Entre o ser, o aprender e o ensinar: o espaço do diálogo e da experiência na sala de aula

Between being, learning and teaching: the space for dialog and experience in the classroom

DOI: https://doi.org/10.52451/2p4xaf47

Recebido em 09/06/2024

Aprovado em 13/08/2024

Regiano Bregalda

Possui graduação em filosofia (L e B) pela Universidade de Passo Fundo, graduação em teologia pelo Instituto de Teologia e Pastoral, mestrado e doutorado em educação pela Universidade de Passo Fundo. Realizou o doutorado sanduíche na École des Hautes Études en Sciences Sociales-Paris e no Fonds Ricoeur. É professor na Faculdade de Teologia e Ciências Humanas – Itepa Faculdades. Email: regiano_bregalda@hotmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0104-4163

Selina Maria Dal Moro

Mestre em Educação, professora aposentada da Universidade de Passo Fundo e professora na Faculdade de Teologia e Ciências Humanas – Itepa Faculdades. Email: selinamaria2017@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2044-4894

Resumo: Este estudo visa problematizar a sala de aula como um espaço de diálogo e elaboração da experiência formativa. O problema que orienta nosso objetivo visa a compreender em que sentido as dimensões do diálogo e da participação, enquanto princípios, podem ser repensados a partir da categoria de experiência formativa. Nossa hipótese repousa no entendimento de que somente um processo educativo capaz de mobilizar para realização de uma experiência formativa mediada pelo diálogo será capaz de comprometer os sujeitos para a construção de uma consciência crítica, autônoma e livre. Para dar conta deste objetivo nos amparamos numa metodologia qualitativa quanto à abordagem do problema, de cunho bibliográfico, e hermenêutica quanto a sua natureza. Nesta perspectiva nosso pensamento foi dirigido em três momentos. No primeiro, situamos o diálogo como princípio formativo enquanto mobilizador do sujeito ao ser mais, ancorados nas abordagens de Benincá e Freire. No segundo momento, ao investigar os conceitos de diálogo, formação e sala de aula, buscamos problematizar a dimensão da experiência formativa mobilizada pelo diálogo entre docente-discentes e entre discentes-discentes. E, por fim, sustentamos que as relações estabelecidas em sala de aula entre os sujeitos do processo formativo, devem mobilizar, mediadas pelo diálogo, a experiência formativa, aquela que orienta a descoberta da diferença, e a projetar e inaugurar outras formas de vida e de viver.

Palavras-chave: Diálogo; Experiência formativa; Participação; Sala de aula; Formação humana.

Abstract: This study aims to problematize the classroom as a space for dialogue and the elaboration of the formative experience. The problem that guides our objective aims to understand in what sense the dimensions of dialogue and participation, as principles, can be rethought from the perspective of the category of formative experience. Our hypothesis rests on the understanding that only an educational process capable of mobilizing the realization of a formative experience mediated by dialogue will be able to commit subjects to the construction of a critical, autonomous and free conscience. In order to accomplish this objective, we based ourselves on a qualitative methodology in terms of the approach to the problem, bibliographical in character, and hermeneutic in nature. From this perspective, our thinking was directed in three moments. In the first, we situate dialogue as a formative principle that mobilizes the subject to by being more, anchored in the approaches of Benincá and Freire. Secondly, by investigating the concepts of dialogue, formation and classrooms, we attempt to problematize the dimension of the formative experience mobilized by the dialogue between teacher-students and students-students. And finally, we maintain that the relationships established in the classroom between the subjects of the formative process should mobilize, mediated by dialogue, the formative experience, the one that guides the discovery of the difference, and to project and inaugurate other forms of life and living.

Keywords: Dialogue; Formative experience; Participation; Classroom; Human formation.

INTRODUÇÃO

A motivação que nos impulsionou a escrever este ensaio deve-se a dois motivos principais. O primeiro é o de dar continuidade às descobertas e à compreensão do legado intelectual de um dos grandes pensadores orgânicos do sul do Brasil, Elli Benincá1, reconhecido como um “clássico regional” (Dalbosco, 2022), e descrito por pesquisadores que se debruçaram sobre seus escritos como o ‘Mestre de Todos’. O segundo, no qual situamos a linha de raciocínio que iremos percorrer, trata-se de apreender e interpretar a compreensão de Benincá sobre temas que lhe foram muito singulares e lhe mereceram atenção especial: as dimensões do diálogo, da participação, particularmente no intuito de explorar mais a dimensão da experiência formativa em sala de aula.

Recuperar o legado de um personagem que marcou a história de inúmeras pessoas, de instituições educacionais e de formação teológica onde atuou e, em outras nas quais suas reflexões continuam a ressoar e a tecer releituras de mundos, constitui-se uma responsabilidade social, moral e ética. Em um mundo marcado por tantas contradições e desafios, como por exemplo a marginalização, a pobreza, a miséria, a ausência de reconhecimento, o avanço do autoritarismo, das guerras, do populismo, bem como a destruição da natureza e da vida como um todo, evidencia-se a emergência de pensar caminhos de contracorrente, capazes de sinalizar outros mundos possíveis.

Ante tais dilemas antigos, mas persistentes, nos mobilizamos para problematizar essa realidade plural, complexa e globalizada para, num exercício reflexivo, conhecê-la e interpretá-la numa perspectiva de transformá-la. Assim, nos propomos problematizar o espaço do diálogo, da participação e da experiência formativa em sala de aula. Formulamos o problema que orienta nosso estudo: que sentido as dimensões do diálogo e da participação, enquanto princípios, podem ser repensados a partir da categoria de experiência formativa? Postulamos, como hipótese, que somente um processo educativo capaz de mobilizar a experiência formativa, mediada pelo diálogo, será capaz de comprometer os sujeitos para a construção de uma consciência crítica, autônoma e livre. Para dar conta deste objetivo, seguimos uma metodologia qualitativa quanto ao problema de pesquisa, mas de natureza bibliográfica quanto a sua natureza, centrados, particularmente, na contribuição teórica de dois grandes autores: Elli Benincá e Paulo Freire.

