Pastore Tedesco Sobre a complexidade do Papa Bento XVI 1
DOI: https://doi.org/10.52451/jda1h270
Recebido em 01/04/2024
Aprovado em 20/08/2024
Sacerdote, professor universitário e companheiro de longa data de Joseph Ratzinger/Papa Bento XVI. De 1972 a 1978 foi professor de dogmática na Universidade de Bochum. De 1978 a 1998 foi professor titular de dogmática e história do dogma na Faculdade Teológica Católica da Universidade de Regensburg, ambas da Alemanha. Tem uma ampla gama de livros e artigos publicados em alemão e em outros idiomas na área de dogmática e eclesiologia. Email: profbeinert@web.de.
Tradução do alemão: Monika Ottermann
Graduada em Administração Pública pelo Instituto de Ensinos Administrativos da Cidade de Düsseldorf e em Teologia pela Universidade de Würzburg. Doutora e Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Assessora do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos), ex-sócia da Nhanduti Editora, membro da ABIB (Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica) e da RIBLA (Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana). Email: monicacebi@uol.com.br
Os lendários encontros do “círculo de alunos” com Bento XVI em Castel Gandolfo foram essencialmente seminários avançados com as características distintivas de: brevidade e orientação pelo Prof. Dr. Papa. No final, porém, sempre havia uma meia horinha em que o professor virou amigo e abria uma pequena janela sobre seus pensamentos pessoais. Em 2009, pouco antes do encontro, ele havia realizado a sua primeira viagem à África. Um furacão estourou na imprensa mundial: ele havia novamente afirmado que a Igreja estava proibindo absolutamente as camisinhas, mesmo diante da ameaça altamente perigosa da AIDS no Continente Negro. Foi isso que ele agora contou aos alunos. E, de repente, sua cabeça caiu sobre o peito. Ele murmurou, quase inaudível: “Mas nesse tipo de situações talvez não dê sem preservativos”.
I.
Para mim, aquele momento revelou, sem véu, a personalidade de Joseph Ratzinger – Ratzinger in a nutshell. Há o pensador perspicaz e de claras análises, o pastor de almas carinhoso para com as pessoas necessitadas, o avaliador sóbrio. E há também o defensor impiedoso da posição magistral que, desde que o Papa Pio XI publicasse a Encíclica Casti connubii, foi defendida sem recuos até o seu antecessor João Paulo II, o verdadeiro autor da Encíclica Humanae vitae publicada pelo Papa Paulo VI em 1968, e agora também foi defendida por ele – sem enfrentar de forma realista a fraqueza da posição que já havia se tornado visível.
Este paradoxo, este caráter contraditório de posições, tem se mostrado frequente e abertamente desde que ele assumiu a responsabilidade em nível da Igreja universal – primeiro como prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, depois como summus pontifex. Por um lado, havia a preocupação com a fé das pessoas tipo “gente pequena”, como ele sempre as chamava, a bondade sincera com que conseguia tratar as pessoas, mas por outro lado, havia também um tradicionalismo rígido que pouco se preocupava com as reais preocupações destas mesmas pessoas; havia também a dureza com que ele destruiu muitas existências teológicas através das suas sanções de magistério. A lista poderia continuar dando numerosos exemplos. Talvez tenham razão aqueles italianos que lhe deram o apelido de pastore tedesco, pastor alemão, no sentido de um agente de pastoral da Alemanha, mas também no sentido daquele cão de guarda. Ele foi ambas as coisas.
Mas como se explica esta simultaneidade das incompatibilidades? Esta não é absolutamente uma pergunta acadêmica. Desde 1981, quando Ratzinger, como chefe da Congregação Romana para a Doutrina da Fé, começou a definir a linha teológica do papa polaco, ele ocupou uma posição relevante para a história da Igreja, a partir da qual ele – nolens volens – devia ter uma influência duradoura e marcante primeiramente sobre o destino da comunidade de fé contemporânea, mas igualmente da Igreja futura. Quem era ele, e o que ele realizou? A resposta a estas perguntas é também a resposta à pergunta sobre o que pode e vai persistir desta pessoa, deste pontífice.
