Práxis dialógica, pesquisa como princípio formativo e a formação das novas gerações em Benincá
Dialogical praxis, research as a formative principle and the formation of new generations in Benincá
DOI: https://doi.org/10.52451/9c8q7v60
Recebido em 22/08/2024
Aprovado em 02/10/2024
Pós-doutor (bolsista CAPES), pela Universidad Autónoma del Estado de México. Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFSC). Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Especialista em Epistemologia das Ciências Sociais pela PUCRS. Graduado em Filosofia − Licenciatura Plena pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Professor titular III e pesquisador da UPF. Professor do corpo docente permanente do Mestrado e Doutorado em Educação, atuando na linha de Políticas Educacionais na UPF. Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Superior (GEPES), na UPF. Pesquisador do Observatório do Ensino Médio do Rio Grande do Sul e da Rede Ensino Médio. Avaliador de cursos e instituições do INEP. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação (Mestrado e Doutorado) na UPF. Email: altairfavero@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9187-7283
Possui graduação em filosofia (LP) pela Universidade de Passo Fundo, mestrado em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, doutorado e pós-doutorado em filosofia pela Universidade Estadual de Campinas. É professor no curso de filosofia e no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo. Coordena o Núcleo de Pesquisas em Filosofia e Educação (NUPEFE-UPF) e o Grupo de Estudos em Ética, Democracia e Educação (GEEDE-UPF). Email: angelo@upf.br. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0541-2197
Resumo: O presente texto tem por objetivo tematizar uma possível relação entre práxis dialógica, pesquisa como princípio formativo e formação das novas gerações. Para tal, iniciamos com uma retomada da práxis do diálogo na tradição hermenêutica filosófica e educacional, indicando as dimensões formativas nela contidas. Destaca-se, nesse passo, as contribuições de Gadamer (1999; 2002), bem como suas implicações para o campo educacional levadas adiante por autores como Hermann (2002) e Cruz (2010), dentre outros. No passo seguinte, levando-se em conta sempre o papel hermenêutico da práxis dialógica, adentramos na obra de Benincá para explorar o modo como ele toma o senso comum como base de investigação da metodologia da práxis. Esse passo nos possibilita avançar na tematização da articulação existente entre o método da práxis, a formação continuada do pesquisador e o papel formativo do grupo de pesquisa. À guisa de conclusão, mostramos a contribuição que essa abordagem traz para a formação das novas gerações.
Palavras-Chave: Práxis dialógica; Investigação; Princípio educativo.
Abstract: The present text aims to focus on a potential relation among dialogical praxis, research as a formative principle and formation of new generations. In order to do this, we begin by resuming the dialogical praxis in educational and philosophical hermeneutic tradition indicating the formative dimensions contained in it. In this regard, Gadamer’s contributions (1999; 2002) stand out, as well as their implications for the educational field carried out by authors such as Hermann (2002) and Cruz (2010), among others. In the following step, always considering the hermeneutic role of dialogical praxis, we go into Benincá’s work to explore the way how he takes common sense as the basis of praxis methodology research. This step allows us to advance by thematizing the existing articulation among the praxis method, the researcher’s continuing education and the research group’s formative role. In conclusion, we demonstrate the contribution which this approach brings to the formation of new generations.
Keywords: Dialogical praxis; Research; Educational principle.
INTRODUÇÃO
Benincá concebe a pesquisa como esforço de compreensão de um processo relacional que acontece entre sujeitos. Esse, por sua vez, demanda uma epistemologia determinada, mediante a visão de que a realidade é sempre uma possível compreensão (fenomenológico-hermenêutica) de um determinado contexto, o que permite ultrapassar pedagogias positivistas e essencialistas para as quais a realidade poderia ser tomada como objetiva, verdadeira e única. Para Benincá, a visão da pesquisa como construção de sentidos a partir da relação estabelecida em contexto entre as pessoas demanda uma metodologia da práxis, de caráter intersubjetivista e sistemática, uma vez que se trata de um processo estruturado que requer determinados passos, tais como a observação, o registro, a memória e a difusão do conhecimento produzido no grupo de pesquisa. A pesquisa, sob essa compreensão, precisa se constituir em um processo formativo em que “o investigador é, simultaneamente o investigado”, ou seja, que assume uma perspectiva de transformação não apenas no modo de ver os demais sujeitos, processos e contextos estudados, mas também de si mesmo. Trata-se de “sujeitos em transformação, não objetos transformados” (Benincá, 2011, p. 61). Nesse sentido, a pesquisa assume também um caráter emancipador de todos os implicados nela e do próprio contexto e se distancia de uma perspectiva objetivista e opressora. Por fim, a metodologia da práxis se confunde com uma perspectiva hermenêutico-dialógica. Por se tratar de um “processo relacional”, a mediação que possibilita a compreensão e transformação dos sujeitos nele implicados, bem como do contexto em que estão inseridos, é o diálogo.