Nesse sentido, dividimos este texto em três momentos. No primeiro, buscamos investigar o diálogo como princípio formativo a partir da práxis benincaniana e freireana. No segundo, indicamos possíveis sentidos que a mediação do diálogo em sala de aula pode ser capaz de abrir horizontes de imaginação, criação e inauguração do novo no mundo. E, por fim, buscamos questionar a dimensão da experiência formativa como princípio orientador e dinamizador do processo formativo.

1. A DIALOGICIDADE COMO PRINCÍPIO FORMATIVO

Para sair do círculo fechado de nós mesmos, em que só vemos nosso próprio rosto refletido nas coisas, é preciso que nos coloquemos fora de nós mesmos. Não somos o umbigo do mundo. E isso é muito difícil: reconhecer que não somos o umbigo do mundo! (Alves, 2014, p. 37)

Iniciamos esta reflexão buscando compreender a concepção de dialogicidade e práxis pedagógica desenvolvida por Elli Benincá2. Essa opção deve-se ao fato de que compreendemos que nessas noções se encontram os pilares das relações humanas e, portanto, da educação, que é onde centramos nosso interesse. Para a realização desse intento cremos ser significativo destacar o longo e cuidadoso aprendizado realizado por Benincá ao procurar penetrar na essência das produções intelectuais que foram inscritas na história do pensamento filosófico- pedagógico em sua longa presença no campo educacional e teológico.

Sem deixar de considerar os aprendizados anteriores, sem dúvida, merece destaque o envolvimento de Benincá com Ernani Maria Fiori, intelectual que mais o marcou em sua formação. Nas palavras de Mühl e Mainardi, “como ele mesmo reconhece, a postura humana e a visão crítico-libertadora de Fiori desafiaram-no a envolver-se com a prática educativa transformadora, especialmente na defesa da dignidade da pessoa humana e na luta contra a opressão e o autoritarismo” (2022, p. 185). O contato com Fiori o aproximou de outra referência decisiva em sua formação: Paulo Freire. O nexo entre Fiori e Freire levou Benincá a envolver-se durante toda a vida com a pedagogia do oprimido, a educação libertadora, a teologia de libertação e o diálogo e a dialogicidade (Mühl; Mainardi, 2022, p. 185).

A partir da prática pedagógica e à luz desse eminente pensador-educador, hoje, consagrado patrono da educação no Brasil, Benincá ancorou sua dimensão epistemológica. Um dos conceitos que atravessa sua teoria e no qual repousa nosso interesse é o de diálogo, que para ele “significa a manifestação recíproca das pessoas através da palavra”. Aliás, para Benincá, quem pronuncia a palavra, “pronuncia-se a si mesmo; mostra sua intimidade; revela o seu interior, isto é, revela o que foi gerado e o que cresce dentro de si. Pronunciar a palavra significa, portanto, tornar visível o invisível, revelar o oculto, ou seja, anunciar o mistério” (Benincá, 2010, p. 110). Uma compreensão que o referenda é a releitura do pensamento de Morin oferecida por Albuquerque (2021, s.p.), ao afirmar,

O diálogo é uma experiência plural, complexa, que interliga pensamentos, sentimentos e ações. Através dele, essas experiências, esses saberes, pontos de vista ou práticas que por alguma razão foram fragmentados podem ser religados em uma perspectiva de humanização e sustentabilidade do desenvolvimento local, nacional, internacional e planetário. Para a compreensão do mundo atual, da globalização de mercado e dos impactos das tecnologias da comunicação e da informação, pensar linearmente já não dá conta. São múltiplas as tessituras em rede, e é na perspectiva de rede, de ligações e religações, de identificação dos nós e dos núcleos geradores das informações que poderemos aprender a pensar a complexidade com as suas próprias ferramentas de rupturas paradigmáticas. Pensar o complexo com a própria complexidade. A pluralidade, as diferenças, as singularidades, mas, sobretudo, o que é capaz de ligar e religar os seres humanos e a natureza para a sustentabilidade do desenvolvimento da nossa mãe Terra, é que definirá a capacidade do ser humano de se realizar na liberdade.

Assim como na leitura de Morin, Benincá compreende o diálogo enquanto relação entre sujeitos, num encontro frente a frente entre um eu e um tu. O diálogo é relação que acontece mediante o reconhecimento de um saber que repousa fora do eu, requerendo do outro uma complementação à falta que repousa em mim. Enquanto sujeitos falantes, o ser humano precisa do outro para que ambos possam emitir a palavra, aquela que faculta a alteridade. É a palavra proferida por dois sujeitos que é capaz de aquilatar as diferenças e as assimetrias que atravessam o ser e o agir humano. Como sustenta Benincá, “a palavra não é concedida como no caso da relação sujeito-objeto, ou seja, professor-aluno; é ‘proferida’ em condições subjetivas de igualdade, mesmo que os sujeitos que a proferem sejam investidos em papéis assimetricamente desiguais” (2010, p. 187). Assim, numa relação assimétrica é resguardada a simetria entre sujeitos livres e com capacidade para escutar e falar.

Se retomarmos o relato bíblico da criação lemos que no princípio era o Verbo e o Verbo se encarnou entre nós (Bíblia de Jerusalém, 2008, Jo 1,1-18, p. 1842-1843). A palavra encarnada, na tradição judaico-cristã, é condição de vida. A palavra humana, tal qual a palavra divina, é criadora. “A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo” (Freire, 2019, p. 108). Benincá ratifica, assim, o pensamento de Paulo Freire afirmando que a palavra assume o sentido de dizer o mundo e fazer o mundo. Ou seja, a palavra verdadeira é práxis social comprometida com o processo de humanização, em que ação e reflexão estão dialeticamente constituídas. “Não há palavra verdadeira que não seja práxis. Daí que dizer a palavra verdadeira seja transformar o mundo” (Freire, 2019, p. 107). Benincá reafirmava, assim, que uma educação humanista-libertadora “tem no diálogo/dialogicidade uma das categorias centrais de um projeto pedagógico-crítico, mas propositivo e esperançoso em relação ao nosso futuro” (Zitkoski, 2008, p. 130). Ou seja,” através do diálogo podemos olhar o mundo e a nossa existência em sociedade como processo, algo em construção, como realidade inacabada e em constante transformação” (Zitkoski, 2008, p. 130). Assim, o diálogo se impõe como o caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens. Por isso, o diálogo é uma exigência existencial.

