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A PROFECIA DA VIDA E DA
INSURREIÇÃO NO VALE
DA MORTE
Uma leitura da pandemia a partir de
Ezequiel 37
THE PROPHECY OF LIFE AND
INSURRECTION IN THE VA L L EY
OF DEATH
A pandemic Reading from
Ezekiel 37
Marcelo Barros*
Resumo: O presente texto se constitui em uma perspectiva de reflexão que
contempla profecia e pandemia no contexto atual. A pertinênc ia da reflexão
está em reinterpretar a profecia de Ezequiel 37, considerando a realidade
pandêmica e o descaso com a vida humana. A dimensão dos ossos secos
recoloca a perspectiva bíblica no chão da vida e confere à re al id ade de morte
densidade teológica. A profecia de Ezequiel reforça que os ossos e s tão mais
do que secos: bem ressequidos. Assim estava a vida do povo e a pergunta
será que esses ossos poderão reviver? O objetivo é relacionar pandemia com
a profecia, no sentido de retomar o fato de que viver a e a espiritualidade
judaico-cristã significa ouvir uma Palavra em situação de exílio como
aconteceu com Ezequiel e a responsabilidade do profeta é viver esta palavra
e ser capaz de comunicá-la pela vida aos seus irmãos e irmãs.
Palavras-chave: Ezequiel 37. Pandemia. Profecia.
Abstract: The present text constitutes a perspective of reflection that contemplates
prophecy and pandemic in the current context. The relevance of the reflection is to
reinterpret Ezekiel 37 prophecy, considering the pand e mi c reality and the neglect
of human life. The dimension of dry bones puts the bi bli cal perspective on the
ground of life and gives the reality of death theological density. Ezekiel's prophecy
reinforces that the bone s are more than dry: very dry. So was the life of the people
and then the question will be that these bones will be able to revive? The objective
is to relate pandemic to prophecy, in the sense of resuming the fact that living the
Judeo-Christian faith and spirituality means hearing a Word in exile as happened
with E ze ki e l and the prophet's re spon si bi li ty is to live this word and be able to
communicate it through life to his brothe rs and sisters.
Keywords: Ezekiel 37. Pandemic. Prophecy.
v. 38, n. 130, Passo Fundo,
p. 86-94, Jan./Jun./2021,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI: dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v38i130.46
* É monge beneditino e presbítero, teólogo e
biblista. Durante oito anos foi secretário do
arcebispo Dom Hélder Câmara para as
relações com as outras Igrejas e religiões. Foi
professor de Sagrada Escritura (Antigo
Testamento) do Seminário Teológico da
Arquidiocese de Goiânia de 1979 a 1984 e
professor de Liturgia no Curso de
Especialização de Liturgia da Faculdade
Nossa Senhora da Assunção em São Paulo de
1979 a 1987. É professor convidado do
CESEP (Centro Ecumênico de Serviços à
Evangelização e Pastoral) em São Paulo e de
diversos organismos pastorais e ecumênic os
em toda a América Latina. É assessor
nacional das Comunidades Eclesiais de Base e
da Comissão Pastoral da Te r ra. Atualmen te é
secretário latino-americano da Associação
Ecumênica dos Teólogos do Terceiro M u ndo
(ASETT) e um dos três t e ólog os que
compõem a Comissão Teológica da ASETT e
desenvolve uma pesquisa sobre a relação
entre Teologia da Libertação e Teologia do
Pluralismo Religi oso. Publicou 45 livros de
Exegese Bíblica, Teologia Ecumênica,
Liturgia e Espiritu ali dad e , além de colaborar
com várias obras coletivas.
E-mail: irmarcelobarros@uol.com.br
https://orcid.org/0000-0001-5712-0618
Recebido em 20/10/20
Aprovado em 14/01/21
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INTRODUÇÃO
Em décadas anteriores, Hollywood produziu filmes Epi de mi a ou Fora do Controle
(1995) e ainda Contato (2011), nos quais um vírus mortal punha em risco toda a
humanidade. Por mais que estes filmes parecessem pesadelos inimagináve i s no séc u lo XXI,
o que estamos vivendo em 2020 no Brasil e praticamente em to do o mundo veio mostrar
que a reali dad e ultrapas sou todos os exageros da fantasia cinematog ráf i ca.
Mais ainda do que a cifra numérica de pessoas mortas pela Covid 19 e dos milhõe s de
pessoas atingidas pelo vírus, é terrível ver que, em mu i t os países, a elite dominante e os
governos se revelam mais preocupados em garantir o lucro das empresas e a perpetuação
do sistema capitalista do que a própria se g u rid ade humana e a vida no planeta Terra. Ainda
bem q u e movime nt os sociai s se mobilizam para que esta crise gere algo de novo.
Pela ótica da fé, o Papa Francisco alerta: a vi da depois da pandemia não pode repetir
os valores de an te s . E não basta a vacina contra a Covid 1 9. Temos de banir para sempre o
vírus dos interesses egoíst as que levam a sociedade ao c ons u mo desenfreado e destruidor
da natu re z a
1
.
