A TEOLOGIA DO DIREITO CANÔNICO E O VATICANO II: A NATUREZA EPISTEMOLÓGICA DO DIREITO ECLESIAL

Theology of canon law and vatican II: the epistemological nature of ecclesial law

DOI: https://doi.org/10.52451/5h7ms962

Recebido em 23/07/2024

Aprovado em 30/09/2024

Mari Teresinha Maule

Possui Graduação(B) em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (1993) e mestrado em Desenvolvimento Regional Político Institucional pela Universidade de Santa Cruz do Sul (1999). Especialista pela Universidade de Passo Fundo em Direito Civil e Direito Processual Civil, no ano de 2015. Desde 1999 até o ano de 2018, foi professora contratada pela Universidade de Caxias do Sul, atuando na docência e na coordenação do NPJ e do SAJur. Coordenou o curso de direito do Campus de Guaporé do ano de 2013 a fevereiro de 2016. Prestou assessoria jurídica a órgãos públicos. Atua em Escritório de Advocacia. Estuda no Curso de Teologia e da Pós-Graduação da Itepa Faculdade de Passo Fundo-RS e como Juíza Auditora do Tribunal Eclesiástico da Arquidiocese de Passo Fundo- RS. Atualmente cursa Mestrado Eclesiástico do curso de Direito Canônico pelo Instituto Superior de Direito Canônico Santa Catarina, afiliada à Pontifícia Universitas Lateranensis de Roma. Email: mari_maule@hotmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4151-6383

Resumo: O presente artigo possui como objetivo versar sobre aspectos da teologia do direito canônico, que possui sua maior vertente o Vaticano II e consequentemente a natureza epistemológica do direito eclesial. Cumpre salientar que a metodologia utilizada foi a da revisão bibliográfica, para este mister, foram objeto de pesquisa e leitura de alguns textos na área. Conforme afirmado no texto o Vaticano II não nasceu por geração espontânea, e sim em decorrência de uma série de fatores sociais, teológicos e eclesiais que foram fermentando o terreno até permitir a chamada “primavera eclesial”. Adotou sobretudo um caráter pastoral e sua eclesiologia foi formulada tendo por sustentação a constituição dogmática sobre a Igreja Lumen gentium e na constituição pastoral sobre a Igreja no mundo atual, Gaudium et spes. Frente à concepção meramente juridicista, o Vaticano II destaca a dimensão de mistério (LG 1), Igreja Trindade, que nasce do Pai, está animada pelo espírito (LG 4) e reflete a luz de Cristo (LG 1). Manifesta-se como multidão reunida pela unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo (LG 4). Em uma tentativa de voltar às origens da igreja bíblica e primitiva, chama o Povo de Deus a fazer-se presente e fala de comunidade, em especial para com os mais pobres e marginalizados. Sendo, essa a fonte que emana o arcabouço jurídico do direito canônico, bem como do direito eclesial.

Palavras-Chave: Direito Canônico; Vaticano II; Epistemologia; Direito Eclesial; Lumen Gentium.

Abstract: This article aims to discuss about the aspects of the canonic law, which has its main focus in Vatican II and consequently the epistemological nature of ecclesiastical law. It should be noted that the methodology used was of bibliographic review, for this purpose, research and reading of texts were carried out. As stated in the text, Vatican II did not come about spontaneously, but rather as a result of a series of social, theological and ecclesiastical factors that were preparing the ground until the so-called “ecclesiastical spring”. It adopted a pastoral character and its ecclesiology was formulated based on the dogmatic constitution on the church Lumen gentium and the pastoral constitution on the church in the modern world, Gaudium et spes. In contrast to the merely juridical conception, Vatican II highlights the dimension of mystery (LG I), the Trinity Church, which is born of the Father, is animated by the spirit (LG 4) and reflects the light of Christ (LG 1). It manifests itself as a multitude gathered by the unity of the Father and the Son and the Holy Spirit (LG 4). In an attempt to return to the origins of the biblical and primitive church, it calls the People of God to be present and speaks of community, especially towards the poorest and most marginalized. Being this is the source from which the legal framework of canon law, as well as ecclesiastical law, emanates.

Keywords: Canonic law; Vatican II; Epistemology; Ecclesiastical Law; Lumen Gentium.

INTRODUÇÃO

O ano de 2025, terá um significado marcante para a história da Igreja, pois será celebrado mais um jubileu ordinário, neste caso, tendo por tema o Vaticano II. Este evento de importância ímpar, vem ao encontro e em direção das recentes manifestações e documentos da Santa Sé, em especial da Secretaria Geral do Sínodo, no qual encontra-se expresso que, em vez de dizer que a Igreja tem uma missão, afirma que a Igreja é missão. “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio” (Jo 20,21) e, portanto, a Igreja recebe de Cristo, o Enviado do Pai, a própria missão. Apoiada e guiada pelo Espírito Santo, ela anuncia e dá testemunho do Evangelho a quem não o conhece ou não o aceita, com a opção preferencial pelos pobres, enraizada na missão de Jesus. Desta forma, contribui para a chegada do Reino de Deus, o qual “por sua própria força a semente germina e cresce até o tempo da messe” (cf. Mc 4,26-29) (LG 5).