A perspectiva benincaniana se insere no contexto mais amplo das filosofias e pedagogias do diálogo que marcaram o pensamento e muitas das práticas sociais do século XX. Souza (2003) destaca que as filosofias do diálogo constituem um movimento diversificado, com origem e formulações também muito diversas, mas que reúnem algumas características chaves que lhes são comuns. Essas passariam por três dimensões, a saber, a da “temporalidade”, a da “linguagem enquanto dizer” e a da “multiplicidade ontológica primordial” (Souza, 2003, p. 206s.). Isso significa afirmar, em primeiro lugar, que só existe diálogo com dialogicidade e que, pois, a temporalidade é tomada como “horizonte de referência” da relação que se estabelece com a realidade. Em segundo lugar, a inteligibilidade do real é possibilitada mediante a linguagem. A dinâmica do dizer articulada à temporalidade que lhe envolve é “irredutível a esquemas conceituais” fechados, o que mostra também que “toda síntese é uma síntese parcial” (Souza, 2003, p. 207). Por fim, há, na base de tais filosofias, uma ontologia em que “o pensar está sempre defasado em relação ao ser” em razão de que ser significa “ainda-não-ser” por se dar no tempo e, esse, por sua vez, dá-se na linguagem (Souza, 2003, p. 207, grifos nossos). Essa breve síntese elucida uma tradição de pensamento diversificada, mas unida por algumas dimensões fundamentais que permitem situar a pedagogia e a metodologia de pesquisa de Benincá no seu interior. Vale lembrar a importância, para Benincá, de autores como Martin Buber, Martin Heidegger, Hans Georg-Gadamer, Paulo Freire, Ernani Maria Fiori, Anton Makarenko, dentre outros que compõem essa tradição. Benincá recolhe as dimensões fundamentais da filosofia do diálogo ao converter o princípio do diálogo em cerne de sua pedagogia e de sua epistemologia pensada como Metodologia da práxis.
Tomando como referência esse pano de fundo, o presente texto visa tematizar uma possível relação entre práxis dialógica, pesquisa como princípio formativo e formação das novas gerações. Para tal, inicia-se com uma retomada da práxis do diálogo na tradição hermenêutica filosófica e educacional, em que são indicadas as dimensões formativas nela contidas. Destaca-se, nesse passo, as contribuições de Gadamer (1999; 2002), bem como suas implicações para o campo educacional levadas adiante por autores como Hermann (2002) e Cruz (2010), dentre outros. No passo seguinte, levando-se em conta sempre o papel hermenêutico da práxis dialógica, adentra-se à obra de Benincá para explorar o modo como ele toma o senso comum como base de investigação da metodologia da práxis. Esse passo nos possibilita avançar na tematização da articulação existente entre o método da práxis, a formação continuada do pesquisador e o papel formativo do grupo de pesquisa. À guisa de conclusão, é mostrada a contribuição que essa abordagem traz para a formação das novas gerações.
1 A DIMENSÃO FORMATIVA DO DIÁLOGO NA TRADIÇÃO HERMENÊUTICA FILOSÓFICA-EDUCACIONAL
A palavra diálogo é frequentemente tematizada no âmbito filosófico e amplamente utilizada no campo educacional. Na história da filosofia ocidental são inúmeros os filósofos que não só teorizaram sobre o diálogo e tornaram seu modo de fazer filosofia dialógico, mas também o utilizaram como estilo de escrita. A lista é extensa e se faz presente em todas as épocas. Enquanto estilo de escrita, não podem ficar de fora os famosos Diálogos, de Platão; o De Magistro, de Santo Agostinho; Sobre o Infinito, de Giordano Bruno; ou os Diálogos sobre a Religião Natural, de David Hume. Cada um, a seu modo, fez do diálogo uma forma instigante de proporcionar aos seus leitores uma forma de expressar suas ideias e de tornar a filosofia uma experiência pulsante de vida em diálogo consigo mesmo, com os outros e com o mundo.
Contemporaneamente são amplamente conhecidos os textos e expressões de Gadamer que tratam do diálogo. Para citar algumas, é possível mencionar “o diálogo como encontro hermenêutico”, “a força transformadora do diálogo”, “a fusão de horizontes”, “a realização da linguagem”, “a relação entre linguagem e entendimento”, ou, ainda, “nossa incapacidade para o diálogo”. No dizer de Gadamer (2002, p. 247), “um diálogo é para nós, aquilo que deixa uma marca”, ou seja, o diálogo deixa dentro de nós algo que pode nos transformar, pois provoca uma mudança na compreensão de mundo de cada sujeito nele envolvido. No nosso entendimento, mesmo que não se tenha Gadamer como interlocutor direto, todas essas dimensões do diálogo gadamerianas têm grande proximidade com a forma como Elli Benincá constituiu sua práxis dialógica no seu trabalho pedagógico, nas suas práticas de pesquisa e na formação das novas gerações de professores e pesquisadores. Para explicitar esse nosso entendimento, nesta primeira seção do texto, empenhamo-nos em reconstruir, mesmo que de forma breve, as dimensões gadamerianas de diálogo, para, na segunda seção, apresentar de que forma Benincá, por meio do método da práxis, constituiu a pesquisa como princípio formativo
Embora o diálogo apareça em diversos textos, foi na conferência La educación es educarse, proferida em 19 de maio de 1999, no Dietrich-Bonhoeffer-/gymanasium de Eppelheim, por ocasião de um ciclo sobre o tema “A educação em crise: uma oportunidade para o Futuro”, que Gadamer (2000) justifica porque acredita que o aprendizado só é possível por meio do diálogo. Em sua visão, dizer que o aprendizado é um modo de diálogo significa compreender “o diálogo como encontro hermenêutico” (Fávero, 2007, p. 43) e que não há educação sem uma relação aberta com o outro. Se “educação é educar-se” e “se formação é formar-se” na perspectiva do diálogo gadameriana, então, podemos inferir que é possível conceber a educação não mais como um modelo de transmissão de princípios morais, ou de crenças e saberes já consagrados e definidos. A educação se torna um processo aberto de construção, de um fazer-se coletivo, de uma interlocução que acontece quando os interlocutores se encontram. A ideia é que aquele que se assume como educando precisa da mediação do diálogo com o outro para se colocar diante de sua própria existencialidade, que é carregada de preconceitos que, na perspectiva gadameriana, constitui nosso manancial histórico de concepções prévias ou, na heideggeriana, de “estar-no-mundo”.
