Carta Encíclica Fratelli Tutti e o migrante

Encyclical Letter Fratelli Tutti and the migrant

DOI: https://doi.org/10.52451/2pv81m11

Recebido em 15/01/2024

Aprovado em 23/05/2024

Alfredo J. Gonçalves

Nasceu na Ilha da Madeira, Portugal, no dia 7 de março de 1953, migrando para São Paulo, Brasil, em fevereiro de 1969. Após os estudos de filosofia e teologia, ordenou-se sacerdote religioso em dezembro de 1984. Assumiu logo a Direção do Centro de Estudos Migratórios de São Paulo (CEM), enquanto trabalhava nas periferias e favelas da zona leste de São Paulo. Depois, passou a atuar nos cortiços junto à Pastoral da Moradia da Arquidiocese de São Paulo. Diretor do CEM, ajudou a fundar a Revista Travessia, em 1985, exercendo também a função de secretário executivo do SPM- Serviço Pastoral dos Migrantes. De 1994 a 1997, exerceu o ministério na arquidiocese da Paraíba, especialmente junto aos cortadores de cana. Acompanhava-os nas regiões de origem, no agreste da Paraíba, e nas regiões de destino, zona da mata de Pernambuco e Paraíba. Retornando da Paraíba, entre os anos de 1998 e 2003, assumiu o cargo de assessor do Setor Pastorais Sociais da CNBB. Depois em São Paulo, foi eleito duas vezes como Superior Provincial da então Província São Paulo dos padres scalabrinianos. Antes de terminar o segundo mandato, foi eleito vigário geral da Congregação, passando a morar em Roma, Itália, durante o sessênio de 2013 a 2018. Atualmente atua como vigário na Igreja N. Sra. da Paz e na “Missão Paz”, na baixada do Glicério, bairro Liberdade, na Arquidiocese de São Paulo. Ao mesmo tempo, exerce o cargo de vice-presidente do SPM, além de assessorar encontros ligados às Pastorais Sociais, movimentos populares e comunidades eclesiais de base (CEBs). Contato: pe.alfredinho@scalabrini.org

Resumo: Como sugere o título, partindo da Doutrina Social da Igreja, e em especial da Carta Encíclica Fratelli Tutti (2020), o presente artigo procura colocar em evidência a solicitude pastoral do Papa Francisco para com os migrantes e refugiados. Seus gestos em favor dos migrantes, como se verá, “valem uma encíclica”. Em vista disso, o texto traça um breve retrato das migrações históricas, o qual serve de pano de fundo para entender as migrações contemporâneas. Estes movimentos atuais, embora em continuidade com as migrações do século XIX, são marcadas por características próprias do final do século XX e início do XXI. Feito isso, a reflexão coloca em cena os pontos nodais da Fratelli Tutti em um duplo objetivo: por uma parte, assegurando que essa encíclica constitui uma espécie de segundo capítulo da Laudato Si’ (2015). Com efeito, enquanto esta última se preocupa com o cuidado de “nossa casa comum”, aquela faz um apelo para que todos nós possamos ser irmãos nessa casa que é o planeta Terra. Por outra parte, a encíclica de 2020 procura apresentar de forma mais concreta os desafios socioeconômicos e político-culturais, bem como as atividades sociopastorias para a eficácia dessa fraternidade universal. Desde o ponto de vista da mobilidade humana, trata-se de buscar uma cidadania universal e sem fronteiras.

Palavras-chaves: Fratelli Tutti; Migrantes; Doutrina Social; Papa Francisco.

ABSTRACT: As the title suggests, based on the Social Doctrine of the Church, and in particular the Encyclical Letter Fratelli Tutti (2020), this article intends to highlight Pope Francis’ pastoral concern for migrants and refugees. His gestures in favor of migrants, as will be seen, “are worth an encyclical”. In view of this, the text provides a brief portrait of historical migrations, which serves as a background for understanding contemporary migrations. These current movements, although in continuity with the migrations of the 19th Century, are marked by characteristics typical of the end of the 20th and beginning of the 21st Centuries. Having done this, the reflection brings into play the nodal points of Fratelli Tutti with a double objective: on one side, ensuring that this encyclical constitutes a kind of second chapter of Laudato Si’ (2015). In effect, while the latter is concerned with the care of “our common home”, that one makes an appeal so that we can all be brothers in this home that is planet Earth. On the other hand, the 2020 encyclical seeks to present in a more concrete way the socioeconomic and political-cultural challenges, as well as the socio-pastoral activities for the effectiveness of this universal fraternity. From the point of view of human mobility, it is about seeking universal and borderless citizenship.

Keywords: Fratelli Tutti. Migrant.Doctrine.Pope Francis.

Introdução

Desde que foi eleito e tomou posse da cátedra de Pedro, no mês de março de 2013, o cardeal argentino Jorge Mário Bergoglio, agora Papa Francisco, vem mostrando um compromisso simultaneamente sólido e inusitado para com o fenômeno das migrações e o sofrimento dos migrantes. Suas visitas à ilha de Lampedusa, extremo sul da Itália, em julho de 2013; à ilha de Lesbos, na Grécia, em abril de 2016, dando abrigo a algumas famílias de refugiados sírios; e a Ciudad Juárez, fronteira de México com Estados Unidos, em fevereiro de 2016 – constituem gestos “que valem uma verdadeira encíclica”, como afirmou na época um jornalista periódico jornal italiano. Sua primeira aparição como novo pontífice, aliás, não deixou dúvidas quanto a uma trajetória de opção preferencial pelos pobres por parte de alguém que vinha do “fim do mundo”.