A partir dessas e outras referências, Benincá firmou o conceito de que todo processo formativo é relacional. Como diz Vásquez, “o homem comum e corrente é um ser social e histórico, isto é, encontra-se imerso em uma rede de relações sociais e enraizado em um determinado terreno histórico” (2007, p. 31). Vásquez segue afirmando que a própria cotidianidade está condicionada histórica e socialmente. Em outras palavras: todo ser humano se constitui nas relações e inter-relações que estabelece consigo, com o outro e com o mundo que o cerca. Parte assim da compreensão que todo ser humano é um ser em construção e, portanto, reconhecendo aquilo que já foi vivido e com abertura ao devir, à continuidade, à transformação. Sendo assim, o encontro com o diferente é um traço constitutivo da própria identidade, uma vez que ninguém se torna humanizado sozinho. Como diz Benincá, “o diálogo define-se como construção e busca permanente; introduz-se na luta contra a tendência da ordem institucional a se reificar e, contra a pretensão de cada indivíduo, obter ‘absoluta’ segurança existencial” (2010, p. 189).

O diálogo torna-se uma pulsão de vida, aquela que mobiliza para um outro modo de ser, rompendo com o ensimesmamento e com as condições reificadoras. Impulsiona para o exercício que mobiliza o sujeito a sair da zona de conforto, da acomodação, do basismo e da simples instrução. É no e pelo diálogo feito relação, que o ser humano se forma e se transforma no curso de seu existir, nas leituras de mundo que vai tecendo, segundo suas condições e possibilidades de imaginar e criar novos horizontes a serem inaugurados.

É nessa direção que se posiciona a questão: em que medida as relações humanas, sobremaneira as tecidas nos ambientes educativos, são permeadas pelo diálogo? Mais singularmente: as relações na sala de aula, são exercícios de prática de liberdade? Se o diálogo é palavra, partilha, encontro, vida..., urge pensá-lo, portanto, como um dinamismo nuclear nos ambientes que são, por natureza, mobilizadores de relações humanas e de reconhecimento recíproco. Neste aspecto, a educação naquilo que lhe é próprio enquanto arte de ensinar, torna-se o lugar do diálogo por excelência, ou seja, de produção de vida, reconhecimento de si, do outro e do mundo. Ensinar torna-se um ato político de ajudar a inserir o outro e o novo no curso da história, capaz de lê-la e compreendê-la e afirmar-se como sujeito.

O diálogo é uma potência formativa, que ao estar atravessada pela ética, impulsiona a transformação de mundos, seja do sujeito, seja da realidade que o cerca. O diálogo faz com que as relações do saber e do fazer que são mediadas pela palavra transformem-se em práxis. A palavra exige uma incursão no mundo da vida a fim de que ela repercuta em progresso qualitativo do ser no mundo. Assim, ela não se torna vazia, sem sentido e virtualizada. A palavra feita vida potencializa a superação da fragilidade em que se encontra o sujeito, impulsionando-o a abrir outros caminhos de libertação e emancipação humana. Portanto, o diálogo faz com que haja relação, haja impulso, haja movimento, haja vida.

2. Diálogo, formação e a sala de aula

Não nasci, porém, marcado para ser um professor assim. Vim me tornando desta forma no corpo das tramas, na reflexão sobre a ação, na observação atenta a outras práticas ou à prática de outros sujeitos, na leitura persistente, crítica de textos teóricos, não importa se com eles estava de acordo ou não. É impossível ensaiarmos estar sendo deste modo sem uma abertura crítica aos diferentes e às diferenças, com quem e com que é sempre provável aprender. (Freire, 2021b, p.102)

Se o diálogo constitui, forma e transforma o sujeito, ou melhor, é ‘uma exigência existencial’, conforme Freire (2019, p.109), significa que ele pode ser potencializado, dinamizado e priorizado. Um dos âmbitos que possui a capacidade ímpar de fortalecer as relações dialógicas é o espaço da sala de aula e/ou da educação como um todo. Para caminhar conforme o movimento do pensamento que levou à elaboração deste texto permanecemos com esse primeiro traço. O ambiente da sala de aula, na relação que se tece entre sujeitos, é fecundo para a promoção do diálogo. Aliás, se o diálogo constitui, emancipa e liberta o sujeito, ele deve então ser ensinado, praticado e vivido. A sala de aula, por sua vez, é um tempo e momento singulares para que ele possa ser mobilizado.

A sala de aula, entendemos aqui, é o laboratório do diálogo. Ela tem a possibilidade de ser o espaço das trocas, das partilhas, de descobertas, de socializações, de um interesse comum, capaz de promover aberturas a outros mundos possíveis visualizados, criados e habitados. Por isso, o encontro que se tece em sala da aula é um lugar por excelência de afeto, de acolhida, de reconhecimento, de relação, no qual cada qual vai elaborando e alargando sua própria história. A sala de aula enquanto lugar do diálogo, é o lugar das tecituras do sujeito, no qual, na relação com o outro, ele vai lapidando a si mesmo. Nas palavras de Benincá,

A sala de aula é um espaço e um tempo privilegiados para o professor e aluno estabelecerem o diálogo. Para que tal ocorra, cabe ao professor a iniciativa de desencadeá-lo (iniciativa esta não opressora, uma vez que ao opressor não interessa tal atitude), concebendo, para tanto, a sala de aula como um palco de debates e consumindo o tempo que passar nesse palco na alimentação e habitação desses debates (2010, p. 113).

Ensinar e aprender pela mediação do diálogo, não são ações fáceis, afinal, dialogar requer exposição, dizer de si, acolher o outro, o íntimo do outro, ao mesmo tempo que dá tudo de si, numa troca simbiótica profunda. Mas, mesmo assim, apesar da profunda troca, não é possível conhecer tudo do outro e, ao mesmo tempo, tudo de si. O conhecimento de si e do outro é sempre parcial e sempre mediado pela palavra, ou seja, passa sempre pela mediação do diálogo que nunca se esgota. A sala de aula, enquanto lugar do diálogo, é o lugar da palavra, aquela que comunica a interioridade e faculta o reconhecimento de si e do outro, e, com isso, a tomada de consciência. Paulo Freire (2019, p. 108), afirma que “não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão”. O diálogo que se inscreve na palavra, torna-se práxis, relação, encontro. Encontro mediatizado pelo mundo que não se esgota numa relação comunicacional entre um eu e um tu, mas se torna um ‘ato de criação’.