O diálogo possui, para Gadamer, uma força transformadora e possibilita que “a hermenêutica se apresente como uma forma de racionalidade com pretensões de superação das condições objetivadoras e dominadoras, de uma racionalidade que se solidificou historicamente como pano de fundo de todo um modo de ser, proceder, pensar e relacionar do homem ocidental” (Cruz, 2010, p. 82). A hermenêutica, dessa forma, “rompe com a ideia de que existe uma verdade absoluta”, ou de que a verdade possa ser revelada nas ovacionadas evidências dos dados empíricos, ou nos escrutínios estatísticos das pesquisas instrumentais endeusadas pela técnica. Dessa forma, em termos educacionais, a hermenêutica gadameriana sugere que nossos anseios e preocupações não sejam resolvidos nas respostas prontas e definitivas produzidas pela racionalidade técnica, mas sejam buscadas “por meio de um mergulho na existência, onde podemos encontrar o ser humano em sua condição de relação por meio da linguagem e da conversação” (Cruz, 2010, p. 83). É essa conversação que possibilita que a educação se torne uma força transformadora capaz de identificar “as linguagens puramente tecnicistas, carregadas de dogmatismo objetivista capaz de exclusão de individualidades, culturas, saberes e tradições” (Cruz, 2010, p. 84), visivelmente presentes nos atuais contextos educacionais seduzidos e colonizados pela mentalidade economicista que está transformando a escola em uma empresa (Laval, 2004). Nesse sentido, a força transformadora do diálogo gadameriano se apresenta como possibilidade contra hegemônica de resistência a um projeto reformista educacional pautado pela instrumentalização da educação para os fins do mercado.
Para compreender de forma mais profunda a questão de diálogo em Gadamer e, na pretensão deste escrito, perceber os traços gadamerianos que se aproximam da práxis benincaniana, faz-se necessário discorrer sobre o conceito de “horizonte hermenêutico”. O conceito de “horizonte” na hermenêutica de Gadamer está ligado à ideia de que toda possibilidade de compreender remete para um modo de ver, que encontra seus limites na situação presente daquele que vê. “Horizonte”, diz Gadamer (1999, p. 452), “é o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. Aplicando-se à consciência pensante, falamos então da estreiteza do horizonte, da possibilidade de ampliar o horizonte, da abertura de novos horizontes etc.”. Não ter horizontes significa não ter possibilidade de ver mais longe e limitar-se àquilo que está imediatamente perto. “Pelo contrário”, continua Gadamer (1999, p. 452), “ter horizontes significa não estar limitado ao que há de mais próximo, mas poder ver mais além disso. Aquele que tem horizontes sabe valorizar corretamente o significado de todas as coisas que caem dentro deles, segundo os padrões de próximo e distante, de grande e de pequeno”. Nessa citação potente de Gadamer, encontra-se a dimensão profunda da abertura da compreensão possibilitada pelo diálogo hermenêutico compreendido como um processo de “abertura de horizontes”. A possibilidade de abertura de horizontes se coloca aqui como uma das tarefas mais importantes e promissoras de um processo educativo e, possivelmente, constitui-se como um dos traços mais inovadores da pesquisa compreendida como um processo coletivo dialógico de investigação.
A “abertura de horizontes” possibilitada pelo diálogo hermenêutico requer, dos envolvidos, “o esforço pessoal de pôr em jogo os preconceitos que trazemos conosco”, que não é a simples atitude de se colocar no lugar do outro quando esse não partilha da mesma opinião que temos (Ferreira, 2015, p.78). Na perspectiva da hermenêutica gadameriana, tal atitude pode significar apenas “conhecer a posição e o horizonte do outro” e pode acontecer “quando travamos um diálogo somente com a intenção de conhecer melhor a outra pessoa, ou seja, de termos uma compreensão mais clara de seu horizonte” (Ferreira, 2015, p.79). Para Gadamer (1999, p. 454), esse não é o verdadeiro diálogo, pois não ocorre uma “abertura de compreensão”, um encontro de entendimento, e podemos sair desse diálogo apenas com a compreensão da opinião da pessoa sem colocar “nossos preconceitos em jogo” e de termos novos horizontes abertos. Um diálogo genuinamente hermenêutico requer “uma fusão de horizontes”, ou seja, possibilitar que o horizonte do outro se abra para nós como uma possibilidade legítima de compreensão, e que o tema, sobre o qual buscamos o entendimento, seja constituído na confrontação de nossas opiniões prévias, próprias de nossos preconceitos subjacentes. Nesse sentido, tem razão Hermann (2002, p. 94) quando diz que “uma perspectiva hermenêutica na educação retoma seu caráter dialógico com toda a radicalidade”. O dizer de Gadamer de que “só podemos aprender pelo diálogo” reforça a posição de que “é o próprio sujeito quem se educa com o outro”. Assim, o diálogo, na perspectiva gadameriana, “não é um procedimento metodológico, mas se constitui na força do próprio educar – que é educar-se – no sentido de uma constante confrontação do sujeito consigo mesmo, com suas opiniões e crenças, pela condição interrogativa na qual vivemos” (Hermann, 2002, p. 94).