Lampedusa representa a rota mediterrânea dos migrantes africanos, asiáticos e da região do Oriente Médio, os quais buscavam melhores oportunidades na Europa. Lesbos simboliza a rota balcânica dos mesmos migrantes, neste caso passando pelos países dos Balcãs. Ciudad Juárez, por sua vez, é uma das encruzilhadas mexicanas para onde convergem as inúmeras caravanas que se deslocavam, e ainda se deslocam, dos países centro-americanos, sul-americanos e caribenhos em direção ao Norte, tido como o Eldorado dos sonhos e conquistas da migração atual. Sonhos e conquistas que, não raro, se quebram contra o famigerado muro que separa USA e México, ou na árdua travessia do deserto. Os sonhos então se convertem em pesadelos.

Tudo isso faz lembrar a obra-prima do escritor estadunidense John Steinbeck, publicada em 1939, o clássico The Grapes of Wrath (“As Vinhas da Ira”), livro que conferiria ao autor o prêmio Nobel da literatura em 1962. Trata-se da saga de uma família que, juntamente com milhares de outras, é forçada a deslocar-se da região de Oklahoma no rumo da Califórnia, isto é, do coração para o oeste dos Estados Unidos. Na terra de origem, a agricultura familiar dos pequenos produtores vem sendo substituída pelo cultivo intensivo e extensivo do algodão a ser usado pela indústria. Trata-se, no fundo, das implicações da Revolução Industrial, a qual requeria uma progressiva transformação tecnológica A consequência é o abandono em massa do campo, um êxodo rural sem precedentes, não somente no “middle east USA”, mas em todo país. Um marco no binômio literatura e migração. Como veremos mais adiante, a narrativa assemelha-se àquilo que havia ocorrido no velho continente da Europa durante o século XIX, devido à mesma expansão exponencial da indústria.

De resto, tanto a Carta Encíclica Laudato Si’ (2015) quanto a também Carta Encíclica Fratelli Tutti (2020) constituem dois documentos centradas na sensibilidade e na solidariedade do pastor para com os pobres, excluídos ou descartáveis – “os condenados da terra”, para usar a expressão de Frantz Fanon, filósofo e estudioso das Antilhas francesas. Ambas as encíclicas se complementam: na primeira, trata-se do louvor, mas também da denúncia e do cuidado que devemos manter para com o planeta Terra, “nossa casa comum”; na segunda, está subentendida a pergunta de como viver fraternalmente juntos e nessa mesma casa/terra. Veremos no decorrer deste artigo que quando falta um solo ao qual chamar de pátria, milhões de seres humanos passam a perambular pelas estradas do mundo como “errantes” sem raiz e sem rumo. Antes de voltar a Fratelli tutti, entretanto, convém debruçar-se sobre alguns itens da Doutrina Social da Igreja (DSI), e outros ainda sobre o contexto histórico do fenômeno migratório.

1. Migração e Doutrina Social da Igreja

Iniciemos citando dois parágrafos que nos introduzem nos fundamentos da DSI, em especial no que se refere ao contexto das transformações e do fenômeno migratório. O primeiro chega até nós pela Constituição Pastoral Gaudium et Spes, “sobre a Igreja no mundo de hoje”, último documento a ser aprovado pelo Concílio Ecumênico Vaticano II:

A humanidade vive hoje uma fase nova da sua história, na qual profundas e rápidas transformações se estendem progressivamente a toda a terra. Provocadas pela inteligência e atividade criadora do homem, elas reincidem sobre o mesmo homem, sobre os seus juízos e desejos individuais e coletivos, sobre os seus modos de pensar e agir, tanto em relação às coisas como às pessoas. De tal modo que podemos já falar duma verdadeira transformação social e cultural, que se reflete também na vida religiosa (GS 4)

O segundo parágrafo representa a abertura, logo na Apresentação, da Instrução Erga Migrantes Caritas Christi, elaborada e publicada pelo então Pontifício Conselho da Pastoral para os Migrantes e os Itinerantes, da Santa Sé, no pontificado de João Paulo II.

As migrações hodiernas constituem o maior movimento de pessoas de todos os tempos. Nestas últimas décadas este fenômeno, que envolve atualmente cerca de duzentos milhões de seres humanos, se transformou em uma realidade estrutural da sociedade contemporânea, e constitui um problema cada vez mais complexo do ponto de vista social, cultural, político, religioso, econômico e pastoral (n. 1).

A verdade é que os grandes deslocamentos humanos de massa, fenômenos visíveis na superfície da terra, contemporaneamente velam e revelam transformações mais profundas e invisíveis na política econômica global. Seguindo a metáfora, poderíamos afirmar que as migrações são como que ondas aparentes de correntes subterrâneas ocultas. Quando as placas tectônicas dos interesses econômicos e políticos se movem nas profundezas dos corredores escusos e tortuosos da sociedade, podemos esperar que milhares e milhões de pessoas também haverão de se mover pelos mares, desertos e florestas que cobrem a face do globo. A exemplo das formigas, se e quando a casa/pátria mostra carências ou destruída, os seres humanos se põem em marcha. Desafortunadamente, nem sempre essa fuga se converte em uma nova busca.

As expressões “a humanidade vive hoje uma fase nova de sua história”, por um lado, e, por outro, “as migrações hodiernas constituem o maior movimento de pessoas de todos os tempos”, extraídas das citações acima, respectivamente datadas de 1965 e 2004, revelam como a contemporaneidade da mobilidade humana vem se perpetuando pelos últimos sete decênios, chegando até o pontificado do atual Papa Francisco. Tanto que, de acordo com o Inventário de Migração Internacional de 2019, um conjunto de dados divulgados pela Divisão de População do Departamento de Economia e Assuntos Sociais (DESA) da ONU, “o número de migrantes internacionais alcançou 272 milhões de pessoas em 2019. O aumento em relação a 2010 foi de 51 milhões, o que representa 3,5% da população global, comparado com 2,8% naquele ano”. Desse número de estrangeiros, certamente superado nos dias atuais, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), nada menos do que 105 milhões estão na condição de refugiados.