Por isso precisamos falar da qualidade do diálogo. Afinal, se o diálogo requer uma exposição da intimidade dos sujeitos, uma vez que exige que eles possam dizer de si e deixarem abertura para o desconhecido que emerge do outro, significa que é um espaço da vulnerabilidade. Não há diálogo sem que o sujeito esteja vulnerável, justamente para permitir que algo de novo possa repercutir em si. Porém, colocar-se nessa condição torna-o um ser frágil, suscetível, despojado, nu. Por esse motivo, exige a requisição do papel do docente como agente mediador da palavra, capaz de orientá-la eticamente, no sentido da alteridade, do reconhecimento, impulsionando o reconhecimento da dignidade humana que habita em cada um. Nas palavras de Freire, “quando, porém, falo da ética universal do ser humano estou falando da ética enquanto marca da natureza humana, enquanto algo absolutamente indispensável à convivência humana” (2021a, p. 19). Afinal, uma vez que é próprio da natureza ontológica do ser humano a busca pelo ser-mais, qualquer perspectiva que cerceie, negue ou fragilize esse direito, viola a dignidade humana, ferindo não apenas um sujeito, mas a própria humanidade.

O diálogo, quando atravessado pela ética do reconhecimento, é libertador, ou melhor, se transforma numa prática de liberdade. Pensar a sala de aula como exercício da liberdade é concebê-la como lugar de troca de práticas e saberes, onde as visões de mundo se explicitam, narrativas são colocadas, leituras de mundo são manifestadas, enfim, a consciência prática dos envolvidos é posta em comum. Para que isso ocorra, há necessidade de confiança e capacidade de escuta pelos pares. Mediante tais atitudes e pela partilha da palavra, vão se configurando e reconfigurando os saberes de cada sujeito. É só numa profunda confiança que o diálogo em sua dimensão mais alargada se torna eficaz, uma vez que estabelece relações de reconhecimento da singularidade, da pluralidade e da diversidade. Conforme Freire, “a confiança implica o testemunho que um sujeito dá aos outros de suas reais e concretas intenções. […] Falar, por exemplo, em democracia e silenciar o povo é uma farsa. Falar em humanismo e negar os homens e as mulheres é uma mentira” (2019, p. 113).

O poder do diálogo reside justamente nessa capacidade criativa de colocar em movimento aquilo que é próprio de cada sujeito, para que na ‘mistura das palavras’, o novo possa emergir em cada sujeito. Por isso, o diálogo é iniciador, é criador, é inventor, pois inaugura a todo tempo o novo no mundo. Trata-se da capacidade de tomar aquilo que é comum aos sujeitos a partir de uma abertura ética, oportunizando a passagem da consciência ingênua para uma consciência crítica. Uma consciência, fruto da troca coletiva entre muitos mundos singulares, que abre para a criação de outros tantos, facultando aos sujeitos poderem habitar nestes mundos criados. A sala de aula é um devir, algo que vai se tornando, gerando vida. Assim, metaforicamente falando, ela está prenhe de um porvir, de algo que está para nascer. É o diálogo que dá vida à sala de aula, pois do contrário, ela adoece, enfraquece e se torna pulsão de morte. Mediante o diálogo, a sala de aula torna-se o lugar do inesperado, daquilo que não se sabe, de um desejo de querer encontrar algo a mais.

Criar uma consciência crítica advém dessa troca coletiva de experiências, de aberturas, exposições que facultam ao sujeito humanizar-se. Desta forma, a sala de aula encontra um papel fundamental em ser este espaço de confiança, acolhida e reconhecimento. Ela não é o lugar somente de uma exposição de conceitos por parte daquele que tudo sabe, do erudito (professor), ante o ignorante (aluno). A sala de aula torna-se um lugar problematizador, que por meio das perguntas e dos debates promove o diálogo. Ao professor cabe – conforme compreende Benincá ao reler Freire – promover um diálogo em torno de um tema comum, ou seja, algo pelo qual os sujeitos possam ter com o que problematizar. A consciência crítica emerge da troca de experiências ante aquilo que é conhecido que, mediante a problematização, inaugura o novo àquele que ainda não conhecia.

Partir do universo cultural do sujeito implica reconhecê-lo como sujeito capaz, oportunizando que ele possa problematizar aquilo que lhe acontece. Afinal, não partir de algo comum entre o estudante e o professor, torna-se para Freire, uma educação bancária, uma vez que não implica o sujeito numa transformação de si e do mundo. Sobre o professor repousa a capacidade de despertar a ação, a reflexão para que dela se gere nova ação. Portanto, é papel do professor planejar a aula (Ação), criar condições favoráveis de estudo dentro da sala de aula, estimulando a curiosidade e a criatividade dos alunos (Reflexão) e, por fim, reelaborar as aulas após observadas a necessidades dos educandos (Nova ação).

Pode-se dizer que a postura dialógica do docente em sala de aula desperta para o ‘ainda não’, ou melhor, para o “vir a ser”. Há uma função que não é do todo saber, mas da mediação das experiências, despertando o uso da criatividade, da imaginação, da autonomia e da liberdade. Por isso, Paulo Freire em Pedagogia da Autonomia (Freire, 2021a), ao retomar a importância da postura dialógica e da prática da dialogicidade em uma educação humanizadora, refere-se à importância da educação corporificada. Testemunhar a abertura aos outros, a disponibilidade curiosa à vida, a seus desafios, são saberes necessários à prática educativa. Essa abertura só pode efetivar-se pelo diálogo crítico e criativo em relação à existência humana concreta, superando conceitos estruturados pelo senso comum, porque diz Benincá, “o senso comum estrutura, com muita habilidade e criatividade, processos de resistência capazes de anular qualquer proposta político-pedagógica, por mais estruturada que seja, principalmente nos grupos mais excluídos” (Benincá, 2002, p. 79–80).