Dialogar, em um sentido genuinamente gadameriano, não se restringe a confrontar falas, opiniões ou interpretações particulares, pois, em uma situação dialógica, nenhum dos interlocutores pode arrogar-se de ter uma posição superior ao do outro. “Ao contrário”, diz Hermann (2002, p.95), “os interlocutores têm que levar a sério a posição do outro, e, desse processo, surge um conhecimento que até então não se encontrava disponível para nenhum dos envolvidos”. É dessa forma que, em uma situação autêntica de diálogo, ocorre a “fusão de horizontes, onde novas explicações de sentido e de entendimento surgem, dando novos rumos à própria compreensão. Conforme veremos na segunda parte do texto, a práxis benincaniana nos grupos de pesquisa constitui indícios da “fusão de horizontes” que se dá entre os integrantes.
O diálogo é, também, na perspectiva da hermenêutica gadameriana, “a realização da linguagem”, pois não existe diálogo sem linguagem. Toda a terceira parte de Verdade e Método, intitulada “A virada ontológica da hermenêutica no fio condutor da linguagem”, Gadamer (1999) é dedicada a mostrar “o sentido da linguagem no processo de compreensão” (Hermann, 2002, p. 43). Na assertiva observação de Ricoeur (1988, p. 41), toda essa parte da obra pode ser vista como “uma apologia apaixonada do diálogo que somos e da concórdia prévia que nos impulsiona”. Por isso, para Gadamer (1999), a linguagem é “o médium da experiência hermenêutica” e o “horizonte de uma ontologia hermenêutica”. Sendo assim, é possível dizer que a linguagem se torna o fio condutor do giro hermenêutico. Conforme nos diz Hermann (2002, p. 62), “todo processo dialógico de produzir sentido se realiza por meio da linguagem, pela qual os interlocutores produzem acordo”. O ato de produzir acordos não se estabelece como um protocolo dogmático, mas por uma dimensão fenomenológica no contexto da linguagem dentro do qual nos movemos e nos constituímos como seres históricos. A “ontologia linguística”, proposta por Gadamer, coloca-se na oposição “a uma interpretação antropocêntrica da linguagem, que a reduz a um instrumento de pensamento”. Derivada da dimensão histórica e finita da compreensão, “a linguagem é a marca da finitude humana”, tornando-se “o meio pelo qual se efetiva o entendimento a respeito de algo”.
Gadamer (1999; 2002) defende um sentido não instrumental da linguagem, ao dizer que ela não é um instrumento do pensamento. Ao discorrer sobre “homem e linguagem”, Gadamer (2002, p. 173-174) diz que “o homem pode comunicar tudo o que pensa” e por ter tal “capacidade de se comunicar que unicamente os homens podem pensar o comum, isto é, conceitos comuns e sobretudo aqueles conceitos comuns pelos quais se torna possível a convivência humana” salutar que possibilita não só uma vida social, mas, acima de tudo, a condições favoráveis para uma boa convivência; “Isso tudo está contido no simples enunciado: o homem é um ser vivo dotado de linguagem”. Nossa relação com o mundo se dá dentro de um contexto de linguagem, assim como todo nosso conhecimento que nos possibilita ter acesso ao mundo acontece na linguagem. Como nos diz Hermann (2002, p. 64), “nosso acesso às coisas se dá pela palavra, pela linguagem” e é necessário compreender que “as palavras não pertencem a nós, mas à situação em que estão e são aprendidas dentro da tradição no fluxo da experiência”. É nesse sentido que a linguagem não pode equivocadamente ser resultado de um puro pensamento, mas decorre de uma prática, de um acontecer histórico (historicidade), de um conviver dialógico com os outros e com o mundo. “A linguagem é, pois, o centro do ser humano, quando considerado a âmbito que só ela consegue preencher: o âmbito da convivência humana, o âmbito do entendimento, do consenso crescente, tão indispensável à vida humana como o ar que respiramos” (Gadamer, 2002, p. 182).