Se a esses dados acrescentarmos os chamados “refugiados climáticos”, ainda não reconhecidos como tais pela ONU/ACNUR, as cifras se elevam ainda mais. As tensões, conflitos e guerras abertas, bem como a pobreza, miséria e fome ou as estiagens ou inundações, frio e calor extremos em lugares tão distintos como Síria, Ucrânia, Afeganistão, Sudão do Sul, Venezuela, Palestina, Etiópia, Nigéria, Iêmen, Bangladesh, Haiti, ademais das diversas caravanas que surgem nos países da América Central rumo ao México, Estados Unidos e Canadá – apenas para citar os principais estados e regiões de onde se originam o maior número de migrantes e refugiados – seguem atirando multidões de pessoas às estradas e às fronteiras de seus vizinhos e do mundo inteiro. Contam-se a dezenas de milhões o contingente de trabalhadores e trabalhadoras, não raro acompanhados de suas famílias, que neste exato instante se encontram em conturbado processo de fuga.

Semelhante fuga, além dos vários tipos de violência e agressividade, vela e revela simultaneamente e de modo particular, gigantescas assimetrias socioeconômicas por todo o planeta. A progressiva e escandalosa desigualdade social vem sendo tema de não poucos estudiosos em diversos países de todo o mundo. De entre tantos, convém destacar dois deles. Em nível internacional, o economista francês Thomas Piketty tem trabalhado o tema através de comparações entre distintas fases da história e distintos países. Sua obra Economia da desigualdade consegue mostrar como a curva perversa das discrepâncias sociais tem aumentado na chamada economia globalizada. Os dados demonstram que os 10% mais ricos, e por vezes o 1% desses privilegiados, detêm enormes fatias do Produto Interno Bruto (PIB), enquanto a maioria da população deve contentar-se com as migalhas que caem da mesa dos poderosos

Já em nível nacional, o sociólogo Jessé Freire de Souza, em Elite do atraso e outros estudos traça o retrato vivo, em território brasileiro, dessa diferença abissal entre o pico da pirâmide social e seus andares inferiores. O esquema da Casa Grande & Senzala, com nuances diferenciadas e atualizadas, permanece de pé. O recente relatório Desigualdade S. A. da Oxfam, por seu turno, acaba de afirmar que “os cinco homens mais ricos do mundo viram suas fortunas mais do que dobraram desde o ano de 2020. O patrimônio líquido dos mesmos aumentou de US$ 405 bilhões para US$ 869 bilhões no período. Isso equivale a uma taxa de cerca de US$ 14 milhões por hora”. No Brasil – aponta ainda o mesmo relatório – 1% mais rico da população detém 63% dos ativos financeiros.

2. Breve retomada histórica

Mas as grandes migrações para o trabalho e em particular o trabalho assalariado, diferentemente da mobilidade humana em geral, ganham forte impulso a partir do contexto da Revolução Industrial. Antes disso, evidentemente, temos deslocamentos de povos nômades, de prisioneiros de guerra, de mulheres aprisionadas de uma tribo por outra, as mais diversas formas de escravidão, e assim por diante. Entretanto, deslocamentos humanos filhos dos tempos modernos e do modo de produção capitalista começam praticamente com o trágico flagelo da escravidão africana para a Europa e para as Américas, o qual até os dias atuais estigmatizam tantos seres humanos. Embora não seja tema desta reflexão, não podemos esquecer o sofrimento de milhões de africanos, separados de suas terras e seus familiares, para o trabalho escravo nas fazendas de cana-de-açúcar, algodão e café, como também nas minas e em tantos outros serviços pesados, sujos e perigosos. Seguiram-se, depois, os fluxos e refluxos internacionais e transcontinentais de trabalhadores e trabalhadoras assalariados nas mais variadas direções.

Segundo Peter Gay e Eric Hobsbawm, ambos historiadores, as migrações constituíram uma das consequências das transformações europeias do século XIX. Peter Gay afirma que, entre a primeira década de 1800 e a primeira década de 1900, enquanto a população de Manchester, Inglaterra, berço da Revolução Industrial, sobe de 70 para 700 mil habitantes por causa do êxodo rural, cerca de 62 milhões de pessoas deixam o velho continente europeu, cruzam os oceanos rumo às Américas e mais parte à Austrália e Nova Zelândia. O mesmo autor concorda com Hobsbawn em referir-se ao “século do movimento” (XIX), como também de grande aceleração histórica. Utiliza a metáfora do trem: deslocamento geográfico com a descoberta da máquina a vapor (navios, trens, automóveis) e movimento de pessoas, seja do campo para a cidade, seja de vários países em direção às terras longínquas do ultramar.

Limitando-nos à Península Italiana, em que os dados estão mais à mão, entre 1815 e 1915, nada menos do que 25 milhões de pessoas emigraram de seu território. Na década de 1901 a 1910, a média anual de emigrados chegou a 600 mil. O ano de 1913, por sua vez, representa o recorde de saídas: mais de 850 mil pessoas. Para se ter uma ideia mais exata do volume de semelhantes deslocamentos humanos, especialmente entre Itália e Brasil, vale citar os estudos do Pe. Antonio Perotti, no período em que exerceu a função de diretor do CIEMI (Centre d’Information et d’Études sur les Migrations), em Paris, França. Escreveu ele: “É nesse decênio de transição do Império para a República, em que entrou no Estado de São Paulo uma verdadeira avalancha de italianos (...).  A comunidade italiana no Brasil, acrescida com 554.000 unidades, chegava em 1901, a 1.110.000 indivíduos, concentrados sobretudo em São Paulo. Em 1897, os italianos constituíam quase a metade da população da cidade: 112.000 sobre 260.000. A cidade de São Paulo viu quadruplicar sua população entre 1890 e 1900: de 64.934 em 1890 para 239.820 em 1900”.