Assumindo esta perspectiva de Igreja em missão, é que o Papa Francisco elegeu como tema “Peregrinos da Esperança” e recomendou que a preparação para esse momento se levasse em conta a oração e o aprofundamento do estudo dos documentos do Concílio Vaticano II (1965). Tendo presente, esta recomendação o presente texto objetiva em um primeiro momento situar este evento tão marcante para a Igreja em sua missão e para seu ordenamento jurídico que foi o Vaticano II; para em um segundo momento versar sobre a(s) teologia(s) do direito canônico que tiveram origem a partir deste Concílio, e em seguida abordar a natureza epistemológica do direito eclesial, tendo presente conforme o Papa Francisco nos pede que a nossa prática teológica tenha sentido na caminhada da evangelização; provoque reflexão e assim desencadeie e aprofunde uma eclesiologia da comunhão, da participação e da missão tão necessárias no ambiente eclesial.

Saliente-se ainda, que o Concílio Vaticano II, significou um marco decisivo na história da Igreja, sua convocação esteve imbuída da convicção eclesial de que era chegada a hora de atualização global, em resposta aos sinais do tempo e às grandes transformações da sociedade. Tendo por alicerce duas palavras-chave que sintetizam o objetivo do Concílio: aggiornamento e diálogo. Qual seja, em decorrência da conjuntura histórica então vivenciada, a Igreja queria/precisava escutar, renovar-se em suas dimensões ad intra e ad extra, ir ao encontro das necessidades e das justas exigências da humanidade e do mundo e assim agiornar a apresentação do Evangelho de Jesus Cristo de forma acessível, como Boa Notícia de salvação. Como prolongamento do movimento do próprio Deus ao se revelar - vir até nós a Igreja assume a postura, o princípio e o movimento da Encarnação. E, pelas vias do diálogo, o Concílio buscou neste sentido pôr fim a um aparente divórcio da Igreja com a sociedade moderna, o que aparece explicitamente na Constituição Pastoral Gaudium et Spes.

Segundo Floristán, o Concílio procurou renovar a Igreja com três exigências. “Retorno às fontes da palavra de Deus e da liturgia, proximidade à realidade social do mundo e revisão profunda da Igreja como povo de Deus” (Floristán; Tamayo-Acosta, 1999, p. 876). Neste sentido, retomando João Paulo II, este nos lembra que “toda a renovação na Igreja há de ter como alvo a missão, para não cair vítima duma espécie de introversão eclesial” (EG 27). Conforme o Evangelho, a razão de ser da Igreja é dar continuidade na proposta revolucionária de Jesus de Nazaré de libertação e salvação a começar pelos últimos, a fim de chegar a todos na universalidade do Reino de Deus (Lc 4; Mt 25).

Feitas estas considerações preliminares, passaremos a expor primeiramente uma breve contextualização e a singularidade do Concílio Vaticano II, na qual evidenciamos alguns aspectos; e prosseguindo neste caminho, discorrer sobre a teologia subjacente e as epistemologias decorrentes deste evento, especialmente aquelas que dão origem e sustentação ao arcabouço jurídico canônico atual e ao direito eclesial.

1. CONCÍLIO VATICANO II: BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO

O Concílio Vaticano II é o acontecimento cristão mais importante do século XX (Floristán; Tamayo-Acosta, 1999, p. 874). Contudo as raízes deste acontecimento são anteriores e historicamente conhecidas, especialmente na chamada era da Modernidade. Dentre as muitas, importa aqui referir a da reforma protestante, iniciada por Martinho Lutero (1483-1546): na qual a mentalidade moderna aparece atuando no pensamento do mundo religioso com a tríade sola fide, sola gratia e sola Scriptura. O fiel da Modernidade nascente proclamava sua autonomia e o valor de sua subjetividade, fazendo da experiência pessoal o sinal mais credível da Revelação, de modo a não mais precisar da mediação interpretativa do Magistério eclesiástico na sua relação com Deus – sola fide. A Graça que santifica não poderia mais ser ditada ou veiculada objetiva e exclusivamente pelos sacramentos, obras e ritos da Igreja católica. O fiel colocava-se diante das verdades de fé enquanto sujeito pensante, livre para dar ou não o seu assentimento, e preferia partir de suas reflexões “agraciadas” – sola gratia. O sujeito moderno, na leitura da Escritura, reclamava a primazia de sua leitura e o acesso direto à Palavra, mediante sua experiência individual de escuta, e rejeita o controle da Tradição e da instituição eclesiástica – sola Scriptura (Libânio, 2022, p. 14-15).

Cumpre afirmar que, mesmo com todas as resistências dentro de grande parte dos setores da Igreja, a sociedade moderna avançava. A técnica, o progresso industrial, o pluralismo, o subjetivismo e a liberdade eram algumas das pontas de lança de uma espécie de efervescência cultural que gerou, no seio da Igreja, uma postura de defesa e autoproteção terminando por divorciar radicalmente Igreja e mundo (Turbanti, 1992, p. 105-116).