Nesse sentido devemos primeiro olhar para a sua biografia. O filho de um policial da cidadezinha de Markl am Inn absorveu com o leite materno valores como a confiança fácil, a honestidade profunda, as formas da antiga piedade bávara – tudo isso podendo ser resumido como ingenuidade no sentido original da palavra, ou seja, como originalidade, integridade, boas intenções. Isto também incluía uma ampla generosidade ao lidar com desvios da própria posição. Ainda iria se mostrar que isso era tudo menos uma atitude de anything goes. Ratzinger permaneceu fiel à condição fundamental do seu ser. Ele sempre insistiu nisso. No entanto, posteriormente, essa condição levou a decisões, principalmente na política de nomeações, que se revelaram contraproducentes para os seus objetivos reais. E ela está também por trás do paradoxo que identificamos como característica de Ratzinger.
Durante a sua formação universitária em Freising e Munique, ele nunca teve verdadeiro contato com a teologia dominante da época, a neoescolástica tal como era ensinada nas universidades romanas, mas também não com as discussões filosóficas modernas que também não foram abordadas em Roma. Em vez disso, foi fortemente atraído pela teologia dos primórdios que não começou com Tomás de Aquino, mas com os Padres da Igreja do primeiro período pós-bíblico. Mais especificamente, ficou fascinado por Agostinho, com quem tinha certas semelhanças: poder de pensamento, horizonte amplo, responsabilidade episcopal, rigor contra quem pensava diferente e paixão pastoral. Juntamente com a ideologia do Bispo de Hipona, ele também absorveu seu platonismo de vertente cristã, ou seja, o filosofar e teologizar de forma dualista, idealista e requintada.
Por isso, para muitos contemporâneos, Ratzinger parecia um ser de outro planeta que, de alguma forma, avaliou mal os problemas do nosso planeta. Ele também partilhava o foco de Agostinho na eclesiologia – mas a Igreja sobre a qual ambos refletiram não era a Igreja do século XX, sujeita a muitas tempestades. “Igreja” era acima de tudo: hierarquia, infalibilidade, regime clerical. Significativamente, em sua extensa obra, os leigos quase não aparecem. O índice da bibliografia editada por Vinzenz Pfnür lista 9 documentos, mas nenhuma dessas obras trata deles in recto, mas apenas (e às vezes muito) in obliquo. O verbete Bischof (bispo; com derivações), em comparação, possui 53 entradas, incluindo muitas de tratados diretos sobre o tema. Nesta luz, as tão invocadas pessoas do tipo “gente pequena” aparecem mais como objetos de cuidados paternalistas do que como sujeitos eclesiais independentes que possuem o sacerdócio comum e o sensus fidelium como fundamentos da fé. Pelo menos foi isso que sugeriu o Concílio Vaticano II.
No entanto, aquela assembleia eclesial é um marco importante na vida de Joseph Ratzinger. Depois da sua tese de doutorado sobre a doutrina da Igreja em Agostinho (Volk und Haus Gottes, Povo e Casa de Deus, 1953), ele foi rapidamente nomeado para a sua primeira cátedra universitária: em 1954, aos 27 anos – um adolescente teológico, como Michael Schmaus mais tarde observou com certa maldade. Em 1959, o Papa João XXIII anunciou o Concílio, e no mesmo ano, Ratzinger assumiu a cátedra de teologia fundamental em Bonn. Sua reputação de professor brilhante havia se espalhado rapidamente, chegando também ao Cardeal Frings, o pastor supremo responsável por Bonn.
Assim, quando a assembleia eclesial finalmente começou em 1962, Frings o levou consigo para Roma como perito do conselho (peritus). O jovem professor e o idoso bispo estavam em sintonia, apoiando o lema do Papa: aggiornamento – a Igreja só pode fazer justiça à sua tarefa se estiver na altura das correntes de pensamento da época. O cardeal de Colônia estava quase cego. Ele mandou o seu perito escrever em latim os discursos que queria proferir no auditório, decorou-os e os recitou – e juntamente com o Cardeal Liénart de Lille, ele mudou fundamental e revolucionariamente a situação conciliar. Em última análise, é Ratzinger a quem a Igreja tem a agradecer (ou, dependendo da perspectiva, a culpar) pelo fato de o Vaticano II ter-se tornado o impulso para reformas radicais. Ratzinger contribuiu com ideias essenciais, especialmente para os documentos concernentes à Igreja. Afinal, era ali que residiam seus conhecimentos especiais. Em particular, defendeu uma maior independência do episcopado em relação ao primado.
II.