Na perspectiva de uma educação libertadora impõe-se para o educador, minimamente, uma prática orientada por dois princípios inquestionáveis. O primeiro princípio consiste em nos dedicarmos à escuta silenciosa dos depoimentos e dos textos utilizados, para entender de maneira imanente o que eles têm a nos dizer. Consideramos que, sem esta entrega silenciosa-ativa, não há diálogo participativo, mas somente a posição de um dos interlocutores, que tenderia a impor, em uma via de mão única, sua “verdade” aos demais. No entanto, no sentido dialógico participativo, a verdade assume a dimensão histórica, inconclusa e, principalmente, intersubjetiva, que caracteriza a própria condição humana em sua sociabilidade no sentido ético.

Saber escutar é, assim um dos saberes necessários à prática educativa. Trata-se de uma escuta que vai além da capacidade auditiva e difere da pura cordialidade. Saber escutar é condição para o desenvolvimento de uma prática educativa democrática. Paulo Freire, tanto em seu pensamento quanto em sua prática testemunhava que na medida que aprendemos a escutar, paciente e criticamente, o educando, podemos passar a falar com ele e não falar para ele, como se fôssemos detentores da verdade a ser transmitida. “Nessa perspectiva, saber escutar requer que se aprenda a escutar o diferente” (Saul, 2008, p. 171).

O segundo princípio repousa na capacidade de interrogar o que foi ouvido, buscando compreender as razões do que foi dito e, sobretudo, daquilo que possivelmente permanece oculto. Não podemos esquecer que a atitude crítica a ser construída depende basicamente da capacidade humana de ouvir e perguntar e, precisamente por isso, tal capacidade acontece sempre num âmbito contingente e incerto dos acontecimentos, exigindo que os próprios participantes assumam os riscos inerentes às fragilidades dessa contingência, as quais nada mais significam do que a própria vulnerabilidade da condição humana. Portanto, ouvir pacientemente, perguntar insistentemente, refletir, intervir e avaliar constantemente são aspectos constitutivos do procedimento dialógico que sustenta a ideia democrática de participação, buscada obstinadamente pela práxis Benincaniana pela qual se torna decisiva à formação da comunidade humana e o próprio cuidado da casa comum.

Hoje, precisamos nos colocar no lugar do mestre Benincá para entender o ponto de partida de sua visão de mundo e de sua fala. Adentrar nesse cenário é condição indispensável para entender Benincá que sempre testemunhou que a natureza ontológica do ser humano é de ser-mais. Portanto, qualquer ato que negue ou cerceie esse direito é transgressão ética, violência que fere a sua humanidade. Qualquer forma de discriminação ou preconceito em relação à raça, gênero, etnia, classe social deve ser radicalmente explicitada, enfrentada, denunciada. Qualquer ato que desrespeite o sujeito humano, não garantindo o seu direito à diferença, é transgressão da ética universal em defesa da humanização. Freire reafirma, em Pedagogia da Autonomia: “Daí o tom de raiva, legítima raiva, que envolve o meu discurso, quando me refiro às injustiças a que são submetidos os esfarrapados do mundo [...]. O meu ponto de vista é o dos condenados da Terra, os excluídos” (2021a, p. 16).

3. Experiência, formação e a sala de aula

O mundo é salvo todos os dias por pequenos gestos. Diminutos, invisíveis. O mundo é salvo pelo avesso da importância. Pelo antônimo da evidência. O mundo é salvo por um olhar. Que envolve e afaga. Abarca. Resgata. Reconhece. Salva. Inclui. Esta é a história de um olhar. Um olhar que enxerga. E por enxergar, reconhece. E por reconhecer, salva. (Brum, 2006, p.22)

Falar de experiência é trazer à tona o ser sujeito, aquilo que afeta o todo do ser. Afinal, experiência diz respeito ao “que nos passa”, “o que nos acontece”, “o que nos toca”. Em um mundo em que “muitas coisas passam’” e poucas “nos passam”, muitas tocam e poucas “nos tocam”, pensar a educação e a arte de ensinar a partir da experiência torna-se um desafio. A possibilidade de fazer acontecer o processo educativo que seja capaz de mobilizar a experiência, é fazer da arte de educar não apenas uma ‘passagem’, mas uma significância, aquela que permanece, que faz morada no sujeito.

Pensar a sala de aula como aquela que orienta para a experiência, requer pautá-la de um outro lugar, para além de uma tecnicização, imediatização, da pressa, da pura preparação para o trabalho, da profissionalização, de um simples lugar de acontecimentos. Pensar a educação é pensar um processo de ensino-aprendizagem vivo, capaz de encontrar aderência nas individualidades e singularidades. Afinal, em um universo social complexo, marcado por lógicas marginalizadoras, medicamentalizadoras e incapazes de reconhecer o sujeito como sujeito, para além de uma patologia ou de um diagnóstico, as experiências formativas são capazes de simbolizar e ressignificar os laços sociais.

Mas o que significa experiência e o saber-fazer educativo atravessado pela experiência? Para responder a essa questão, vale a pena recorrer a Heidegger, que, ao tratar do conceito experiência, compreendia-a como algo que nos toca, se apodera de nós, nos tomba e nos transforma. Para o filósofo, a experiência diz respeito ao “sufrir, padecer, tomar lo que nos alcanza receptivamente, aceptar, en la medida en que nos sometemos a ello. Algo se hace, adviene, tiene lugar” (1987, p. 143). O sujeito da experiência é um sujeito alcançado, tombado, derrubado. Alguém que se deixa encontrar com o desconhecido, mergulhar em si mesmo. Nas palavras de Jorge Larossa,

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (2015, p. 25).