O modo de pensar e de ver o mundo, na época moderna, foi marcado pela virada que pôs o ser humano no centro de toda atividade especulativa e prática. Essa centralidade antropológica foi acontecendo lentamente e tem como artífice e testemunha fiel a filosofia. Já autônoma e independente da teologia, ela abandonou o endereço cosmocêntrico dos gregos e o teocêntrico dos autores cristãos e foi se encaminhando para uma visão antropocêntrica da realidade. René Descartes (1596-1650), a partir das Regulae ad directionem ingenii (escritas em 1629 e publicadas só mais tarde) e do Discurso do método (1637), imortalizado na fórmula “penso, logo, existo”, provocou a revolução que situou o sujeito no centro do universo inteligível. A evidência do cogito manifesta a estrutura dualista da antropologia moderna: o ser humano é corpo, enquanto integrado no conjunto da máquina do mundo, e espírito, naquilo que o diferencia deste conjunto. O transcendente, como fundamento de toda a realidade, cedeu lugar ao imanente; e o interesse da razão voltou-se para a história e a própria pessoa humana, enquanto sujeito pensante. O reto filosofar passou a ter como objeto o ser humano (Vaz, 1991, p. 155).

De fato, o contexto histórico-teológico no qual o Concílio acontece é de acolhida da virada antropocêntrica e de suas repercussões no seio do catolicismo. Esta atitude rompe com a postura que havia marcado a Igreja até então em sua relação com a Modernidade; postura que, como se viu, impedia um real diálogo com as grandes intuições da ciência e da filosofia modernas.

Neste contexto importante mencionar a relevância dos movimentos eclesiais no processo, tais como: a defesa do diálogo da Igreja com o mundo moderno como via de reconciliação; o movimento bíblico, no sentido de confirmar o compromisso e a missão da Igreja de difundir a Escritura e colaborar para que ela seja mais bem entendida, com a ajuda das ciências bíblicas; o movimento litúrgico, buscava uma experiência mais comunitária, por meio da simplificação dos ritos e, sobretudo, pela conscientização litúrgica dos fiéis, dando-lhes maior acesso ao significado eclesial e cristológico daquilo que celebravam, especialmente na língua vernácula; o movimento ecumênico, este no sentido de que a igreja se aproximasse do sujeito moderno, que é mais tolerante, aberto ao diálogo com o diferente e capaz de apoiar-se em pontos comuns, sem necessidade de eliminar a diversidade para que haja um enriquecimento mútuo; além destes, importante destacar o movimento leigo, especialmente através da ação católica, que sintetizou a dúplice função laical da seguinte forma: frente à sociedade, evangelizando-a; e, frente à Igreja, ajudando-a a entrar em sintonia com o mundo e com a cultura moderna, abriu-se assim para o leigo a consciência madura de sua autonomia, de seus deveres e direitos enquanto fiel católico (Itepa, 1990, p. 27-34).

E, dentro do contexto das teorias das teologias existentes podemos destacar: a teologia da palavra, de Karl Barth; teologia do querigma, de Bultmann; teologia do profundo, de Paul Tillich; teologia da história, de Cullmann; e em especial a teologia transcendental, elaborada sobretudo por Karl Rahner, que repensou a Revelação em termos antropocêntricos.

Dos acima mencionados, destaque-se a contribuição de Rahner. Para este teólogo alemão, o ser humano, é essencialmente um ouvinte da Palavra e possuidor dos pressupostos para o conhecimento da Revelação. Por sua abertura natural para a autocomunicação de Deus, ele pode interrogar-se, a partir da experiência que tem de si, sobre a maneira como a verdade cristã toca a sua existência e o ajuda a compreender a vida, indo além de um simples saber sobre a fé. Rahner é considerado, por Giuseppe Alberigo, “o teólogo mais decisivo do Concílio” (Alberigo, 1996, p. 447).

Outro aspecto essencial para compreender a conjuntura do Concílio Vaticano II, foi a Doutrina social da Igreja, elaborada a partir do século XIX, também esta foi decisiva. Tendo como ponto de partida os pronunciamentos do Magistério, desde as Encíclicas Rerum novarum (1890-1891) e Quadragesimo anno (1931), à famosa mensagem radiofônica de Pio XII, na Solenidade de Pentecostes, por ocasião do 50º aniversário da Rerum novarum, em 1941, sem esquecer Mater et magistra (1961), de João XXIII. A Rerum novarum é considerada o pilar fundamental da Doutrina Social da Igreja e abordava as relações entre o governo, os negócios, o trabalho e a Igreja, apoiando as classes trabalhadoras, incentivando a formação de sindicatos, rejeitando o socialismo e defendendo o direito à propriedade privada. Quadragesimo anno insistia na reconstrução da Ordem Social, na necessidade da distribuição da riqueza em função do bem comum e da justiça social; denuncia os efeitos causados pela cobiça e pela concentração do poder econômico sobre os trabalhadores e a sociedade e declara a finalidade social da propriedade e seu papel na promoção da harmonia entre as classes sociais. Mater et magistra defendia a participação dos trabalhadores na posse, gestão e lucro das empresas; lamenta a crescente distância entre as nações pobres e as nações ricas, a corrida aos armamentos, a condição de trabalho dos agricultores e convoca os cristãos a trabalharem por um mundo mais justo, declarando a Doutrina Social da Igreja parte integrante da vida cristã (Itepa, 1990, p. 27-34).