As faculdades alemãs começaram a competir pelo brilhante teólogo. 1963-1966 Münster, professor titular de dogmática e história do dogma. Em 1966, a partir do segundo semestre, chamado para a universidade de Tübingen, altamente conceituada, embora a sua reputação fosse ligeiramente prejudicada. Muitos colegas da faculdade nem o queriam. Mas outro jovem professor colocou na balança todo o seu peso científico, igualmente considerável. Seu nome: Hans Küng. Sua intenção: os estudantes deveriam conhecer o maior número possível de posições teológicas, não apenas as do suíço. E Ratzinger veio.
Mas a sua hora fatídica estava se aproximando. Em 1967, ele era reitor e organizou o 150º aniversário do retorno da faculdade católica ao rio Neckar (ela havia sido transferida por certo tempo para Ellwangen). Não se esperava que ele o conseguisse, mas com a habilidade de um prefeito de Munique [no Oktoberfest], ele abriu o barril de cerveja da festa – como se nunca tivesse feito outra coisa. Mas, sem ninguém o conseguisse imaginar, a antiga glória universitária já estava chegando ao fim. Aproximava-se o ano decisivo de 1968, um ano que se tornou um sinônimo do colapso da estrutura mundial estabelecida. As tropas do Pacto de Varsóvia ocuparam Praga e, involuntariamente e sem saber, provocaram o fim do Império Soviético. O papa Paulo VI publicou Humanae vitae e iniciou a ruptura com a ordem eclesial absolutista que havia se tornado dominante desde o Concílio Vaticano I (1869/70).
E houve a revolução estudantil que especialmente em Tübingen se manifestou em todo o seu radicalismo. Durante anos, os estudantes haviam pedido educadamente uma renovação das incrustadas estruturas universitárias. Finalmente, não aguentaram mais. Com atitude revolucionária, expuseram os discursos de poder dos professores. Toda autoridade era questionada criticamente e, se necessário, derrubada. A crítica às instituições torna-se um princípio. Liberdade e igualdade para todos, autorrealização e tornar-se sujeito são os slogans com os quais as fortalezas do establishment são atacadas. Olhando bem, os estudantes são movidos pelo mesmo impulso que a maioria dos padres conciliares. Aggiornamento. Mas que diferença na sua implementação!
Hoje quase não conseguimos imaginar como era a posição de um professor catedrático alemão na universidade. Com um quê de exagero podemos dizer: ele tinha uma dignidade quase divina, de facto infalível, inegavelmente quase onipotente. Mas agora os/as estudantes gritavam: “Debaixo das togas, o mofo de mil anos”. Deitaram-se nos degraus da escadaria que levava aos escritórios dos professores, silenciaram os professores aos gritos nos auditórios, humilharam-nos de todas as maneiras imagináveis.
Para o dogmático bávaro sensível, de nervos delicados, corpo frágil e comprometido com a ordem estética, isso foi um puro apocalipse. “Vi a face cruel dessa piedade ateísta”, observa ele em suas memórias. Enquanto seu colega Küng tenta compreender as reais preocupações dessa juventude, Ratzinger foge. Na nova faculdade teológica de Regensburg ainda havia uma cátedra vaga que, originalmente, deveria ser preenchida com um especialista em judaísmo. Agora foi modificada para ser a segunda cátedra de dogmática – produzindo o orgulho de poder oferecer asilo ao famoso jovem teólogo. Ele parecia salvo! Foi no ano 1969.
Até aqui a situação exterior. Para Joseph Ratzinger, ela foi o impulso para uma reorientação completa do seu pensar e agir. Não foram apenas as mudanças na fachada que o preocuparam. Ele ficou atormentado pela ideia de que ele próprio, com o seu liberalismo, tinha dado uma contribuição significativa para a revolução, embora não detestasse nada tanto como esta. Em todo o caso, desde então ele se viu com o dever de reparar, ou seja, de defender resolutamente as coisas antigas, a ordem pré-conciliar in genere et in singulari, em suma, o que ele sempre havia vivido e ensinado na tradicionalidade bávara.
Como mencionado, ele sempre dizia enfaticamente que não havia mudado em Tübingen, como muitas vezes as pessoas tentavam provar com citações comparativas de tendências contraditórias. Mas a realidade era um pouco diferente. Correto é: ele continuava entendendo a fé católica como um espaço grande e amplo. Quem se movia “dentro” dele podia contar com a sua tolerância. Não lhe importava se alguém agia na extrema direita ou na extrema esquerda, desde que os limites desse espaço não fossem violados. Esta atitude também o dominou depois de Tübingen – na verdade, neste aspecto, ele nunca mudou. Apenas acontece que o espaço para a tolerância ficou reduzido.