Linguagem e entendimento, na perspectiva hermenêutica gadameriana, constituem duas faces da mesma moeda. Conforme diz Gadamer (2002), “somos linguagem” e não só possuímos linguagem, e essa se realiza no diálogo, como unidade de sentido que vai além da simples expressão de enunciados. Pensar na vitalidade da linguagem, no seu envelhecimento, ou na sua renovação, implica em pôr em movimento o intercâmbio possibilitado do diálogo que se estabelece uns com os outros, pois “a comunicação humana é a construção de uma interpretação comum do mundo” (Fávero, 2002, p. 48). Por isso, existe uma relação intrínseca entre linguagem e entendimento que pode ou não se dar por meio do diálogo. Pensado dessa forma, o diálogo deixa de ser uma ação de disputa e de convencimento do outro e se torna abertura para possibilitar o entendimento, a transformação dos que dialogam.
O diálogo em uma perspectiva hermenêutica gademariana, e também em uma perspectiva da práxis benincaniana, provoca mudanças na compreensão de mundos dos sujeitos envolvidos. Conforme diz Gadamer (2002, p. 247), “um diálogo é para nós, aquilo que deixou uma marca”, pois, o que torna um diálogo genuíno nessa perspectiva, “não é termos experimentado algo novo, mas termos encontrado no outro algo que ainda não havíamos encontrado em nossa própria experiência de mundo”. Nesse sentido, “o diálogo tem uma grande proximidade com a amizade”, com aquele momento transbordante em que “os amigos podem encontrar-se e construir aquela espécie de comunhão onde cada qual continua sendo o mesmo para o outro porque ambos encontram o outro e encontram a si mesmos no outro” (Gadamer, 2002, p. 247). Mais uma vez, as vivências testemunhadas no convívio com Benincá atestam essa marca produtora de transformação e amizade referida por Gadamer.
Mas se o diálogo é tão potente e promissor para o entendimento, para a dimensão transformadora dos sujeitos, para a “fusão de horizontes”, para a “abertura de horizontes”, ou ainda para a “comunhão da compreensão de mundo”, por que ele nem sempre acontece no cotidiano e nas práticas pedagógicas? Por que o diálogo, embora enunciado nas metodologias dos planos de ensino, amplamente pronunciado nos discursos pedagógicos e fartamente explicitado nos registros acadêmicos, nem sempre se realiza nas ações pedagógicas das salas de aula ou facilmente é confundido com a simples conversa e troca de opiniões? O próprio Gadamer (2002, p. 248) adverte que há “diversas formas de diálogo que ocorrem em nossa vida” e que existe uma certa “incapacidade para o diálogo, na qual a maioria sucumbe”. Ao se referir ao diálogo pedagógico, reconhece-se que a incapacidade para o diálogo se faz sentir quando quem ensina acredita que, quanto mais clareza, fluência, densidade e organização do tema que está sendo exposto, melhor será o resultado produzido. O professor se sente, nesse caso, o “transmissor autêntico da ciência” e passa a produzir um monólogo expositivo que inviabiliza os espaços do diálogo. Como nos alerta Hermann (2002, p. 92), “nessa perspectiva, o aprisionamento da educação pelo modelo de cientificidade cria dificuldades para que a tradição maiêutica socrática viceje” e o diálogo como lugar de encontro se torne cada vez mais raro.
As reflexões sobre o diálogo em Gadamer são oportunas para pensar os desafios educacionais do nosso tempo e de como a incapacidade para o diálogo pode apresentar-se como um obstáculo que ronda o fazer pedagógico. Uma das formas de vivenciar o diálogo e de enfrentar os obstáculos de nossa possível incapacidade para sua realização se dá por meio da pesquisa e dos grupos de estudo, amplamente incentivados por Elli Benincá. Trataremos disso na próxima seção.
2 A pesquisa entre senso comum e metodologia da práxis
Além de guia sistemático para a prática da pesquisa, Benincá compreende método como “postura” do docente-pesquisador. Postura, em sua visão, implica (a) a opção pessoal intransferível pelo que se está fazendo — não se trata, pois, apenas do cumprimento de um exercício profissional, o que representa compromisso ético com a própria prática e com as pessoas envolvidas na ação da docência e da pesquisa, e (b) a consciência do sentido político de tal ação, a saber, que ela deve estar orientada para a transformação social e das pessoas envolvidas na ação. Não se trata apenas, por exemplo, de compreender o modo como se manifesta a subalternidade em determinados grupos sociais, mas de criar condições para que agentes sociais, educadores e os próprios envolvidos tomem consciência dessa situação e possam orientar a prática em tais grupos no sentido de os ajudarem dentro do possível, a ultrapassá-la. Nessa compreensão, ecoa o antigo método Ver, Julgar e Agir, oriundo da Juventude Operária Católica e que influenciou Benincá em sua. Método como postura exige do intelectual (docente, pesquisador ou agente social) uma profunda compreensão teórica da realidade, a capacidade de examiná-la criticamente e a decisão de levar adiante esses dois passos de maneira consequente para contribuir com a transformação dela.
Por sua vez, a prática de pesquisa é entendida por Benincá como algo sistemático e que demanda, pois, metodologia adequada para ser bem desenvolvida. Se o coração do método é a postura do pesquisador, sua efetivação requer procedimentos que precisam respeitar a natureza do “objeto” de pesquisa, constituído por sujeitos em sua ação concreta. Nesse sentido, a pesquisa sobre as práticas docentes, de religiosidade popular, movimentos sociais ou grupos sociais subalternos — como o caso daquelas voltadas a caboclos ou a indígenas — assume como ponto de partida a busca de compreensão das singularidades de cada um desses grupos, conforme suas manifestações culturais vivenciadas em seus respectivos territórios.