A essa altura, convém citar também um historiador brasileiro, na época país de chegada. “A situação europeia deslocou o fluxo emigratório para o sul da Itália. As entradas [no Brasil] ascenderam rapidamente: dos 13 mil, nos anos 1870, passa a 30 mil, só em 1886; em 1887, será de 55 mil; em 1888, da ordem de 133 mil. O total para o último quartel do século ficou acima de 800 mil, sendo quase 600 mil italianos”. E um pouco mais adiante: “No último decênio do século XIX, a população estrangeira em São Paulo, cresceria de 605%; os nacionais eram 770 mil, os estrangeiros 230 mil. Entre 1887 e 1897 entraram no Brasil 1.300.000 pessoas”.

O século XIX move-se nesse universo de “rápidas e profundas transformações”, marcado de forma intensa pelo fenômeno migratório. À medida que a emigração europeia em geral, e italiana em particular, ganha números vultosos e rostos bem conhecidos, o bispo de Piacenza J. B. Scalabrini mostra toda sua solicitude pastoral. Desde um ponto de vista socioeconômico, podemos afirmar que a “questão social” e a “questão migratória” embalaram a atividade apostólica de Scalabrini. Juntamente com outras “santos sociais” da época esse olhar solícito confere à Igreja uma nova sensibilidade social que desembocará na Carta Encíclica Rerum Novarum, publicada em 1891, pelo então papa Leão XIII, sobre “a condição dos operários”. Daí que aquilo que veio a ser a Pastoral Social nasce como irmã gêmea da Pastoral dos Migrantes.

Faz-se necessário notar de passagem que esse subtítulo da encíclica, em sua intenção, está bem próximo do estudo de Friedrich Engels, na Inglaterra de 1844, sobre a situação dos operários. E ainda de passagem, não custa lembrar que o mesmo Engels, juntamente com Karl Marx, elaborou e publicou o Manifesto Comunista, quase meio século antes de Rerum Novarum. Aliás, esta às vezes vem apelidada de “manifesto comunista da Igreja”. Por sua vez, a frase de abertura da encíclica – “a sede de inovações, que há muito tempo se apoderou das sociedades e as tem numa agitação febril” – insere-se à perfeição no contexto do século em questão. Por sua abertura aos desafios do mundo moderno, ao lado dos demais santos sociais, não será exagero afirmar que estão aí os precursores remotos do Concílio Vaticano II.

3. Um olhar às migrações contemporâneas

Divido aqui, grosso modo, o fenômeno migratório dos tempos modernos, digamos assim, em duas etapas: a primeira se refere às migrações históricas; a segunda, às migrações contemporâneas. No primeiro caso, como assinalo no item anterior, refiro-me aos deslocamentos massivos decorrentes das turbulências da Revolução Industrial; no segundo, aos deslocamentos posteriores à Segunda Guerra Mundial, particularmente a partir da crise do início dos anos 1970. Evidentemente que o corte é arbitrário, levando em conta os esforços da economia mundial globalizada para compensar as perdas derivadas da repetição subsequente daquela crise prolongada, que nos remete, sempre grosso modo, às últimas cinco ou seis décadas

a. Vaivém sem tréguas

Quatro aspectos marcam as migrações contemporâneas, quando comparadas ao que ocorria há mais de um século atrás. No fenômeno migratório do século XIX, entrando pelas primeiras décadas do XX, no contexto da Revolução Industrial, como ilustramos no parágrafo anterior, os migrantes tinham origem e destino mais ou menos certo, quase que pré-determinados. Deixaram a terra onde haviam enterrado seus antepassados, mas sabiam relativamente em que porto desembarcariam. Ao desenraizamento nos países do velho continente europeu, seguia-se um novo enraizamento do outro lado do oceano Atlântico. Partida e chegada, digamos assim, tinham hora marcada. 

Tanto no embarque quanto no desembarque havia por vezes agentes migratórios, até mesmo representantes dos governos de um lado e outro. O ato de deixar a pátria e atravessar as águas do mar adquiria, em não poucos casos, o caráter de uma espécie de “transplante”. Povos, pessoas e grupos eram como que re-transplantados. O que não quer dizer, evidentemente, que todos os imigrantes tinham a mesma sorte e estavam predestinados a um sucesso. O objetivo aqui é de chamar a atenção para a tendência de uma migração acentuadamente dirigida, no sentido de encontrar lugar para a população “sobrante” das mudanças que ocorriam na Europa.

Nas últimas décadas do século XX e primeiras do XXI, cem anos depois daquelas “migrações históricas”, mas diferentemente delas, os deslocamentos humanos de massa não servem mais para ligar, digamos, dois polos de uma travessia. Pelo contrário, os migrantes atuais sabem evidentemente de onde saem, mas ignoram quase por completo onde irão fixar a nova morada. O horizonte se lhes tornou nebuloso, sem contornos definidos. Em lugar de um “transplante” de um lugar a outro, amargam um vaivém sem fim, cruzando fronteira sobre fronteira, batendo de porta em porta. Nessas idas e vindas, a incerteza predomina onde quer que cheguem. Erram pelas estradas dos países com as raízes expostas ao sol, com o sério risco de definhar, secar e perecer. O desenraizamento não vislumbra facilmente onde replantar os sonhos e esperanças interrompidos.