As marcações delimitadoras haviam mudado, e as novas foram reforçadas com muros altos. De repente, teólogos que sempre estiveram “dentro” estavam “fora”. E ali foram duramente atingidos pela espada de Ratzinger: Johann Baptist Metz, Edward Schillebeeck, o colega Küng e muitos outros. Agora, a espada já não consistia em meras palavras, mas na quase absoluta potestas do supremo guardião da fé no Vaticano. O bom pastor tornou-se o cão pastor que trabalhava incansavelmente para apoiar o seu mestre, o também tradicionalista João Paulo II. O homem que podia mostrar tanta bondade cordial transbordante tornou-se o “Cardeal Tanque”.
Quando sucedeu ao papa polaco em 19 de abril de 2005, Ratzinger deu continuidade ao antigo programa com novo poder. Até 1968, ele havia sido bastante crítico em relação a Roma e cético quanto à abundância de poder do sumo pontífice conforme a definição pelo Vaticano I. Mas agora, justamente essa abundância lhe parecia ser a única garantia real da preservação da substância da Igreja Romana. Isto estava associado a uma atitude reservada em relação ao ecumenismo. Em geral, ele o afirmou: poucas pessoas sabem que a famosa declaração de convergência sobre a doutrina da justificação de Augsburg (1999) não teria acontecido, até o último minuto, sem o seu engajamento. Mas ele também é o autor do documento Dominus Jesus do ano 2000, no qual insiste com palavras ásperas na reivindicação de a “Igreja do Papa” ter um direito exclusivo e sobretudo nega às comunidades eclesiásticas da Reforma qualquer real significado eclesiológico.
Em 1968 ele havia, por assim dizer, mudado de faixa na estrada. De modelador teológico do Concílio Vaticano II reformador, ele agora está se tornando – para dizê-lo muito, muito suavemente – um acompanhante crítico. Como pontífice, ele se insere conscientemente na longa linha dos partisanos do Vaticano I. Ele criticou o espírito aberto da assembleia eclesiástica de 1962/65, inicialmente com cautela, depois de forma cada vez mais direta. Isto pode ser demonstrado muito bem, por exemplo, pela sua atitude em relação ao primeiro documento aprovado pelo Vaticano II, a Constituição sobre a Liturgia Sacrosanctum concilium.
Desde o início, Ratzinger viu com reserva a reforma ali iniciada. Seu senso estético desempenhou um papel bastante significante: ela não era mais bonita, parecia-lhe banal: “A liturgia tem […] uma ligação intrínseca com a beleza”, diz a Carta Pós-sinodal Sacramentum unitatis de 2007. Mas o novo desenho é um “escurecimento de Deus”, a extinção do “brilho da verdade”, acrescenta ele no prefácio da edição russa do Volume 11 dos “Escritos Coletados”. Isto também pode explicar a excessiva indulgência para com os Irmãos de Pio que rejeitam a reforma litúrgica radicalmente. Ele abole quase todas as restrições em relação a eles. Declara a missa tridentina um “rito extraordinário” e a missa vaticana o “rito ordinário”. Segundo o dicionário alemão Duden, a palavra extraordinário [ausserordentlich] tem dois significados: pode significar desviante do habitual (“uma situação extraordinária”) e também indo além do habitual, sendo excepcional (“um talento extraordinário”). Que importância teve esta medida para o papa? De qualquer forma, ele ficou muito triste quando o seu sucessor a revogou em 2021.
III.
Penso que a tentativa de analisar o carácter de Ratzinger nos levou naturalmente à pergunta pelo significado duradouro do seu mandato. O mais tardar, com as investigações no contexto do escândalo dos abusos ficou bem claro que a Igreja Católica Romana sofre de déficits sistêmicos. Na maioria dos casos, os/as perpetradores/as não eram monstros sexuais. Antes, seu interesse era manter o poder e a demonstração de poder através daquela atitude que o Papa Francisco chama de “clericalismo”, ou seja, humilhar as pessoas leigas que são vistas como súditos, como gente pequena (em todos os aspectos).
Além disso, estudos afins destacaram com a mesma clareza que esta atitude, na realidade, só foi gerada no Concílio de 1869/70. Nele se tratava de uma demonstração de poder inédita da Igreja contra os crescentes poderes e forças seculares. Todo o poder da Igreja estava agora concentrado numa única pessoa, e esta precisava agora fazer de tudo para manter este poder. No interior da Igreja, isso resultou numa intransigência doutrinária e disciplinar por parte dos detentores de cargos em todos os níveis.