Considerando os elementos acima traçados, pode-se afirmar que para a Igreja o Concílio Vaticano II, muito mais que um evento histórico ligado à cronologia e a procedimentos juridicamente orientados, foi o emergir de uma mentalidade formada ao longo do período histórico que o precedeu. Ele foi o resultado de todo um movimento teológico-eclesial que foi fermentando um espírito conciliar, para além do Concílio em si. Ou nas palavras do discurso de João XXIII, ao traçar o objetivo do concílio: retomar a doutrina da Igreja, recebida de Cristo, e expô-la numa linguagem nova, mais Inteligível aos homens de hoje, mais de acordo com as exigências atuais (Itepa, 1990, p. 24).

2. PERSPECTIVA TEOLÓGICA DO DIREITO CANÔNICO A PARTIR DO VATICANO II

Tendo por fundamento a Constituição Dogmática Lumen Gentium, pode-se afirmar que nela perpassa a compreensão de uma eclesiologia conciliar que propicia uma visão unitária do mistério da Igreja: o visível e o invisível, ou o exterior e o interior, formando uma única realidade complexa (LG 8), e ainda que tal eclesiologia conciliar é trinitária e cristocêntrica.

Importante destacar que a eficácia da Constituição dogmática Lumen Gentium para a vida e a missão da Igreja está contida na sua vontade de permitir autênticas diferenciações dentro da unidade do povo de Deus. Tal abertura, como citado acima, foi favorecida pelo desenvolvimento do mundo moderno, exigindo a supressão do feudalismo eclesiástico, a educação para a liberdade e para responsabilidade e o respeito aos fiéis cristãos leigos, como principais características.

Hernández, afirma que a Constituição dogmática sobre a Igreja é a expressão magistral da nova consciência eclesiológica. Tal novidade consiste em haver tornado a Igreja reflexamente consciente de sua dimensão cristocêntrica, pneumatológica, sacramental e escatológica (Gonzalez Hernandez, 1965, p. 280).

Tendo presente estes elementos, cumpre salientar que entre os princípios mais importantes do Concílio Vaticano II, no âmbito do direito canônico, para Pedro Lombardía, podem ser enumerados seis. Primeiro: a consideração da igualdade e da liberdade do cristão como condição constitucional da Igreja (LG 9). Segundo: a igualdade na dignidade e a corresponsabilidade na missão da Igreja. Terceiro: o desenvolvimento da doutrina dos carismas pessoais (LG 12). Quarto: o ensinamento sobre o caráter sacramental e a colegialidade do episcopado (LG 21-22). Quinto: as diretrizes doutrinais sobre a prática do ecumenismo, com os princípios para a compreensão da autonomia das comunidades cristãs separadas de Roma e da posição jurídica dos cristãos que fazem parte dessas comunidades. Sexto: os princípios sobre as relações entre Igreja e comunidade política e sobre a avaliação cristã da ordem temporal (LG 36; GS 73). Evidentemente, esses temas não esgotam os conteúdos jurídicos que se encontram nos documentos do Concílio Vaticano II, mas possuem especial relevo para captar as linhas mestras do ordenamento jurídico da Igreja (Lombardia, 2008, p. 48).

Outro aspecto relevante a ser destacado é que a concepção do direito canônico como conjunto de normas emanadas pelo poder de regime não impede de captar o caráter jurídico dos atos dos fiéis cristãos. Pelo contrário, na visão do realismo jurídico, ou seja, na ótica do direito como objeto da justiça, se compreende que a criação, determinação, modificação e extinção de relações jurídicas estão relacionadas com o exercício da liberdade dos fiéis cristãos.

Assim a participação dos fiéis cristãos na configuração do direto humano eclesial corresponde ao âmbito de autonomia jurídica do batizado na Igreja. Os atos de autonomia dos fiéis cristãos podem se referir a situações concretas ou também possuir um caráter normativo geral. No primeiro caso, trata-se de atos jurídicos, ou seja, atos realizados com a intenção de modificar as relações jurídicas (por exemplo, o contrato, típico ato jurídico bilateral). No segundo caso, trata-se de normas jurídicas, que regulam as relações jurídicas entre os fiéis cristãos, no âmbito de sua autonomia intraeclesial (por exemplo, os estatutos e os regulamentos) (Errazuriz, 2009, p. 109).

Dito isso, pode-se destacar como vertentes a partir dos documentos conciliares, e no período pós-conciliar, o surgimento de três correntes que se distinguem na ciência do direito canônico: a “teológica”, “a pastoral” e a “jurídica”.