Bastaria constatar, como exemplos dos movimentos mais recentes, as rotas tortuosas e às vezes repetidas à exaustão dos haitianos, dos afegãos, dos venezuelanos, e agora dos ucranianos, sem esquecer as “aventuras” dos migrantes que procedem dos países da África subsaariana. Esse vaivém sem tréguas, incerto e inseguro quanto ao desembarque definitivo, constitui o primeiro aspecto das migrações contemporâneas. Também neste caso, em meio à massa errante dos sem raiz e sem rumo, existem indivíduos e famílias que deixam a região ou a pátria com uma trajetória bem desenhada. Conhecem as condições de saída e sabem exatamente onde desembarcar e fixar residência. Estes últimos, porém, constituem cada vez mais a minoria. Tendencialmente, o maior número dos que se aventuram pela estrada caminham às cegas.

b. Migração e trabalho

O segundo aspecto tem a ver com a questão do trabalho ou emprego. Sempre tendo em vista os deslocamentos do passado, o binômio migração-trabalho caminhava de maneira praticamente inseparável, como vemos no povoamento dos países novos das Américas, bem como em outros movimentos migratórios por toda parte. Tomando como exemplo a história do Brasil, para além dos imigrantes italianos, alemães, espanhóis, poloneses, portugueses, japoneses, etc. que aqui se instalaram vinham determinados a determinado setor do mercado de trabalho. Normalmente, familiares, parentes e amigos lhes haviam precedido e preparado “a cama para se deitarem”.

Vale o mesmo para o imenso número de migrantes internos que nas décadas de 1940-70 trocaram o Nordeste do país pelo Sudeste ou pelo Centro-oeste. Em São Paulo, Rio e Janeiro ou na construção de Brasília, a nova capital, com frequência, havia alguém de referência e um posto de trabalho à espera. Emprego razoavelmente estável e com carteira assinada. A mão-de-obra costumava ser absorvida pelo modelo político e econômico do desenvolvimentismo. Novamente aqui, o “conhecimento” de algum familiar, parente ou amigo que migrara anteriormente abria o caminho e as portas para novas aventuras, em boa medida bem-sucedidas.

Nos movimentos migratórios de hoje, internos ou internacionais, esse casamento entre migração e trabalho sofre um profundo divórcio. Em vez de um trabalho mais ou menos garantido, o migrante vai se deparar com as migalhas que caem da mesa do capital. Acaba em geral tropeçando com os serviços mais sujos e pesados, mais perigosos e mal remunerados. O ato de migrar e encontrar emprego regular, relativamente legalizado, se dissociam. Salvo em raras e cada vez mais exigentes exceções, os migrantes terminam no mercado informal, quando não recrutados impiedosamente para o crime organizado, para a prostituição precoce, para o tráfico de drogas ou para o trabalho escravo. Cem ou cinquenta anos atrás, a mobilidade humana podia ser considerada como um meio para a mobilidade social ascendente.

Migrava-se na tentativa de encontrar um lugar ao sol, coisa que efetivamente ocorria com razoável frequência. Atualmente, é muito comum o deslocamento levar aos becos sem saída da “clandestinidade”, ou do trabalho autônomo e ambulante – que não é senão uma forma de auto exploração – numa mobilidade social descendente. Mas não podemos esquecer que bom número de migrantes de 50 ou 100 anos atrás ficaram pelo caminho, caindo nas periferias e favelas das grandes metrópoles. Por outro lado, hoje como ontem, alguns conseguem fazer da mobilidade geográfica um caminho para o emprego e a mobilidade social. O número destes bem-sucedidos, contudo, diminui a olhos vistos. A tendência maior conduz ao horizonte sombrio do mercado informal ou do desemprego prolongado.

c. Migração temporária e/ou sazonal

O terceiro aspecto refere-se à migração temporária e/ou sazonal, normalmente utilizada para as colheitas agrícolas, grandes obras públicas, trabalho doméstico, etc. Décadas atrás, bastava uma temporada no corte da cana-de-açúcar, por exemplo, para que o trabalhador conseguisse ganhar o suficiente para sustentar a família no restante do ano. Alguns meses fora de casa e longe dos parentes, e o “dinheirinho”, ainda que parco e pingado, ia garantindo a permanência no lugar de origem. Migração de resistência, de acordo com determinados estudiosos. Migrar temporariamente era uma forma de evitar fazê-lo de forma definitiva. O dinheiro da safra cobria o que o roçado não fornecia. As famílias se equilibravam no fio tênue da ausência temporária do pai ou dos filhos mais velhos, tirando da terra algo para matar a fome. O ganho que vinham do trabalho fora constituía uma espécie de poupança para necessidades especiais.

Atualmente isso se tornou praticamente impossível. Não basta mais uma única safra. Desde algumas décadas, muitos migrantes, depois do corte da cana, passaram à colheita da laranja; outros juntam a colheita do café, com a do morango; e outros ainda, como no caso dos peruanos e bolivianos no Chile, casam a safra do tomate com a da oliva, depois da uva, e assim por diante. Voltando ao Brasil, não poucos trabalhadores e trabalhadoras sazonais, após qualquer tipo de safra agrícola, deslocam-se para o litoral ou para as ruas de grandes cidades, onde trabalham como vendedores ambulantes ou camelôs. Isso significa permanecer longe da família não somente por 5, 6 ou 7 meses, mas quase todo o ano, se quiser dar conta dos gastos para se manter ligado a terra.