A longa sombra do Concílio Vaticano I também paira sobre o mandato de Bento XVI. Seu idealismo platônico, sua piedade singela, sua confiança ingênua e não crítica, sua ampla falta de conhecimento dos panos de fundo das tendências atuais impediram que o poder analítico do seu pensamento, seu brilhantismo teológico e o confronto oficial com muitas formas de pensamento ganhassem vantagem. Ele poderia ter iniciado poderosamente aquela virada que – e isso parece cada vez mais claro – é inevitável para a existência da comunidade de fé. A contradição na sua natureza impediu isso e acabou por levá-lo ao fracasso.
Podemos dizer: Ratzinger/Bento é uma figura trágica kat’exochen. Talvez a sua verdadeira vocação tenha residido no estudo da teologia – algo para o qual, olhando bem de perto, ele nunca teve tempo verdadeiramente. A maioria de seus escritos pós-qualificação são escritos ocasionais; obras estritamente científicas são muito raras na sua bibliografia. Desde o início, ele foi sobrecarregado com muitas outras tarefas no serviço à Igreja, especialmente aquela para a qual ele não estava realmente preparado: exercer liderança. Que tesouros teológicos perdemos por causa disso? Talvez uma análise epocal sobre o tema “fé e razão” que o preocupou desde o seu tempo em Bonn, mas que nunca foi tratado de forma abrangente.
Mas será que ele realmente fracassou? O fator determinante final é a honestidade ingênua (no melhor sentido) da sua natureza. Ela o fez tomar a decisão que, sem dúvida, ficará nos livros de história. Quando ele viu que lhe faltavam as forças para governar pra valer, ele saiu da sua missão. Isto pode ser dito com certeza, mesmo que não esteja totalmente claro quais eventos e ocorrências de facto o motivaram a fazê-lo. Contudo, não devemos ignorar que isso exigiu uma coragem inimaginável para a maioria das pessoas.
O último papa antes dele que renunciou (mais ou menos) voluntariamente ao cargo foi em 1294 Celestino V, o ingênuo eremita Pietro da Morrone da Serra dos Abruzos. Seu mandato durou seis meses. Seis anos depois, Dante descreve a viagem ao além, dentro da sua Divina Comédia, escrita entre 1307 e 1320, poucos anos após a morte de Celestino (1296 em Fumone). O poeta encontra o papa abdicado no inferno. No inferno? Sim, porque ele foi “colui che fece per viltà il gran rifiuto” (Inf. 3,59s), ou seja, aquele “que covardemente rejeitou a grande missão” (conforme tradução alemã por Karl Vossler).
Este veredicto do grande poeta nunca foi completamente esquecido – nem mesmo na hora da renúncia de Ratzinger. O ex-secretário de João Paulo II e posterior cardeal-arcebispo de Cracóvia (nomeado por Bento XVI), Stanislaw Dziwisz, não resistiu em afirmar: Jesus também não teria descido da cruz. Il gran rifiuto – Bento XVI conhecia muito bem esta associação. Mas ele não se deixou confundir.
Então, o que permanecerá deste cristão que era grande em todas as coisas? Neste momento, isso está longe de poder ser dito de forma definitiva. A história de impacto de uma personalidade inclui sempre também a história posterior que, neste caso, mal começou. No entanto, podemos fornecer algumas peças do quebra-cabeça que são permanentemente válidas e por isso também pertencem à imagem final. Em todo caso, uma dessas peças é a decisão de 2013 que, aliás, possui a sua própria ironia.
Justamente o homem que durante quase meio século foi protagonista do pensamento de 1870, que naqueles anos destacou incansavelmente a sublimidade e a excelência do ofício de Pedro, justamente este homem desencantou e desmistificou o papa. Na órbita do Concílio Vaticano I, o Te Deum foi reformulado: “Te papam laudamus, te Dominum confitemur – Grande Papa, nós te louvamos...” O bispo de Roma é igual a Deus. Era isso que parecia ser genuinamente católico! A partir de agora, porém, o pontífice é uma pessoa que pode fracassar, que pode ficar sobrecarregada, que não pode mais esconder nenhuma dimensão da fragilidade. Isto traz grandes benefícios para a Igreja. O papa pode assumir o que é – ele não depende nem de eminências cinzentas nem precisa assumir o fardo de encobrir doenças e declínio. Com isso, ele se coloca a serviço daquela veracidade que a Igreja perdeu em grande parte na turbulência das últimas décadas.