A experiência, aquela que orienta a olhar, o olhar sobre si e sobre o mundo, a partir de outra perspectiva, daquilo que afeta, enxerga, simboliza e significa o viver. Pensar a educação entremeada pela experiência repousa na metáfora trazida por Brum: “E por enxergar, reconhece. E por reconhecer, salva” (2006, p.22). Não basta aprender, pois a vida não habita no conceito. Aquilo que marca, afeta e ativa o sentido de viver repousa na qualidade das experiências que o sujeito vive ao longo da sua vida. Na esteira de Freire, se são as experiências, aquelas que nunca morrem, pautar a sala de aula e os processos educativos por elas é facultar a possibilidade de que a educação seja capaz de formar e transformar.

Eis a questão: para que serve a educação? Ou melhor, educar para quê? Tais questões parecem posicionar o papel do processo educativo d’outro lugar: a partir do reconhecimento, da alteridade. Pensar a educação e os processos educativos tendo em vista a experiência, não significa não dar conta dos pressupostos básicos do ensino e da aprendizagem enquanto transmissão do saber historicamente produzido, mas, que estes saberes possam despertar experiências outras, capazes de enriquecer o ser e o agir humano a partir da vida do educando. Ou seja, não significa que a instrução não seja reconhecida no processo de ensino-aprendizagem, entretanto, ele não é a centralidade, se não a experiência formativa. Os saberes são aqueles que qualificam a experiência de si, aí onde repousa o sujeito. Quanto mais qualificada for a mobilização destes saberes para a ampliação e ressignificação das experiências, mais intensas serão as possibilidades de que o sujeito poderá fazer com estes saberes, ampliando-os e mobilizando-os para outras experiências.

Nesse enfoque, também na esteira de Dewey, a tarefa pedagógica é sempre a de tomar a qualificação da experiência enquanto continuidade. Aliás, uma experiência não finda em si mesma, não é a conclusão do todo, mas abertura. A experiência formativa da sala de aula é aquela que abre buracos na experiência para promover outras. Como salienta o autor, “o princípio de continuidade de experiência significa que toda e qualquer experiência toma algo das experiências passadas quanto modifica de algum modo as experiências subsequentes” (2023, p. 38-39).

Para exemplificar, pautamos exemplos para iluminar essa afirmação. Os medalhistas nas Olimpíadas de Paris em 2024 não lograriam a subida ao pódio se um dia não tivessem superado o movimento de engatinhar e gradativamente, correndo, pulando por campos e praias e de continuados treinamentos, alargassem sua experiência motora até alcançar o máximo que a humanidade pode chegar. Outro exemplo, ao considerarmos a monumental obra de Paulo Freire, podemos perceber que ela se funda nos alicerces de sua alfabetização pela ação de sua mãe, que o ensinou a escrever com pequenos galhos de árvore no quintal da casa da família. Em Jaboatão concluiu a escola primária. Em seguida, fez o primeiro ano ginasial no Colégio 14 de julho de Recife. Prosseguindo, alcançou o pódio da educação, sendo aclamado ‘Patrono da Educação Brasileira’.

Na esteira de Freire e reconhecendo o caminho percorrido por Benincá no processo de sua formação, lembramos o parecer do saudoso Bispo Emérito de Passo Fundo, Dom Urbano Allgayer, registrado no livro organizado pelos professores da Itepa Faculdades, Clair Favreto e Rodinei Balbinot e intitulado Teologia e Pastoral Práxis e Evangelização. Homenagem a Elli Benincá nos seus 70 anos (2006), declarou:

O Pe. Elli Benincá é um sacerdote – educador de excepcionais qualidades, que integra as duas funções. Provido de doutoramento, emérito professor universitário, concilia o carisma presbiteral, formador de futuros padres, com dotes de eminente pedagogo, mestre e orientador do nosso clero, com uma atuação bem sucedida no meio universitário (p. 39)

Menino nascido às margens do rio Uruguai, diversas vezes repetiu àqueles que com ele cruzaram pelos bancos escolares, que aprendeu nas lides agrícolas realizadas na pequena propriedade familiar que cada espécie vegetal tem seu tempo de plantio e de colheita e que cada uma necessita de implementos e cuidados específicos. Transferindo sua experiência para o cultivo da humanidade, seja pela docência da filosofia ou da teologia e pela construção de metodologias para a prática pastoral e pedagógica, na perspectiva de superação da subalternidade e para construção de sujeitos humanos, sempre inconclusos, mas com vocação para ser sempre mais, intuiu que, a sala de aula, onde a palavra, mediada pelo exercício de diálogos construtivos, se constituiria o lócus privilegiado de realização de uma educação e uma pastoral libertadoras.

Em sua prática pedagógica e ciente que a experiência formativa se constitui em movimento experiencial do próprio sujeito aprendente e que vai sempre se alargando, a pergunta era a chave utilizada por ele para abrir mais janelas que permitissem ver novos mundos. Um ver que não se constituía num simples olhar, mas um ver que permitia perceber o que não é visto por um simples olhar. Ou seja, a prática pedagógica de Benincá induzia ao desvelamento do encoberto sob as aparências e que ia se realizando no movimento do pensamento crítico. Repetia assim a afirmação de um personagem desconhecido que deixou registrado num velho almanaque surrado pelo tempo e que o vento nos pôs na mão: “Não é sobre o que você está olhando, é sobre o que você vê”. Um ver mediado pela compreensão do texto escrito ou da escuta do ‘outro’.

Mais, longe de ser um professor opressor, Benincá lançava mão da pressão para ‘empurrar’ para frente e assim promover a libertação do estudante realizando sua própria experiência. Esta era compreendida por ele como única forma de tornar-se mais, mediante o exercício da cognição. Por isso, sempre exigia a experiência prévia da leitura do texto posto para o debate coletivo em sala de aula. Caso alguém se descuidasse desse primeiro exercício, convidava-o a buscar na biblioteca fontes bibliográficas para inteirar-se, mediante a leitura, da mensagem posta pelo autor. É importante frisar que os que apreendiam seu projeto educativo, mergulhavam profundamente nos recursos didáticos (textos) postos para continuidade do processo de aprendizagem.