Outra alternativa para compensar os ganhos, cada vez mais reduzidos, consiste na ausência temporária de mais de um membro da mesma família. Em semelhantes circunstâncias adversas, a tendência é que, de temporada em temporada, a migração sazonal se converta em migração definitiva para as capitais ou cidades médias, na tentativa se sobreviver nos porões ou periferias mais distantes. O certo é que o trabalho temporário/sazonal, próprio da produção agrícola, hoje em dia dispensa boa parte da mão-de-obra. Sobram trabalhadores, faltam postos de trabalho; equação que, como bem sabemos, leva inevitavelmente à redução dos salários. Salvo determinados serviços especializados, a tendência é o abandono da terra e a migração definitiva para a zona urbana, onde “sem haver mais chance de arrumar alguma coisa”.

d. Protagonismo da mulher

Por fim, mas não em último lugar, o quarto aspecto destaca o protagonismo atual da mulher no processo migratório. Nas antigas migrações, a mulher vinha acompanhada do marido, do pai ou dos irmãos. O homem decidia e tomava a frente, a mulher o seguia juntamente com os filhos. As fotografias em preto-e-branco nos embarques do passado mostram bem isso. À mulher compete normalmente olhar pelas crianças, transportar algumas sacolas e pertences menores, enquanto o homem aparece com as malas pesadas e à cabeça do “cortejo”. Seu protagonismo, se e quando havia, vinha encoberto pela predominância do pai, marido ou irmão.

Mulheres e crianças figuram como uma espécie de sombra dos homens. Estes últimos é que se responsabilizam pelo empreendimento da mudança e da travessia. Por vezes partia primeiro o homem – marido ou filho mais velho – como para sondar o terreno estranho e desconhecido. Somente então mandava chamar o restante da família, na tentativa de reagrupamento parental. Mas não podemos esquecer, ainda desta vez, que ao longo da história sempre houve mulheres que tomaram a si a iniciativa de tentar a vida em outra região ou país, arcando com todo peso da mudança. Ademais, não poucos pioneiros migram acompanhados de verdadeiras pioneiras.

Nos tempos que correm, torna-se cada vez mais comum ver a mulher tomar a iniciativa de sair, seja na busca de uma carreira profissional mais promissora para si mesma em outra região ou país, seja, como mãe, na tentativa de garantir o futuro menos ingrato para os filhos. Estudiosos constatam o crescimento das mulheres não apenas nas estatísticas referentes às migrações, mas também e sobretudo no seu protagonismo enquanto toma sobre si o processo de mudança. Não são poucas as mães solteiras, por vezes abandonadas pelos maridos nas crises mais agudas, que acabam se arriscando à migração. A Venezuela e o Haiti, entre outros países, podem ser bons exemplos desse fenômeno, em que se torna cada vez mais numerosa a presença da mulher (e dos menores desacompanhados) no processo migratório. Presença não como “apêndice” do marido, e sim como iniciativa por sua conta e risco próprios. “Troquei de pátria por amor aos meus filhos” – dizia uma venezuelana num testemunho comovente. O esforço para conseguir a ração diária do alimento familiar tornara-se cada vez mais penoso e humilhante. Ao mesmo tempo que os produtos diminuíam, o preço aumentava. Até que, diante das crianças famintas, a decisão se impôs: trocar a Venezuela pelo Brasil.

Diversos fatores contribuem para reforçar esses quatro aspectos. O primeiro deles, sem dúvida, é o crescimento do número e da intensidade dos conflitos armados em várias partes do planeta, o que gera, como vimos mais acima, proporcional crescimento de refugiados ou fugitivos da fome. Guerras e destruição, pobreza e miséria em uma série de países, como também já ficou claro, geram multidões de desenraizados. A isso, junta-se a ascensão ao poder de governos da extrema-direita populista, os quais, tendem a fechar as fronteiras de seus países, aumentando a pressão dos migrantes sobre os limites geográfico-territoriais das nações.

Com tais autoridades, difunde-se também, de forma exponencial, a discriminação e o preconceito, o racismo e a intolerância, a xenofobia e a perseguição aos estrangeiros. Por fim, retrospectivamente, hoje sabemos como a pandemia da Covid-19 escancarou, agravou e deu maior visibilidade ao drama das pessoas em movimento pelas estradas de todo mundo. Números, rostos, nomes, rostos, imagens, histórias, sonhos interrompidos, agressividade e mortes – tudo isso ao vivo e a cores – correu pelas telas e telinhas da televisão, das redes sociais e até do cinema.

4. Fratelli Tutti e o migrante

Após os parágrafos anteriores, retornemos à Carta Encíclica Fratelli Tutti, com o olhar voltado para os migrantes e refugiados. Se o documento do pontífice faz um apelo insistente à “fraternidade e à amizade social” nas comunidades políticas em geral, conforme o subtítulo da mesma, com maior razão o apelo vale sobretudo para a troca de valores entre todos os povos e nações sobre a face da terra. Logo na introdução, seguindo o espírito da Laudato Si’ e a inspiração do santo homônimo, o Papa Francisco aponta o exemplo do pobre de Assis, como o homem cuja abertura a todos e todas reflete o amor sem fronteiras de Deus, Pai e Criador. Daí a necessidade de substituir a “globalização da indiferença” ou “a economia que exclui, descarta e mata” pela “cultura do encontro, do diálogo, do intercâmbio e do enriquecimento recíproco”, como dirá o Santo Padre em outro lugar. Derrubar os muros e construir pontes, estender os braços ao que bate à porta, tem sido seu refrão no que diz respeito ao fenômeno das migrações.

a. Irmãos e irmãs na casa comum

O conteúdo da encíclica Fratelli Tutti denuncia “as sombras de um mundo fechado” (capítulo I), ao mesmo tempo que aponta para a necessidade de “pensar e gerar um mundo aberto” (capítulo III), não sem antes, porém, superar a triste figura de “um estranho no caminho” (capítulo II). É aqui que reside o pano de fundo da realidade migratória e o olhar de compaixão sobre “as multidões cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor” (Mt 9,35-38). O Papa se vale da parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37) para abordar a situação concreta dos “caídos” à beira da estrada, à beira da história e à beira da vida. Aliás essas “feições sofredoras de Cristo” nos remetem não apenas a III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe, mas também e sobretudo às diversas listas de pobres, doentes e indefesos, preferidos do coração do Pai e primeiros a entrar no Reino de Deus, que aparecem nos relatos evangélicos, tais como no Sermão da Montanha (Lc 6,20-23), no Juízo Final (Mt 25,31-46) e na resposta a João Batista (Mt 11,4-6). Convém ter presente, de resto, que na Conferência de Aparecida, em 2007, os bispos introduzem a figura dos migrantes na lista dessas “feições sofredoras de Cristo”.