Visto dessa maneira, Bento XVI rompeu uma vez por todas com as correntes desastrosas do papalismo moderno e abriu novas perspectivas para o ministério petrino. Em comparação com esta decisão, muitas das outras decisões benéficas do seu mandato passam ao segundo plano. No entanto, não deveríamos deixar de mencionar um pacote de medidas: são as três encíclicas sobre as chamadas virtudes divinas fé, esperança, amor. Especialmente a primeira com o título Deus caritas est do Natal de 2005 – a sua encíclica inaugural, na qual os papas geralmente esboçam uma espécie de programa para o seu mandato. Sob este título, ele homenageia, como nenhum documento comparável o fez antes, não apenas o amor espiritual ágape, mas também expressamente o eros físico. Isso jamais havia acontecido dessa forma.
IV.
E uma última coisa: uma decisão completamente esquecida, mas muito significativa. Em 2007 ele declarou que o limbus puerorum, o paradeiro no além das crianças que morreram sem ser batizadas e que durante séculos foi visto como dogmático, era apenas uma opinião doutrinária não vinculativa. Esta decisão tem consequências significativas para a compreensão do desenvolvimento doutrinário dogmático na Igreja, um principal ponto de discórdia na discussão atual dentro da Igreja, por exemplo, no âmbito do Caminho Sinodal.
Ratzinger viveu ainda quase uma década após o seu mandato. Esse tempo não foi agraciado pelo sol de fim de tarde depois de um longo dia de trabalho. Também aqui, apenas dois exemplos. Por um lado, círculos conservador-tradicionalistas tentaram repetidamente utilizar o emérito para os seus próprios interesses. Nem sempre, ele resistiu, e com isso, certamente não com intenção consciente, comprometeu a agenda do seu sucessor. As declarações de ambos de que nem uma folha de papel caberia entre eles pouco conseguiram mudar os fatos.
Neste contexto, o hábito exterior de Bento XVI também parece irritante: pelo menos as mentes simples não conseguiam evitar a impressão de que, em última instância, havia dois papas. O secretário Gänswein alimentou isso quando afirmou, pouco iluminado, que simplesmente haveria um papa para o espiritual – Ratzinger – e outro para o trabalho pesado – Francisco. O Vaticano deveria adoptar urgentemente um regulamento que orienta o estilo de vida de um pontífice resignado.
O segundo exemplo é a lida com as infelizes acusações de abuso. O que pessoas às vezes gostam de esquecer: Bento XVI foi o primeiro representante eclesiástico de alto escalão a tomar uma posição decisiva e robusta contra as anteriores tácticas eclesiásticas de encobrimento e minimização. Em 2001, ainda sob a sua égide como o mais alto guardião da fé, a Congregação para a Doutrina da Fé publicou um vademecum para a lida com os abusos: todos os casos não deviam mais ser tratados e decididos em nível diocesano, mas em nível do Vaticano. Os prazos prescricionais também foram prorrogados. Em 2010, como papa, ele tornou os regulamentos mais rígidos e voltou a prorrogar os prazos. Mesmo assim, a acusação massiva de que ele mesmo encobriu casos durante o seu tempo como arcebispo de Munique e Freising o assombrou até os seus últimos dias. Ele morreu como réu num processo civil iniciado em Traunstein. Apesar de sua morte, isso ainda não acabou, e novas acusações já surgiram.
Ratzinger foi, em suma, uma figura altamente significativa, mas também profundamente trágica. No final, as suas forças físicas diminuíram rapidamente – a vista, a audição, a fala, a mobilidade. A morte o tomou em suas mãos redentoras em 31 de dezembro de 2022. Era a festa do Papa Silvestre I, cuja característica eram o medo e a ansiedade (afrescos na capela de São Silvestre da igreja romana dos Quatro Santos Coroados). Na véspera da festa de Epifania de 2023, festa da aparição da glória do Senhor, o papa emérito despediu-se do mundo na Praça de São Pedro com um réquiem conduzido pelo seu sucessor marcado por traços de declínio. Foi uma liturgia completamente nova, com a qual o guardião do antigo foi entregue à misericórdia daquele que dissera: “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5).