Para qu e m frequent a a Bíblia, este tempo de pandemia e suas consequê nc ia s
lembram um dos textos bíblicos mais famosos do Primeiro Testamento: a visão do profeta
Ezequiel no vale dos ossos secos (Ez 37,1-14). Convido vocês a fazermos uma leitura deste
texto, não tanto como estudo exegético. Devemos prestar atenção ao texto original e ao
seu contexto para não fazermos leitura fundame nt ali st a. No entanto, em uma leitura a
partir da fé, queremos principalmente, através da releitura de Ezequie l, ouvir o que o
Espírito diz, hoje, às Igrejas e ao mundo (Ap 2,5). O texto que segue aborda cinco aspectos.
A profecia em si t ua ção de cativeiro (1); Os diversos cativeiros e as dive rs as formas de
profecia (2); O contexto de Ezequiel 37 (3); Uma leitura de Ezequiel 37 a partir das nossas
dores (4); E agora, na nossa realidade de Igrejas e de mundo (5).
1 APROFECIA EM SITUAÇÃO DE CATIVEIRO
Historicamente, além dos dados que o próprio texto da Escritura nos fornece, temos
pouquíssimas informações sobre a pessoa e a vida do profeta Ezequiel. Como a maioria dos
escritos bíblicos, também o atual livro de Ezequie l teve redação comunitária. O texto atual
parece ter sido redigido em etapas diversas e progressivas dos séculos VI, V e talvez
mesmo IV a. C. No entanto, podemos situar a mi ss ão profética de Ezequiel no tempo da
invasão babilônica, da destruição de Jerusalém e do desterro de parte das famílias mais
importantes para o cati ve i ro na capital dos caldeus
2
.
Por respeit o às realidades históricas difere nte s , não devemos buscar semelhanças
diretas e n tre a época bíblica e a atual. No entanto, ao ler o texto em se u contexto e suas
relações, podemos nos deixar provocar por ele e pensar em nossa missão neste contexto
atual que não é em nada semelhante ao antigo cative ir o babilônico, mas, como naquela
época, é te mpo de crise sócio-polít ic a que traz grandes desafi os para a fé.
Ao contar miticamente um primeiro cativeiro dos hebreus no Egito antigo, o livro
do Êxodo dizia: Deus viu o sofrimento do povo e desceu para f azê - lo subir (Ex 3,1s). De
acordo com a Bíblia, Deus queria libertação, mand ou o povo s ai r para ser libertado, mas o
povo, aq ui e ali hesitava.
1 Papa FRANCESCO, La vita dopo la pandemia. Roma: Libreria Editr ic e Vaticana, 2020.
2 Alonso SCHOKEL e J. L. SICRE DIAZ, Profeta I. p.687-691.
BARROS, Marcelo.
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Revista Teopráxis,
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Essa situação se repetia. Ainda de acordo com a tradição bíblica, em 722 a.C, o reino
do Norte c aiu nas mãos dos assírios. Pouco mais de um século depois, o rein o de Judá é
destruído pelos babilônios.
Na época do cative iro da Babilônia, diante da destruição de Jerusalém e do Templo, a
do povo entrou em crise. De repente, tud o parecia revelar q u e Deus falhava e
descumpria a promessa que havia feito de sempre proteger Israel. Alguns profetas como
Jeremias explicavam que quem quebrou a aliança não foi Deus e sim o povo ao
desobedecer à s u a lei e não cuidar da justiça e do direito (Jr 7 e 2 6) . O cativeiro teria sido
consequência dos pecados do povo. Ao da let ra, o povo tinha caído no cativeiro c omo
castigo de Deus por cau sa dos seus pecados (Jr 25 e 29).
Na primeira parte de suas profecias, Ezequiel chama Jerusalém de prostituta e revela
que sua destruição é consequência do caminho que a sociedade tomou (por exemplo, Ez
5,5ss; 16; 21,33ss).
Uma leitura ao da letra di ri a que o povo adorava outros deuses e foi infiel à lei de
Deus. De forma mais profunda, se pode dizer que o próprio modelo de sociedade havia se
afastado do projeto de sociedade que a aliança proposta por Deus (aliança entre as pessoas,
baseada na ju st i ça e na solidariedade). Por isso, a estrutura política se tornava frágil.
No livro do profeta Ezequiel, mesmo esta análi s e sobre responsabilidade pessoal e
coletiva sobre a realidade sof re uma evolução. Aparentemente, o profeta que, no início,
repetia as pregações sobre o pecado do povo percebe que não deve mais usar este tipo de
argumento. Talvez porque, como o Deutero Isaías , percebeu que o povo havia recebido
de Deu s pena dupla ou castigo dobrado por todas as s u as faltas (Is 40,2).
É claro que ao falar em mão de Deus que castiga, os profetas ant ig os usavam imagens
antropomórficas para lembrar que, na base da aliança em Deus e com Deus havi a u m
projeto de sociedade baseada na justiça e no direito. Este projeto é violado quando a
sociedade se divide, enfraquece e se torna alvo fácil dos inimigos.