Essas três correntes dizem respeito ao modo de entender o direito canônico em si mesmo, bem como à autocompreensão da própria ciência do direito canônico. Na exposição a seguir, a questão que se refere à realidade do direito na Igreja será privilegiada, porque é prioritária e mais adequada para esclarecer o tema do conhecimento do direito canônico, segundo a ótica do realismo jurídico.

2.1 A CORRENTE TEOLÓGICA

A ênfase peculiar desta corrente é a de conceber o direito eclesial essencialmente como realidade teológica e a ciência canônica como disciplina preferentemente teológica. Não são poucos os autores que têm evidenciado de várias formas certa sensibilidade teológica no período pós-conciliar. O nome mais relevante nesse sentido é certamente o de Klaus Mörsdorf (1909-1989), fundador da escola de München (Alemanha). A partir de 1947, ele começou a elaborar uma visão original do direito da Igreja. Depois do Concílio Vaticano II, seus discípulos desenvolveram criativamente essa corrente muito influente e apreciada, não somente no âmbito da ciência canônica, mas também no espaço teológico e eclesial em geral.

A doutrina de Mörsdorf considera o direito canônico como realidade teológica, defende a intrínseca dimensão jurídica da palavra e do sacramento e define a ciência do direito canônico como disciplina teológica com método jurídico.

As posições do canonista alemão não procuram responder imediatamente aos desafios antijurídicos surgidos nos anos posteriores ao Concílio Vaticano II, mas se referem a preocupações mais permanentes, que se manifestaram antes mesmo da contestação pós-conciliar. O eminente canonista de München pretende contribuir para resolver os problemas de fundo levantados pela posição de Rudolph Söhm (1841-1917). O confronto crítico com o jurista luterano representa sem dúvida alguma uma chave de leitura muito importante para compreender a obra de Mörsdorf. Ele não só percebeu lucidamente a profundidade da crítica, mas também compreendeu a necessidade de elaborar de modo positivo uma doutrina sobre a fundação teológica do direito na Igreja.

Segundo o próprio Mörsdorf, Söhm teve por mérito elucidar e fazer sobressair de forma consciente para a ciência canônica o fato de que o direito depende no fundo da própria concepção da Igreja e, por isso, é uma realidade teológica (Errazuriz, 2000, p. 62).

A abordagem proposta por Mörsdorf e desenvolvida por Corecco tem despertado grande interesse e aprovação em amplos setores da ciência canônica. Essa abordagem é também criticada, por vezes de forma bastante radical, por canonistas de outras escolas (Cattaneo, 1999, p. 78-79).

Essas críticas podem ser resumidas da seguinte forma: dizer que o direito canônico é uma realidade intrinsecamente teológica resulta em negligenciar o aspecto jurídico; o desejo de conceber o direito canônico como ordinatio fidei implica a inaceitável substituição da razão pela fé; uma ciência canônica elaborada com método teológico acaba não sendo mais ciência canônica, mas diluindo-se na teologia (Cattaneo 1999, p. 79).

2.2 A CORRENTE PASTORAL

A corrente pastoral passa de uma concepção do direito eclesial como um conjunto de leis eclesiásticas, vistas como expressão do poder da hierarquia eclesiástica, para uma descrição do direito canônico como uma regulamentação, que deve ser atualizada permanentemente segundo as necessidades da Igreja e os sinais dos tempos (Errazuriz, 2000, p. 77). E, tem como principal teórico Peter Huizing (1911-1995). Um ponto de partida para entender o espírito dessa tendência é oferecido pelo editorial da revista Concilium em 1965, cuja formulação programática tornou-se célebre: desteologização do direito canônico e desjuridicização da teologia (Edelby; Urresti; Huizing, 1965, p. 3-5).

Segundo Errazuriz,

O programa da Revista Concilium é um projeto focado mais no método do que no conteúdo. Um plano elaborado para revisar de modo renovado os métodos de elaboração e de aplicação do direito canônico e não um programa teórico destinado a estabelecer conceitos e princípios para a compreensão da natureza e da função do direito canônico. A ausência de uma teoria explicativa justifica porque o “programa 1965” não pode oferecer uma resposta à altura para a questão da fundação teológica do direito canônico na Igreja. Essa crítica deve ser considerada, apesar das numerosas simpatias despertadas em distintos setores de opinião (2000, p. 77).

Qual seja, a ordem eclesial constitui uma organização de serviços espirituais a favor de homens individuais. No momento de determinar mais precisamente o conceito de direito, se cai novamente no de norma ou regra e torna-se um projeto mais focado no método que no conteúdo, com a finalidade de revisar de modo renovado os métodos de elaboração e de aplicação do direito canônico e não um programa teórico destinado a estabelecer conceitos e princípios para a compreensão da natureza e da função do direito canônico.

