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profecia é dada às pessoas. Neste capítulo de Ezequiel, a profecia é dada aos ossos secos e
depois, Deus manda dizê-la ao Espírito e o denomina “Espírito dos quatro ventos”. Isaías
tinha se referido aos sete espíritos ou dons do mesmo Espírito (Is 11,2). O A poc ali pse
falará nos se t e Espíritos d e Deus (Ap 1,4). Em um texto escrito para uma obra coletiva
publicada na Itália, o teólogo irlandês Diarmuid O’Murchu afirma que, com os aborígenes
australianos e c om os nativos da Nova Zelândia aprendeu que o “Grande Espírito” e os
Espíritos, adorados por alguns povos tradicionais, são expressões do mesmo Espírito que a
tradição bíblica chama de Ru ah Divina
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.
Neste momento de grave crise ecológica e ci vi li zac i onal, um desafio atual para as
Igrejas cristãs é não s ome nt e respeitar e dialogar com as tradições dos povos originários
(indígenas) e comunidades afrodescendentes, mas inserir-se e aprender com eles e elas
uma espiritualidade cósmica e da natureza qu e nos ajude a colaborar para o
reencantamento do mundo. No sul do México, Guatemala e alguns lugares da América
Central as etnias Maya iniciam cultos saudando o Espírito presente na s quatro direções do
mundo. Na cordilheira, povo s andinos fazem a “invocación à lassietedirecciones” (al este, al
norte, al oeste, al sur, el arriba, el abajo, el centro)
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. Do mesmo modo, é preciso ver nas
manifestações dos Orixás, dos Inqui ce s ou Voduns nas diversas formas de Candomblé,
Santeria, Umbanda e tradições afrodescendentes a mesma fonte comum, a Ruah Divina
que nos ch ama à profecia da vida.
É estranho que at é ao invocar o Espírito, Deus manda o profeta dizer para o Espírito
fazer reviver estes corpos mortos (o termo hebraico usado aí haruguin significa literalmente
“assassinados ou massacrados”). Então, os ossos secos de repente se tornaram símbolos de
resistência (osso é o que resta de mais duro em um corpo) e símbolos de um martírio coletivo.
Como não recordar aqui os mais de 30 mil irmãos e irmãs, mártires da caminhada
latino-americana, como pessoas assassinadas. Mas, o nú me ro de mártires vivos/as que
resistiram a perseguições e continuam o seu testemunho é bem maior.
Agora, o proc e ss o está concluído e os ossos formam um grande exército. No verso
11, a visão dá lugar à interpretação profética: “estes ossos são toda a casa de Is rael”. E aí como
no Êxodo do Egito, Deus mostra que escuta o grito e o lamento dos oprimidos . São como
que três queixas: A primeira é “Nossos ossos estão secos”. Os salmos contêm estas queixas:
“Minha vida se acaba em aflições... meu s ossos se consomem” (Sl 31,11). “Faze-me ouvir o júbilo e a
alegria e exultem estes ossos qu e trituraste” (Sl 51,10). A s e g u nda queixa ou lamentação é quase
final: “Ve’avedatikvaténu: nossa esperança acabou”. Por isso, os ossos estavam para além de
secos. A conclusão é a terceira lamentação: estamos perdidos. É a este tríplice grito que Deus
responde com a profec ia que vai do verso 12 a 14 do capítulo 37.
A linguagem lembra a do Êxodo. Lá Deus dizia: “Eu desci para fazer o povo subir” (Ex
3). Agora Deus diz: Eu vou descer até as vossas sepulturas para vos fazer sai r (fazer sair é o
mesmo verbo usado para o Êxodo). É estranho que durante toda a visão não se falou em
sepultura. Era vale aberto cheio de ossos. Aqu i o texto parece vir de outro contexto
literário e cult u ral, certamente posterior. Mu it os exegetas creem que os versos 12 e 1 3
foram acrescentados posteriormente ao te xto
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. Inclusive há quem veja na re daç ão destes
versos a influência de u m poema apocalíptico colocado no texto de Is aí as, mas que é
posterior ao exílio. Ali estava escrito: “Teus mortos reviverão, seus cadáveres vão se
levantar. Acordai para c ant ar, vós que dormis debaixo da terra” (Is 26,19).
5 Diarmuid O’Murchu, Orizzonti dello Spirito nel XXI secolo, In: A cura di Claudia FANTI e José Maria VIGIL, Il Cosmo
come rivelazione: Una nuova storia sacra per l’umanità, p.163-164.
6 RED DEL BUEN VIVIR, Eterno Deseo: Reflexiones para una eco-espiritualidad, p.19-20.
7 MAERTENS, Thierry e FRISQUE, J., Guia da Assembleia Cristã III. p.209.
BARROS, Marcelo.
A profeciada vida e dainsurreiçãono vale damorte: Uma leitura da pandemia a partir de Ezequiel37
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130, p. 86-94,Jan./Jun./2021. ISSN on-line: 2763-5201.