deve ser o olhar de Deus.” (FT, 281). Com efeito, partindo, pois, do olhar de Deus, então, faz-se imprescindível trabalhar, contínua e incansavelmente, pela convivência pacífica e digna, e, para tanto, urge uma educação integral do ser humano. Eis uma tarefa e missão urgentes que cabe não só, mas também a todas as religiões indistintamente (FT, 282).

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1 Pode-se definir fundamentalismo como qualquer corrente, movimento ou atitude de cunho conservador que enfatiza a obediência rigorosa e literal a um conjuntos de princípios básicos (Nodari; Síveres, 2021).

2 Ufanismo é um conceito que significa sentir-se orgulhoso, vaidoso em enaltecer excessivamente algo ou acontecimento (Nodar; Síveres, 2021).

3 Atividade ou esforço para fazer prosélitos, isto é, seguidores, especialmente, por meio da catequese e do apostolado (Nodari; Síveres, 2021).

4 Qualquer visão de mundo que o divide em poderes opostos e incompatíveis, sobremaneira, entre o bem e o mal (Nodari; Síveres, 2021).