Paralelo com práticas que visavam impulsionar os estudantes para frente, destacava-se em Elli o cuidado com aqueles que já caminhavam com bastante liberdade em direção à descoberta do outro que se apresentava nos textos indicados para estudo. Estes sempre encaminhados para que, pelo exercício da cognição, avançassem na descoberta de si. Registramos aqui a experiência vivida por um grupo de estudantes de filosofia nos primórdios da Universidade de Passo Fundo. Depois de cada aula ministrada por Benincá, à tardinha, um pequeno grupo, sistematicamente se reunia sob uma frondosa ‘maria-mole’ situada num espaço de lazer e que espraiava, gratuitamente, sombra refrescante, para, ali, coletivamente, ler, analisar e compreender a mensagem do texto, encaminhado pelo professor Elli. Atento a esse movimento, não poucas vezes, ele surpreendia o grupo e depois de um saboroso lanche oferecido, graciosamente, pelo dono do bar, juntos mergulhavam, novamente na leitura da qual, provocados por perguntas de Elli, surgiam novas questões que, analisadas, permitiam, enfrentar o senso comum e focar no contexto sociopolítico e econômico os desafios postos à educação e para a construção do senso crítico.

Na esteira da proposta pedagógica de Freire e Benincá, o que está em questão é a experiência enquanto continuidade e contínua elaboração do sujeito aprendente. Cada experiência afeta as subsequentes, atribuindo qualidade e fragilidades, facultando ou dificultando novas experiências. Daí que o papel do professor como aquele que coloca em movimento as experiências, oportuniza uma maturidade e alargamento delas, qualificando-as, para que sejam éticas e formativas. Afinal, diz Dewey,

A experiência não se processa simplesmente no interior da pessoa [...]. Toda experiência genuína tem um lado ativo que, de algum modo, muda as condições objetivas em que se passam as experiências. A diferença entre civilização e o estado selvagem, para dar um exemplo em larga escala, se encontra no grau em que experiências prévias mudaram as condições objetivas em que se passam as experiências subsequentes. A existência de estradas, meios de deslocamento rápido e transporte de ferramentas, utensílios, mobiliário, luz e força elétricas, ilustram o exemplo dado. Se fossem destruídas as condições externas da experiência civilizada presente, nossa experiência regrediria, pelo menos por um tempo, ao mesmo nível dos povos primitivos. (2023, p. 45–56).

A experiência, por não dizer respeito apenas ao sujeito, implica tudo e todos, portanto, quando falamos de educação, implica toda a turma, toda a instituição. Pensar o processo educativo mobilizado pelo docente a partir da experiência, é ampliar a concepção de educação como uma prática de liberdade. A experiência é aquela que mobiliza e promove a continuidade da aprendizagem, uma vez que nunca se sabe tudo. Uma educação mediada pela experiência coloca o sujeito em constante construção, numa continuidade de amadurecimento de si, do outro e do mundo. Ao ancorar o processo formativo na experiência educativa, formativa e ética, a educação se torna um processo social, como enfatiza Paulo Freire. O professor não é aquele que possui verdades absolutas, um todo-saber... é um mobilizador de experiências formativas. Por isso, deve conhecer a realidade que o cerca e os seus educandos, para que seja capaz de criar estratégias capazes de impulsionar experiências. Além disso, tenha condições de instigar o interesse por novas experiências, potencializadoras do novo mais uma vez, numa constante aspiral.

O que é nuclear, nessa perspectiva, é que em meio aos desafios de uma educação contemporânea marcada pelo individualismo, empresariamento da subjetividade, medicamentalização da infância, ausência de escuta, de diálogo, de destituição de laços familiares, sociais e outros, esta abordagem mostra que a dimensão da experiência aponta para uma outra lógica. Trata-se de um caminhar que coloca em diálogo, singularidades, modos de ser, individualidades que marcam cada sujeito como um si mesmo. É essa capacidade de educar na pluralidade, valorizando e mobilizando experiências formativas em cada sujeito, capazes de educar para o viver comum, que se encontra um dos pilares da resposta à pergunta ‘para que serve a educação’. Mas como pensar um percurso didático-formativo capaz de mobilizar todos os educandos envolvidos, com suas singularidades e individualidades para experiências formativas?

Compreendemos que os sujeitos que se encontram na sala de aula são atravessados por inúmeras relações que estão para além de uma universalidade. Cada um deles possui uma estrutura familiar, modo de ser, pensar, criar, imaginar... Pensar o lugar da experiência, da abertura de si ao mundo é um sinal de luz, de abertura, de acolhimento, de sentido, de escuta, de diálogo. Uma educação pautada pela experiência se torna o espaço da arte, da criatividade e da imaginação. Afinal, como salienta Freire,

Na verdade, não podemos viver senão em função do amanhã, daí o ser da curiosidade, da imaginação, da invenção que não podemos deixar de estar sendo. E não se pense e não se diga que a imaginação e a criação são domínio próprio do artista enquanto ao cientista cabe o desvelamento ou a desocultação de verdades pré-estabelecidas. A curiosidade epistemológica não se deixa isentar da imaginação criadora no processo de desocultação da verdade. O ser humano é uma totalidade que recusa ser dicotomizada. É como uma inteireza que operamos o mundo enquanto cientistas ou artistas, enquanto presenças imaginativas, críticas ou ingênuas. É por isso também que a educação será tão mais plena quanto mais esteja sendo um ato de conhecimento, um ato político, um compromisso ético e uma experiência estética (2021a, p. 136).

É diante dessa dimensão e do já exposto nas linhas acima, que a educação necessita ser mais do que instrução, um ambiente de alto grau de sistematização e organização de saberes a serem transmitidos a mentes ‘vazias’ ou a meras ‘esponjas’, como se cada sujeito fosse uma tábula rasa. Tampouco trata-se de uma proposta restrita a uma aprendizagem de um modelo de sujeito ideal ou de um processo educativo desprovido de sistematização. O que está em questão é a possibilidade daquilo que é vivido se tornar experiências e que estas possam não apenas reproduzir, mas inaugurar o novo. É nessa direção que compreendemos que repousa o papel e a função da educação e do fazer docente.