3 A CORRENTE JURÍDICA

A terceira e última corrente principal da ciência do direito canônico pós-conciliar insiste no fato de que o direito canônico é verdadeiro direito e portanto, quem estuda o direito canônico é verdadeiro jurista. As características dessa escola são descritas por Hervada (2002, p. 23). Primeira: a visão jurídica, daí a definição “ser canonista é ser jurista”. Segunda: a pureza metódica formal. Terceira: o método sistemático com a divisão em ramos do saber canônico. O professor Hervada parte da proposição de que o direito canônico é verdadeiro direito. Admitido o pressuposto, seguem as consequências. Quem estuda o direito canônico é verdadeiro jurista. A técnica e o método da ciência do direito canônico devem ser jurídicos.

Na concepção desta corrente, sem teologia não é possível estudar a ciência canônica, nem desenvolver adequadamente a sua atividade. Ser canonista não é ser teólogo, mas sem teologia não se pode ser canonista. A partir daí, se entende também a dimensão pastoral do direito canônico. Legislar é parte da função do bom Pastor. Quem interpreta as leis deve ter em conta as exigências pastorais. Eclesiologia, pastoral e direito canônico são três ciências com o mesmo objeto material: a Igreja.

Trata-se da redescoberta do direito como objeto da virtude da justiça, isto é, do direito como aquilo que é justo. Direito é a realidade, que sendo própria de um sujeito, lhe é devida por outro. Tal realismo jurídico foi aplicado pelo professor espanhol ao direito da Igreja, concebendo-o, por fim, como aquilo que é justo na Igreja (Errazuriz, 2000, p. 88).

Em resumo, a realidade jurídica está ligada com as relações sociais entre as pessoas. O direito não é uma realidade autorreferencial do indivíduo, mas relacional: supõe alteridade de, pelo menos, dois sujeitos diferentes (Errazuriz, 2000, p. 96-97). Tais sujeitos se encontram em situações correlativas. O primeiro aparece como titular de algo que é seu. O segundo entra em cena, obrigado a respeitar de algum modo o domínio do primeiro sobre aquilo que é seu. Além disso, o fenômeno jurídico comporta a existência de um sistema social (mais ou menos culturalmente desenvolvido) de declaração ou determinação e também de tutela dos direitos e deveres correlativos de cada um. A própria peculiaridade do direito, com suas propriedades clássicas (alteridade, exterioridade, obrigatoriedade, exigibilidade, coercibilidade), exige a existência desse sistema, que supera as incertezas e os riscos da autotutela espontânea dos próprios direitos.

Tal sistema jurídico, composto por regras ou normas, processos e organismos, conceitos e princípios, constitui o mundo do direito. Ora, a apresentação do direito sobre a qual se apoia a pesquisa tem este ponto de partida: o fenômeno jurídico é intrínseco às relações entre as pessoas humanas. Por consequência, a partir desse ponto de vista, não se pode afirmar que o direito seja algo instrumental. Aquilo que é instrumental é o sistema ou a técnica jurídica, que serve para tornar operativos os direitos (Errazuriz, 2000, p. 96-97).

Cientes da importância destas concepções ou correntes aludidas, cumpre ressaltar à guisa de conclusão deste ponto, que não podemos descurar que a estrutura constitucional da Igreja é determinada fundamentalmente por uma dupla ação: a de Jesus Cristo e a do Espírito Santo. Não são duas ações contrapostas, mas complementares: a última é complementar da primeira. Nessa matéria, duas posições extremas devem ser evitadas. Primeira: o dualismo eclesiológico, isto é, falar de uma Igreja institucional ou hierárquica contraposta a uma Igreja carismática. Segunda: o monismo cristológico (cristomonismo), ou seja, concentrar a atenção em torno de Jesus Cristo de tal modo que a ação do seu Espírito fique esquecida ou deixada na penumbra (Hervada, 2006, p. 44).

E, neste sentido a partir do ponto de vista da communio personarum da Igreja e do direito, é possível impostar a relação entre Igreja e direito canônico sobre um fundamento adequado à eclesiologia do Concílio Vaticano II. Em razão da universalidade da salvação, todas as pessoas têm direito de receber o anúncio do Evangelho e de ser incorporadas à Igreja, mediante o sacramento do batismo. A condição de batizado, por sua vez, comporta um conjunto de direitos e deveres: “uma rede de relações jurídicas com a Igreja como um todo e também com os demais fiéis cristãos” (Hervada, 2006, p. 44).

Dito isso passemos ao terceiro e último ponto deste texto, ao versar sobre o direito eclesial tendo por fonte, fundamento e base a igreja-povo de Deus a partir do Concílio Vaticano II, em especial pela Lumem Gentium.