Como orientação geral, a perspectiva de Benincá se filia a um tipo de pesquisa que articula fenomenologia e dialética. Nesse modelo, o ponto de partida são as manifestações do fenômeno estudado, seja a prática pedagógica, a religiosidade popular, as lutas dos movimentos sociais ou as expressões culturais de grupos sociais subalternos. Benincá concebe “fenômeno” como manifestação de algo. Em sentido filosófico, destaca que “o fenômeno, ao se manifestar, mostra-se a si mesmo, mas não diz tudo de si. Indica para outra realidade que se esconde [...]” (Benincá, 2010, p. 35). Com base em Heidegger, argumenta que “aquilo que está oculto não se revela por si mesmo”, pois, “o que se mostra não é somente aquilo que aparece, porque ele é o fundante da manifestação” (Benincá, 2010, p. 36). Por conseguinte, por esse prisma, todo fenômeno se apresenta como “relativamente escondido” e é o atento esforço teórico do pesquisador que permite desocultá-lo. A esse respeito, destaca que o esforço do pesquisador implica desvelar a “consciência disponível” que “intenciona a ação espontânea”, em razão de ser essa que “intenciona a ação” dos agentes: “trata-se da consciência prática que, de forma mecânica, orienta nossas ações cotidianas” e o caminho de acesso ao fenômeno é a própria prática dos envolvidos observada com o necessário distanciamento; por essa razão, é somente “por meio de um processo metodológico” que se torna possível “chegar à consciência disponível” (Benincá, 2010, p. 31-32).
Por outro lado, no que tange ao recurso à dialética, trata-se de compreender essas práticas em contexto, articuladas sob o prisma do conjunto das relações sociais onde estão inseridas e, também, de identificar ali suas contradições e a concepção de mundo compartilhada entre as pessoas. Aqui os principais referenciais são Marx e Gramsci. De Marx, é particularmente importante as premissas da concepção materialista da história, conforme ele as indica em A ideologia alemã. Nessa obra, Marx e Engels (2007) argumentam que uma concepção de história que tome como ponto de partida metodológico as condições materiais de existência tem de levar em conta as premissas dessa, que são os seres humanos reais, sua ação e suas condições materiais de existência. Trata-se, pois, de entender os sujeitos da pesquisa como seres historicamente situados.
Todavia, os sujeitos da pesquisa são também portadores de uma concepção de mundo que pode ser mais ou menos coerente ou também ocasional e desagregada. Em sua Concepção dialética da história, Gramsci (1995) destaca que todos os seres humanos são portadores de uma concepção de mundo e que, mediante essa, compartilham um determinado modo de pensar e de agir. Ocorre que, “quando a concepção do mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa”, razão pela qual “nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista, preconceitos de todas as fases históricas passadas estreitamente localistas e intuições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano mundialmente unificado” (Gramsci, 1995, p. 12, nota 1). Esse recurso à teoria gramsciana permite a Benincá colocar na base de suas pesquisas, como fio condutor a ser desvendado em suas múltiplas e complexas facetas, o senso comum em seu caráter dialético de fragmentação e de bom senso. O leitmotiv do trabalho de pesquisa consiste, então, em examinar as concepções do mundo em estudo, sobretudo ao perguntar por que não se manifestam de forma unitária e coerente. Nesse sentido, a dialética gramsciana indica para a finalidade política de todo esforço investigativo, formativo e transformativo mediante a práxis pedagógica e o exercício da pesquisa, a saber a de os seres humanos tornarem-se parte de seu próprio tempo e guias de si mesmos.
Nessa esteira, para Benincá (2011), o senso comum é apresentado como um conjunto de sentidos que são absorvidos no cotidiano cultural de maneira a constituírem-se em “estrutura da consciência prática” na forma não reflexiva de “conhecimento prático” do mundo. Somente o recurso a uma adequada metodologia de pesquisa possibilitaria explicitar ao caráter fragmentário do senso comum e aceder a seu núcleo de bom senso. Benincá denominou essa abordagem de metodologia da práxis. Gramsci aqui, mais uma vez, possui uma influência decisiva sobre nosso autor. Se é possível haver, em um mesmo sujeito ou um grupo social, a coexistência de duas concepções de mundo — uma teórica e outra prática —, a predominante será sempre essa última, por possuir um poder muito maior de guiar as ações das pessoas. A tensão entre senso comum e seu núcleo de bom senso mostra para Benincá que esse possui um cunho “assistemático e ametódico”, razão pela qual não reúne condições para fazer nem de ter “estrutura para sua autocrítica” (Benincá, 2010a, p. 165). Somente um método da práxis o terá, precisamente por explicitar seu caráter fragmentário, contraditório e assistemático, criando condições para poder superar essa condição. Esse tem o papel de criar condições para explicitar que a ação espontânea tende a manter-se coerente com a consciência disponível que a intenciona e que “a consciência teórica, se não se tornar prática, nunca será transformadora” de si mesma (Benincá, 2010, p. 29). Essa transformação em ação intencionada de modo consciente somente é possível pelo esforço sistemático demandado por uma metodologia adequada, o tempo necessário para seu exercício e as condições para tal no grupo de pesquisa concebido como comunidade de diálogo.