Uma educação capaz de ser espaço de alteridade é aquela que se mobiliza por e para experiências. Ao docente, nesse sentido, repousa a grandeza de qualificá-la, despertando através de sua prática e didática, meios e possibilidades de acolhimento das singularidades, do sujeito como sujeito, e mobilizar para algo mais... uma experiência subsequente, na linguagem de Dewey. Assim, a sala de aula mais do que um espaço de elaboração de conceitos, torna-se um laboratório de troca de saberes, práticas e experiências. Um processo formativo cujo fim não é em si e para si, mas para o mundo, para a sociedade, para civilização, para um agir humano, ético e democrático. Trata-se de um lugar de aprender a aprender, aprender a viver, aprender a ser consigo e com os outros. Em sala de aula, o professor se defronta com as dimensões humanas mais belas para alcançar e despertar a imaginação e a criatividade para novas experiências, novos mundos a serem habitados.

Postular o espaço formativo da sala de aula atravessado pela dimensão da experiência, requer, entretanto, uma outra noção de escola, de Estado e de Nação. Afinal de contas, em um contexto marcado pela privatização da vida e de um individualismo meritocrático reinante, pautar uma educação para a sociabilidade de experiências e não para um carreirismo, significa postular novas formas de pautar a educação. Novos currículos, novas avaliações, novos investimentos, novas escolas, novas formações e novos modos de operar o papel da instituição educativa, da educação, da família, do docente e do educando.

Um novo horizonte que se mobilizará com o tempo e o esforço daqueles que buscam, nas pequenas alternativas possíveis, despertar experiências nas fendas enrijecidas de um viver fixista. Aos novos formadores e novos formandos cabe mobilizar novos esforços pedagógicos, políticos e institucionais capazes de impulsionar um novo saber-fazer. Quiçá, seja nossa inspiração cotidiana. O que pontuamos e sustentamos é que ainda que estejam num horizonte distante, os princípios, as metodologias e as práticas deverão ser pautados para realização de uma educação de e para a experiência. Daí, reforçamos a importância e a urgência de que a formação de professores-educadores seja perpassada por luzes que mobilizam para este horizonte.

Considerações finais

Tendo presente as linhas que orientaram a reflexão, salientamos que buscamos situar o diálogo como princípio formativo, aquele que mobiliza o sujeito a ser mais. Tomamos inicialmente as abordagens de Benincá e Freire como sustentação teórica e epistemológica à medida que postulamos a íntima relação entre o diálogo e a experiência formativa. Buscamos sustentar que o diálogo é uma potência formativa que mobiliza a dimensão ética do reconhecimento e da abertura ao outro. O diálogo torna-se uma prática de liberdade, de autonomia, promovendo, no jogo das palavras, a efetivação de uma práxis emancipatória.

Tendo presente essa dimensão, seguimos num segundo momento, aprofundando a relação entre o diálogo, a formação e a sala de aula, uma vez que entendemos que este é um lugar privilegiado em que o ser humano pode alargar seus horizontes de imaginação, criação e inauguração do novo no mundo. Buscamos sustentar que a dimensão da experiência formativa mobilizada pelo diálogo, faculta compreender a singularidade do papel docente não como um ‘todo saber’ e do educando como uma “tábula rasa”, mas como espaço de construção e troca de experiências. A compreensão de práxis postulada por Benincá e Freire marcam essa dimensão.

Por fim, situamos o terceiro momento deste texto que buscou evidenciar a dimensão da sala de aula como uma experiência formativa mobilizada pelo diálogo. Um ensino mediado pela experiência e sua continuidade pressupõe uma relação pedagógica que se estabelece na relação dialógica entre docente e discente. Nesse sentido, sustentamos que a relação que a sala de aula deve mobilizar, mediada pelo diálogo, é a experiência formativa e seu alargamento contínuo como um processo de reconhecimento de si, do outro e do mundo. É a experiência formativa que faculta o interesse pela descoberta do diferente, bem como projetar e inaugurar outras formas de vida, sejam elas pessoais e/ou sociais. A sala de aula, compreendida como troca de práticas e saberes, é o espaço-tempo que mobiliza para a experiência, alarga o universo simbólico dos envolvidos e provoca para outras leituras da realidade, oportunizando novas descobertas.

À luz da prática de dois grandes pensadores como Freire e Benincá, bem como da companhia de outros grandes interlocutores, defendemos a riqueza que significa pensar a sala de aula como expressão e reverberação de uma experiência formativa. Um lugar de aconchego, partilha, trocas, bem querer e bem viver, um lugar onde se aprende e se ensina, oportunizando a mais nobre das dimensões humanas: ler o mundo. Quiçá essas inspirações mobilizem para compreender a sala de aula não apenas como um ambiente de aprendizagem cognitiva, mas de elaboração do viver, espaço onde as subjetividades se encontram, se dinamizam e qualificam-se. Um desafio à formação humana.

Referências

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1 Entre as diversas obras citamos: DAL MORO, Selina Maria e RODIGHERO, Ivanir Antonio. Vida e missão do Professor e Pe. Elli Benincá. In: Itepa Faculdades 40 anos refletindo sobre Evangelização. Passo Fundo: EDIUPF, 2022, p.23-48. BIANCHETI, Lucídio. Formação dialógica interdisciplinar: as tecituras urdidas e orquestradas por Benincá. In: Formação de educadores-pesquisadores: contribuições de Elli Benincá. MÜHL, Eldon Henrique e MARCON, Telmo (org.). Passo Fundo: EDIUPF, 2022, p. 37-82. DALBOSCO, Claudio Almir e ARAUJO, Daniela De Davi. A simplicidade formativa do mestre professor: um tributo à memória de Elli Benincá. In: Formação de educadores-pesquisadores: contribuições de Elli Benincá. MÜHL, Eldon Henrique e MARCON, Telmo (org.). Passo Fundo: EDIUPF, 2022, p.121-154. SCARTEZINI, Angela Trombini. Exercícios formativos da práxis benincaniana: diálogo e memória em sala de aula. Passo Fundo: EDIUPF, 2024.

2 Sugerimos a leitura da biografia do Pe. Prof. Elli Benincá, de autoria de MARCON, Telmo e MUHL, Eldon Henrique. Traços biográficos da trajetória intelectual de Elli Benincá. In: MÜHL, Eldon Henrique e MARCON, Telmo. Formação de Educadores- pesquisadores: contribuições de Elli Benincá. Passo Fundo: EDIUPF, 2022, p. 19-33.