3. NATUREZA EPISTEMOLÓGICA DO DIREITO ECLESIAL E CANÔNICO

A noção de Igreja como povo de Deus, é essencial para a compreensão da epistemologia do direito eclesial, tema inclusive já suscitado no item acima, e encontra-se especialmente exposta pelo Concílio Vaticano II, na Constituição Lumen Gentium, com as seguintes palavras:

“Este povo messiânico tem por cabeça Cristo”, “o qual foi entregue por causa das nossas faltas e ressuscitado por causa da nossa justificação” (Rm 4,25) e, tendo agora alcançado um nome superior a todo o nome, reina glorioso nos céus. É condição deste povo a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus, em cujos corações o Espírito Santo habita como num templo. A sua lei é o novo mandamento, o de amar assim como o próprio Cristo nos amou (cf. Jo 13,34). Por último, tem por fim o Reino de Deus, o qual, começado na terra pelo próprio Deus, se deve desenvolver até ser também por ele consumado no fim dos séculos, quando Cristo, nossa vida, aparecer (cf. Cl 3,4) e “a própria criação for libertada do domínio da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus” (Rm 8,21). Por isso, é que este povo messiânico, ainda que não abranja de fato todos os homens, e não poucas vezes apareça como um pequeno rebanho é, contudo, para todo o gênero humano, o mais firme germe de unidade, de esperança e de salvação. Estabelecido por Cristo como comunhão de vida, de caridade e de verdade, é também por Ele assumido como instrumento de redenção universal e enviado a toda a parte como luz do mundo e sal da terra (cf. Mt 5, 13-16) (LG 9).

Inspirado em Otto Semmelroth, Hervada, afirma que o Concílio Vaticano II com a fórmula “povo de Deus” pretende enfatizar principalmente quatro propriedades, juntamente com outros aspectos teológicos. A unidade: os cristãos constituem uma única estrutura social, que não exclui a diversidade. A sociabilidade: os cristãos estão unidos por vínculos sociais. A igualdade: entre todos os cristãos existe uma igualdade fundamental, que precede a qualquer diferenciação. A historicidade: os cristãos constituem uma formação social sujeita às mudanças ao longo do tempo (Hervada, 2007, p. 15-16).

O professor espanhol acrescenta que a dimensão histórica do povo de Deus deve ser contemplada em função do seu caráter escatológico (LG 48-51), porque a dimensão histórica é somente uma fase de sua existência, que encontra a sua consumação no fim dos tempos. Em síntese, a Igreja é povo pelas seguintes razões: seus membros têm uma unidade de origem, pois os fiéis cristãos são feitos filhos de Deus pelo sacramento do batismo e, portanto, irmãos entre si (vínculo de fraternidade); os fiéis cristãos se constituem em um conjunto solidário, com unidade de consciência; existe unidade de missão e de interesses, porque o povo de Deus, na sua totalidade, foi constituído como continuador da missão de Jesus Cristo no mundo (Hervada, 2007, p. 15-16).

De fundamental importância é dar-se conta de que o caráter necessário do direito dentro da Igreja se fundamenta na estruturação da Igreja como povo, sociedade e comunidade. Neste diapasão, segundo Hervada, o direito não é apenas uma regulação de condutas, mas também uma estrutura ordenadora das sociedades e das comunidades. Ele estrutura e organiza o grupo social criando vínculos, estabelecendo situações jurídicas, delimitando âmbitos de competência e autonomia, outorgando poderes. E, assim o direito eclesial não é uma exceção: ele tem uma função estruturadora na Igreja (Hervada, 2007, p. 33).

O direito é estrutura da Igreja e não apenas norma de atuação. A estrutura jurídica da Igreja considerada em sua unidade constitui o ordenamento canônico, o qual tende a formalizar a dimensão de justiça inerente à Igreja. Evidentemente, tal formalização acontece de acordo com as exigências do momento histórico, a partir de uma perspectiva técnico-jurídica.

No direito canônico, o aspecto teológico e o jurídico não devem ser considerados em oposição, mas integrados na constituição da unidade epistemológica dessa ciência. Neste caso, o trabalho do canonista deve ser visto, como fundamental e inerentemente teológico e, no amplo âmbito das disciplinas teológicas, especificado em virtude de seu peculiar ponto de vista (o ponto de vista jurídico), que, por sua vez, ajuda a determinar o método.

Isso implica reconhecer que na teologia (conhecimento de Deus e do seu desígnio de salvação, à luz da fé) devem-se distinguir diferentes perspectivas, que dão origem a várias disciplinas teológicas (sistemática, moral, espiritual, pastoral, litúrgica e canônica).

O método teológico (ou a lógica da fé), comum a todas essas disciplinas, vai encontrar em cada uma delas uma determinada especificação em consonância com as características do respectivo ponto de vista. Nesse sentido, parece correto definir a ciência canônica como uma disciplina teológica com método jurídico, apesar da demasiada concisão da fórmula, fato que se presta para mal-entendidos.

Dito de outra forma, à luz do perigo real representado pela tendência de dissolver a natureza jurídica do direito eclesial, resulta oportuno o empenho com o qual alguns canonistas enfatizam o caráter e o método propriamente jurídico da ciência do direito canônico. Todavia, a afirmação de que a ciência canônica é intrínseca e fundamentalmente teológica não implica de fato uma dissolução ou desvalorização da sua especificidade jurídica. Ao contrário, essas duas características são fundamentais e se iluminam reciprocamente. Somente uma ciência canônica que integra adequadamente a dimensão teológica com a jurídica será capaz de compreender e de expor o direito canônico na sua natureza intrinsecamente eclesial e na sua formalidade propriamente jurídica.