Por falar nisso, entre esses rostos sofridos e desfigurados pela violência e pela guerra, pela pobreza e pela fome, pelas implicações das mudanças climáticas estão os mais pobres, indefesos e necessitados. Diz ainda o Documento de Aparecida, no qual o então cardeal Bergoglio trabalhou como secretário, que “os excluídos não são somente ‘explorados’, mas ‘supérfluos’ e ‘descartáveis’”. Voltando à encíclica Fratelli Tutti, e tendo como referência a parábola do Bom Samaritano, pequenos subtítulos do capítulo II revelam a sensibilidade e a solicitude que a Igreja deve ter diante do “abandonado”, numa perspectiva de ver e acolher o outro/diferente/estranho como “o próximo sem fronteiras”, ao defrontar-se com “a provocação do forasteiro”.

Impossível ignorar, a esta altura, os quatro verbos citados pelo pontífice nas atividades da Pastoral junto aos migrantes e refugiados: acolher, proteger, promover e integrar. Trata-se de um verdadeiro programa para a Pastoral da Mobilidade Humana. O capítulo III da encíclica, insistindo em ir “mais além”, falando em construir “sociedades abertas que integrem a todos ”, no respeito mútuo dos “direitos dos povos”, que devem ser “direitos sem fronteiras”. Isso requer, evidentemente, o cuidado em superar o preconceito, a discriminação, a intolerância cultural e religiosa, o racismo e a xenofobia. Como já ficou dito anteriormente, a ascensão dos governos de extrema direita em vários países do mundo, acrescida das consequências da pandemia Covid-19, paradoxalmente fizeram aumentar a agressividade para com o estrangeiro.

É o que o capítulo IV irá desnudar, ao escancarar o escândalo e “limites das fronteiras fechadas”, e ao propor o “intercâmbio fecundo” e a “gratuidade que acolhe”. O Santo Padre tem consciência da necessidade de trabalhar conjuntamente os problemas particulares e os valores globais. Por isso é que faz questão de temperar o “sabor local” com o “horizonte universal”. Em outras palavras, o empenho de todos os cidadãos e cidadãs no cuidado com “nossa casa comum”, necessariamente, passa pela resolução dos problemas nacionais e regionais. Utilizando uma linguagem que vem da DSI, em particular da Populorum Progressio, publicada pelo Papa Paulo VI em 1967, “o desenvolvimento integral” nas áreas de origem dos migrantes e refugiados conduz ao “novo nome da paz”. De fato, como ter paz sem trabalho estável e recompensado com dignidade, se é justamente ele que abre as portas da moradia, saúde, educação, transporte, vestuário, alimento, lazer, etc.? Como ter paz, mesmo com energia, coragem e braços fortes, se os pais não conseguem colocar o pão na mesa dos filhos? Como ter paz se o solo em que nascemos nega proteção e abrigo a seus próprios cidadãos? Como dizia Scalabrini, hoje canonizado e denominado “pai dos migrantes”, aos filhos desamparados da terra e da pátria, “só lhes resta a migração”.

A partir do capítulo V, de forma mais específica, o documento ganha um caráter marcadamente sócio-político, passando a desenhar os horizontes da “melhor política ou política necessária” para o desenvolvimento de uma verdadeira “amizade social”. Faz uma crítica não só aos “populismos e liberalismos”, mas também aos “limites das visões liberais”. Dessa reflexão resulta uma “caridade social e política” fundamentada no amor “político e eficaz”, o que significa governar não segundo os interesses pessoais, familiares, partidários ou corporativos, mas de acordo com as necessidades básicas da população de baixa renda. Voltando à parábola do Bom Samaritano e à temática dos migrantes e refugiados, caídos à beira do caminho, aplica-se aqui, na perspectiva social e política, conclusão de Jesus: “Vai e faz o mesmo”!

Ao final, a encíclica afunila para um tema caro ao Papa Francisco: a sinodalidade. O apelo, enfim, estende-se a todos os povos e nações, a todas as raças e culturas, no sentido de “construir juntos” a fraternidade universal, sobre os alicerces da amizade social. De acordo com os fundamentos da DSI, no coração de cada pessoa humana e no coração de cada cultura encontram-se sementes do Verbo encarnado. Toda e qualquer civilização desenvolve valores e contravalores. No vaivém contínuo dos migrantes e refugiados, em todas as direções, é precisamente o encontro dos rostos e de suas culturas que ajuda a depurar e purificar os valores essenciais, rejeitando os secundários. Por isso é que, no dizer dos bispos reunidos em Aparecida, “os migrantes que partem de nossas comunidades podem oferecer valiosa contribuição missionária às comunidades que os acolhem”.

Ou seja, tornam-se evangelizadores em potencial. Com efeito, conforme vimos anteriormente, o migrante que se move, põe em movimento a própria história. Ao colocar os pés na estrada e os olhos no horizonte, o forasteiro faz moverem-se tanto as autoridades governamentais quanto os organismos internacionais, as igrejas e entidades, os políticos e estudiosos, as leis e o destino. A marcha dos migrantes desencadeia a marcha das distintas instituições e respectivas instâncias. “O cotidiano se desbanaliza ao mudar o quadro da vida, adquirindo extraordinária importância: cada ato de rotina se torna aventura, cada verificação um achado, e o viajante se descobre a cada passo” – diz o crítico brasileiro Antonio Candido. E ao fazê-lo, estimula a humanidade recriar-se continuamente. A longo da trajetória humana, não poucas culturas e civilizações nasceram e se consolidaram a partir dos migrantes recém-chegados. Se é verdade que muitos veem seus sonhos e esperanças se quebrarem de encontro às fronteiras cerradas e hostis, também é verdade que outros são capazes de fazer da fuga o recomeço de uma nova busca.