3 O MÉTODO DA PRÁXIS, A FORMAÇÃO CONTINUADA DO PESQUISADOR E O PAPEL FORMATIVO DO GRUPO DE PESQUISA
Benincá não se dedicou a tematizar, de modo específico, o “como” formar pesquisadores. Além disso, mesmo que ele não tenha escrito sobre esse aspecto de sua pedagogia, pode-se depreender inequivocamente uma práxis de formação nessa direção. Entre outros, três requisitos podem ser destacados ao se pensar tal formação enquanto formação em comunidade de diálogo, a saber: o método, a formação continuada e o grupo de pesquisa.
Um primeiro aspecto a considerar em Benincá é a inseparabilidade entre autoformação e formação coletiva do e no grupo de pesquisa. Sob o enfoque de um “método da práxis”, é a própria prática, seja pedagógica ou de pesquisa, a referência primeira para haver processo de formação. Nesse sentido, embora nosso autor tenha, como objeto principal de estudo, a prática pedagógica, pode-se estender esse princípio também para a prática de pesquisa. Essa, tal como a prática pedagógica, também pode ser considerada, da perspectiva do método da práxis, “uma fonte permanente de conhecimentos” (Benincá, 2002, p. 104). Essa associação estreita entre um tipo e outro de prática pode ser buscada na forma proposta de investigação da prática pedagógica na medida em que a pesquisa sobre ela não visaria apenas a produção de conhecimentos, mas também a qualificação do professor. Aqui, a prática pedagógica e a prática de pesquisa, bem como o docente e o pesquisador, já não se separam, pois a unidade entre elas é fornecida pelo princípio formativo da investigação da própria prática.
Um segundo aspecto é aquilo que pode ser denominado de caráter autorreflexivo da formação continuada do pesquisador. Se tomada de forma autorreflexiva — e não apenas como objeto de pesquisa —, a própria prática de pesquisa teria de possibilitar a qualificação do professor-pesquisador. A reflexão ou a investigação de sua prática possibilitaria não apenas sua permanente atualização, mas, também, sua constante autotransformação como pesquisador. O avanço do pesquisador, em termos de domínio de conhecimento específico e de experiência, precisaria converter-se também em formação continuada (qualificada e autorreflexiva). Essa forma de entender a formação do pesquisador exige método. Como referimos, Benincá o denominou de “método da práxis”, visto que assume um papel central na compreensão, sistematização e orientação da prática pedagógica, assim como também da de pesquisa, pois, do contrário, seria impossível que tais práticas ocorressem de maneira orgânica ao invés de espontânea. Se fossem a prática pedagógica e a prática de pesquisa imersas no espontaneísmo, não seriam práxis, nem assumiriam um caráter formativo e autoformativo.
Nesse sentido, argumenta Benincá, “o método da práxis pedagógica é um método de autoformação e de trabalho coletivo. (...) Trata-se de um processo metódico de observação da prática, esta registrada e refletida de forma sistemática” (2002, p. 104). Esse argumento possibilita, ao autor, ampliar o método da práxis da esfera da prática docente para a da prática da pesquisa: “o processo de investigação atua também sobre o professor pesquisador, de forma que, à medida em que ele investiga sua prática, transforma-se, significando que o método requer do investigador a formação de atitudes, e não apenas a produção de conhecimentos” (2002, p. 105). É em razão da permanente investigação da própria prática e a exigência da formação de atitudes que ela assume um caráter autorreflexivo e formativo, ou seja, autoconsciente e transformador do próprio pesquisador.
O grupo de pesquisa sempre teve um papel central na forma benincaniana de compreender a prática de pesquisa em sua dimensão formativa e autoformativa. Sua indicação a esse respeito é bastante explícita: “o método da práxis pedagógica é um método de autoformação e de trabalho coletivo” (Benincá, 2002, p. 104). Um olhar sobre sua forma de compreender o método no exercício de pesquisa auxilia a tornar essa dimensão mais clara.[1] Dois aspectos são centrais. O primeiro é o exercício do método mediante a “observação documentada”. A própria metodologia de pesquisa, entendida como método da práxis, é estruturada de maneira que se envolva sistematicamente o grupo na prática de pesquisa. Nesse sentido, professores e alunos pesquisadores observam sua ação pedagógica e é na sessão de estudos em grupo que uma espécie de primeira fase de validação da investigação mediante à narração dos registros individuais. O grupo é locus tanto da busca de avanço em termos de pesquisa quanto de formação continuada pelo exercício do método. Esse é circular e aberto e, ao mesmo tempo, exigente e envolvente do grupo por inteiro mediante seu exercício.