Ressalte-se que há uma íntima relação entre a cristologia e a eclesiologia, entre essa e o Espírito Santo, bem como com o Direito Eclesial. A dimensão eclesial é constitutiva do Direito Canônico. Neste sentido,

É questão fora de dúvida: tanto quanto o seu Espírito, que fará a obra por dentro, e conjuntamente com Ele, e ao grupo dos apóstolos, que Cristo confia à tarefa de estabelecer sal igreja. Ele mesmo fundou a Igreja, para falar de modo exato, a não ser de três maneiras: cumprindo em Si mesmo nossa redenção; escolhendo seus apóstolos, formando-os e investindo-os com poderes; e enviando-os e mandando, por meio deles, seu Espírito ao mundo. Ele não intervirá mais nesta Igreja a não ser pelos apóstolos ou por meio deles (Congar, 1966, p. 29).

Bem como, o Direito da Igreja só pode ser entendido pelos fiéis cristãos dentro da dimensão histórica. Simultaneamente, a cada mudança da Igreja (paradigma, modelo eclesiológico), subjaz um novo entendimento teológico eclesiológico, que por sua vez está vivenciado no tempo e no espaço histórico, com uma visão do homem (antropologia cristã, teológica). Neste caso, se em qualquer ordenamento jurídico deve-se levar em conta a antropologia, já que o Direito se refere ao ser humano que vive em sociedade, não poderia ser diferente quando tratamos do Direito da Igreja.

A partir dessas realidades da Igreja, se pergunta Alejandro W. Bunge:

O Direito na Igreja é necessário? Que lugar ocupa nela? É essencial que a igreja tenha leis e outras normas, ou isso é algo secundário e facilmente substituível? Apareceram respostas muito diversas a estas perguntas em distintos momentos da vida da Igreja. Diversas porque partem de distintas noções da Igreja e do Direito, diversas também pelas conclusões a que chegam. Muitas vezes se parte de concepções não só distintas, mas também opostas do Direito e da Igreja, e se chega a uma fundamentação também distinta do Direito na Igreja e de sua natureza jurídica (Bunge, 2009, p. 256).

Não se tem a pretensão de oferecer uma resposta conclusiva a estes questionamentos, mas se compreendemos que a Igreja é fruto da missão de Jesus e da atuação do Espírito Santo “a igreja não é simplesmente o desenvolvimento de Jesus Cristo. Ela é, de um lado, um mistério do chamamento divino de Jesus Cristo no Espírito Santo; de outro lado, porém, é mistério da livre decisão humana” (Schmaus, 1978, p. 21). E, que não será fácil entender, quer a Igreja como ícone da Trindade, quer o novo Direito Canônico saído da renovação conciliar, sem ter em conta, por um lado, a Cristologia, e por outro, a Teologia da Trindade e a Eclesiologia da comunhão, onde se fundamentam, aliás, os novos paradigmas antropológicos e teológicos da comunhão (Marques, 2009, p. 53).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em seu discurso aos participantes no curso de formação para profissionais do direito promovido pelo Tribunal da Rota Romana em 18 de fevereiro de 2023, o Papa Francisco assim se manifestou: “Estamos acostumados a pensar que o Direito Canônico e a missão de propagar a Boa Nova de Cristo são duas realidades separadas. Ao contrário, é decisivo descobrir o nexo que as une no seio da única missão da Igreja. Esquematicamente poder-se-ia dizer: nem direito sem evangelização, nem evangelização sem direito. Com efeito, o núcleo do direito Canônico diz respeito aos bens da comunhão, antes de mais à Palavra de Deus e aos Sacramentos (Francisco, 2023).

Trata-se sem dúvida alguma de uma desafiante tarefa em tempos de sinodalidade qual seja de como viver esta missão tendo presente os elementos essenciais da comunhão eclesial, que se encontra disposto no Cânon 205 do CIC: O vínculo da profissão de fé na palavra de Deus, o dos sacramentos e o do governo eclesiástico. Elementos eclesiológicos presentes na Constituição Lumen Gentium do Concílio Vaticano II (1962-1965), que propõe uma visão de conjunto da Igreja, a fim de superar antigas concepções unilaterais, tendo por objetivo a salus animarum.

E, neste universo do mundo como local de salvação, a ciência canônica deve ser assim ser considerada como sendo uma ciência eminentemente prática, onde seu conhecimento é necessário para determinar o justo na Igreja. Indicar o justo que deve ser dado a cada um é uma função indispensável do exercício dessa função, e disso dependem o êxito da renovação eclesial e a eficácia da missão evangelizadora. A justiça deve ser vivida dentro da communio, os direitos dos fiéis cristãos devem ser respeitados e o exercício do poder deve ser regulado pelo direito. Se assim acontece, a Igreja pode proclamar com credibilidade a mensagem sobre o reino de Deus que irrompeu em Jesus Cristo, mensagem capaz de ser luz do mundo (Lumen Gentium) e de irradiar alegria e esperança (Gaudium et Spes) para todos.

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