E não é só isso! Nessa perspectiva, o simples fato de migrar, de encontrar-se a caminho, consciente ou inconscientemente, faz do migrante um profeta, protagonista e artífice de novos tempos. Profeta, na medida em que questiona o país de origem, solo pátrio que não foi capaz de lhe proporcionar os meios necessários para uma cidadania digna e justa na terra onde deixou sepultados os próprios antepassados. Protagonista, enquanto interpela os países de destino, no sentido de desenvolver uma economia local e global que inclua não apenas um punhado de ricos e poderosos, mas a todos os cidadãos do mundo. Artífice, pela coragem de romper fronteiras e grilhões nos países de trânsito, revelando com isso a urgência de “alargar o espaço da tenda” (Is 54,2-3), na construção conjunta e orgânica de uma cidadania universal.

b) A centralidade de Jesus de Nazaré

Uma das inovações do Papa Francisco, todavia, foi trazer Jesus de Nazaré para o centro da vida e da mensagem cristã. Com sua vida, palavras e gestos, o pontífice como que encarna o profeta itinerante da Galileia. Jamais nos permite esquecer que o filho de Maria e de José nasceu e morreu do lado de fora dos muros da cidade, num espaço de fronteira. “Maria deu à luz o seu filho primogênito, envolveu-o com faixas e reclinou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para ele na casa” (Lc 2,7). A condenação ao madeiro da cruz, reservada aos piores malfeitores, devia ser executada no lugar à parte, fora da cidade. “Maldito todo aquele que é suspenso no madeiro”, diz o apóstolo Paulo citando o Antigo Testamento (Dt 21,23; Gl 3,13).

Outra inovação do atual Santo Padre foi a criação, na Cúria romana, de um novo Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, onde se localiza a Secção destinada à solicitude com os migrantes e refugiados. Ambas as iniciativas, de resto, lembram a slogan da “Igreja em saída”, convidando-nos a deixar a sacristia e avançar para a fronteira. Esta última representa uma espécie de terra de ninguém, o que abre a possibilidade para ser igualmente terra de todos. Cabe aqui o conceito de “não-lugar”, na concepção do antropólogo francês Marc Augé, em sua obra Não lugares. São os lugares onde não há qualquer familiaridade, onde nos sentimos fora de casa, como por exemplo o aeroporto, a rodoviária, a rodovia e, claro, a fronteira. Disso decorre que o Reino dos céus, centralidade da mensagem e da Boa Nova de Jesus Cristo, tem suas raízes na fronteira, nos porões ou periferias de uma sociedade cada vez mais urbanizada.

Daí se levanta o pobre, o outro, o migrante que clama e interpela. “O estrangeiro” – deixou escrito o filósofo alemão H. G. Gadamer na obra Verdade e Método – “tem mais a dizer sobre mim do que sobre ele mesmo”. O conceito de fronteira como “não lugar” leva-nos a afirmar, num aparente paradoxo, que esse “não lugar” torna-se o “melhor lugar” para erguer os alicerces do “novo lugar”. Numa palavra: o “não lugar” constitui o “lugar privilegiado” para lançar a semente do “Reino dos céus”. De fato, somente quem passou pela experiência incerta, insegura e inquietante da fronteira anseia por um horizonte novo e mais amplo. Ao contrário, quem nasce em berço de ouro, tende a rejeitar todo e qualquer processo de mudança.

Quem sabe nos podem iluminar, ainda, as palavras iniciais da Divina Comédia, obra inspiradora do grande poeta italiano Dante Alighieri “A meio caminhar de nossa vida / fui me encontrar em uma selva escura / estava a reta minha via perdida”. Elas expressam um momento de profunda crise humana e existencial, um estranhamento quanto ao lugar e ao tempo em que vivemos. Revelam a estranheza de quem perdeu as raízes, as referências, o chão seguro debaixo dos pés, e as estrelas do horizonte. Ou seja, de quem perdeu o rumo da própria trajetória, e sente vertigem do vazio e do escuro. Sensação de falta de sentido, de fragmentação, de significado para com a existência. Por isso podem ajudar a entender o que significa o ansioso desejo de abandonar a “selva escura” e retomar a “reta via”. Numa palavra, de chegar a uma casa ou lar, de encontrar uma terra amiga e acolhedora, que possa representar o saudoso solo pátrio. O calor humano e o ambiente familiar de uma terra acolhedora figuram como um dos anseios mais profundos de quem perambula pelas estradas. Bem dizia Scalabrini que “para o migrante a pátria é a terra que lhe dá o pão”, ou ainda que “a migração alarga o conceito de pátria”.

Conclusão

Vale repetir uma vez mais, e como ponto final, que enquanto a Laudato Si’ prepara o terreno para levantar e cuidar de “nossa casa comum”, a Fratelli Tutti nos convida a uma convivialidade fraterna e universal não só entre nós, seres humanos, mas também com as coisas, a natureza e as demais formas de vida, a biodiversidade. Impõe-se aqui recordar que a aliança bíblica estabelecida entre Deus, Noé e seus filhos, simbolizada pelo arco-íris, tem em vista não somente o Povo de Israel e nem tampouco a própria humanidade, e sim “todos os seres vivos que estão convosco e todas as gerações futuras” (Gn 9,8-17). O Criador preocupa-se com todas as manifestações da vida e com a continuidade desta sobre a face da terra. Reproduz-se a promessa feita a Abraão, o pai da fé: a terra prometida e uma descendência numerosa.

Referências bibliográficas

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