Sua sistemática traduz todos esses aspectos. Inicia-se pela (a) observação da própria prática que é registrada e (b) levada à narração dos registros sobre esta no grupo. Após a narração, o grupo busca (c) sistematizar as observações, organizando-as por semelhança e significação. O passo seguinte (d), caso seja constatada a necessidade de novas análises, consiste no retorno à observação sistemática de determinados indicativos (núcleos oriundos da observação inicial). Quando esses forem suficientemente evidentes, (e) procede-se à análise com recurso à teoria, e os critérios para tal advêm de quatro fontes, a saber: “dos objetos da investigação pedagógica, da teoria que fundamenta a metodologia, da metodologia enquanto ação transformadora e da realidade a ser transformada pela ação metodológica em direção aos objetivos” (2010, p. 33). Desse passo, decorre (f) a busca de superação dos problemas identificados com a formulação de hipóteses mediante as quais “retorna-se à prática pedagógica com a proposta de modificar a ação”. Todavia, o processo de observação não se esgota aí, pois podem ser mantidos em observação determinados indicativos e observar-se outros novos. Desse modo, “reencaminhada a ação, retoma-se a observação, e o processo é refeito” (2010, p. 33). As sessões de estudo são documentadas mediante relatórios e publicadas na forma de textos sem nunca terem a pretensão de esgotar o processo realizado.
Por fim, outro aspecto que assinala a importância da abertura do grupo, em relação às complexidades colocadas pela compreensão teórica da investigação, é o recurso a assessorias externas a ele. A abertura do grupo tem o sentido epistemológico e hermenêutico de estar sempre atento e disponível para reiniciar o processo todo, assim como de, sempre que necessário, ampliar sua perspectiva de investigação com o auxílio de outros pesquisadores. Essa forma de compreender o método e a centralidade do papel do grupo de pesquisa permite explicitar o sentido formativo tanto de um quanto de outro. O do primeiro reside em capacitar o pesquisador a assumir uma postura sistemática em relação a sua própria prática e, pois, a si mesmo. Como afirma Benincá a esse respeito, “o professor-pesquisador é o observador de si mesmo; é o observador, mas, simultaneamente, é o objeto de observação enquanto relação” (2010, p. 31). O papel do grupo, entre outros aspectos, constitui-se como instância de validação primeira do conhecimento, exercício paciencioso e sistemático do método da práxis e de transformação permanente dos próprios pesquisadores, na medida em que é assumida uma condução responsável e solidária em relação ao objeto e ao método da pesquisa.
4 À GUISA DE CONCLUSÃO: A PRÁXIS DIALÓGICA DE PESQUISA EM BENINCÁ E A FORMAÇÃO DAS NOVAS GERAÇÕES
A práxis dialógica certamente é um dos traços que melhor caracteriza o pensamento, as ações e o testemunho de vida do mestre Elli Benincá. Quem conviveu de forma mais próxima, ou quem teve o privilégio de ter sido seu aluno ou companheiro de jornada nos longos e valorosos anos do seu exercício docente e nas suas atividades pastorais, pode testemunhar como o exercício do diálogo marcava não só sua forma de ensinar, mas principalmente seu modo de ser. Influenciado pela tradição filosófica que ele bem conhecia e pelo pensamento pedagógico crítico, de tradição freireana, soube, como poucos, articular, de forma lúcida e propositiva, tal tradição para o campo educacional em que se envolveu por quase cinco décadas.
Em diversos escritos, Benincá (2010; 2010a; 2002; 2011) reafirmou sua convicção de que o diálogo não é somente uma estratégia pedagógica, mas primordialmente constitui um princípio educativo. Essa convicção se tornou importante ao longo de sua trajetória de professor e formador, conforme ressalta em um dos seus textos quando diz que “o dialógico” não pode ser tomado como sinônimo de “pedagógico”, assim como não se pode simplesmente fazer jogos de inversão dizendo que, assim como “o diálogo é pedagógico, a pedagogia seria também dialógica” (Benincá, 2010, p. 180). Como já referido em outro texto, Benincá possuía, como ninguém, uma imensa capacidade de transformar as dificuldades em potencialidades de estudo e de escrita” (Fávero, 2022, p. 273). Conviver com Benincá possibilitou a vivência do diálogo vivo, pois seus posicionamentos, seus ensinamentos, suas práticas de coordenação e, principalmente seu modo de vida, foram testemunhos de um diálogo formativo intenso que contagiou muitos e deixou muitos legados.
Um dos legados da pedagogia benincaniana para as novas gerações reside em ter mostrado que o diálogo, assim como também a escuta, demandam a constituição de uma “postura” de educador e de pesquisador ou, mais precisamente, de educador-pesquisador. Em sentido fenomenológico-hermenêutico, essa exigência como modo de ser e como exercício permanente de si, implica tanto um modo de ser pessoal do docente-pesquisador quanto em uma perspectiva ético-formativa, um methodos e um ethos que permitem unir o sujeito docente como pessoa e como educador. Esse modo de ser do docente-pesquisador precisa constituir-se mediante dimensões como (a) a exigência da formação docente permanente, (b) o compromisso e a responsabilidade com a preparação prévia de todas as atividades docentes, (c) o diálogo e o respeito em relação ao educando e aos pares, (d) o trabalho em grupo como princípio, (e) o compromisso do educador com o Projeto político-pedagógico, (f) o envolvimento com processo de planejamento participativo, (g) o engajamento cooperativo e solidário na ação pedagógica, (h) a ação avaliação das práticas pedagógicas e do Projeto político pedagógico, e, (i) o exercício do poder como serviço ao outro (Cenci; Casagranda, 2022, p. 288).
Referências
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