Naquele contexto, de acordo com o que lemos em seu livro, Ezequiel era um jovem,
filho e herdeiro do sacerdote Busi. As palavras de abertura do livro pode m ser
interpretadas no sentido de que ele teria 30 anos, quando foi chamado para se r profeta. Foi
exilado na Babilônia, em meio às famílias judaicas que vieram como escravas. Ali, ficou
sabendo que Jerusalém tinha s i do totalmente destruída. O templo não existia mais e ele
nunca teria oportunidade de exercer suas funções sacerdotais.
Por mais diferen te s que os tempos sejam, podemos ligar o qu e vivemos agora com a
época do cativeiro bíblico da Babilônia e com a realidade vivida pelo profeta Ezequiel. Em nossos
dias, no meio do povo, uma das perguntas mais frequentes em videoconferências e debates tem
sido: Onde est á Deus nesta pandemia? Como ligar e espiritualidade em tempo de quarentena?
Ainda hoje, h á ministros de Deus que tentam explicar essa pandemia como
consequência dos pecados da humanidade . E ao fazerem isso, não estão recorrendo ao
argumento de ecologistas e fi e is de espiritualidades originais qu e dizem: A mãe Terra e st á
tentando se defender de tantas agressões. Esses pastores (católicos e evangélicos) não f aze m
análises da so ci e dade e do momento. Apenas evocam pe cad os individuais e no plano
moral. Quase sempre no que diz respeito à Moral Sexual. No Brasil, houve grupos católi cos
e pe nt e cos tai s que acusar am até o Carnaval como o pecado que gerou a pandemia.
Em muitos países, como medid a de segurança, os governos proi bi ram os cultos
presenciais. Muitos padres católicos e pastores evangélicos, ao verem suas Igrejas serem
esvaziadas, sustentaram a tese de que os cultos seriam atividades ess e nc iai s à sociedade. Por
isso, deveriam ser mantidos mesmo durante a quarentena social.
BARROS, Marcelo.
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Ezequiel nos propõe outro tipo de expli caç ão e outro modo de agir. Ao ver que o
Templo não exis t e mais e ele tem de exercer sua profecia no cativeiro e em meio ao povo
cativo, o profeta nos ensina qu e , antes de sermos ministros do sag rad o, estamos chamados
a se r profetas e profetizas da Palavra.
2 OS DIVERSOS CATIVEIROS E AS DIVERS AS FORMAS DE PROFECIA
Atualmente, no Brasil e no mundo, os milhares e milhares de irmãos e irmãs vítimas
da Covid 19 não foram apenas vítimas do vírus. Morreram porque, na maioria dos nossos
países, a saúde se tornou mercadoria. Os sistemas de saúde são privatizados e inacessíveis à
maioria do povo. No Brasi l, terceiro país do mundo em desigualdade social, metade da
população não tem acesso a saneamento básico (sist em as de esgotos). Como esta multidão
de pobres pode se proteg e r durante este tempo de quarentena? A classe média e rica pode
ficar em casa, mas os trabalhadores pobre s e as empregadas domésticas têm de trabalhar
para sobreviver. A pandemia revelou vírus mais mortais do que a Covid 19. Além da
vacina para um vírus, t e mos de nos vacinar contra os interesses egoístas, a indif e re n ça
social e a visão da terra e da natureza como mercadorias. Como falar de e de Deus nesta
realidade? Em nossos dias, até que ponto o próprio discurso religioso não é legit i mador
destas injustiças estruturais?
Na experiênci a de Ezequiel, ao perceber a aparente ausência de Deus diante do
sofrimento do seu povo, o profeta fica mudo (Ez 3,26 e de novo 33,21). Não o que falar.
Não para explicar. Se a função de profet a é exatamente ser porta-voz de Deus, a f ig u ra
de um profeta mudo é a própria contradição. Pior ainda: Ezequiel declara ter sido o
próprio Deus quem o tornou mudo. Diz que Deus ameaçou que abriria sua boca quando
o povo se convertesse. Antes, não haveria razão para que lhe f oss e dada uma palavra de
Deus (Ez 3 ,2 7 e de novo 33,22).
Voltando a olhar para nossa realidade, neste tempo de pandemia, em muitos países,
eclesiásticos passaram a abusar de símbolos re li g i osos . Usam o sacramento da eucarist ia e a
cruz de Jesus como símbolos m ág ic os. Inflacionaram a sensibilidade religiosa das pessoas
como se fosse para convencer Deus a se arrepender e deixar de castigar a humanidade.
Assim, deram ao mundo péssima imagem de Deus. Rele r o texto de Ezequiel nos leva a
pensar que talvez a profecia mais jus ta tivesse sido exatamente fazer como o profeta do
exílio: calar e respe i t ar o silêncio divino diante do que está acontecendo.
3 OCONTEXTO DE EZEQUIEL 37
Sobre o contexto histórico e social, sabemos o que o própri o texto diz. Não vale a
pena entrar no debate técnico dos exegetas que d e fe n de m dois perí odos ou et apas de
missão do profeta, sendo uma na Judeia e outra na Babilônia. Mesmo estudiosos que
defendem essa separação de tempo, concordam que, ao menos, a partir do capítulo 33 o
cenário parece ser o exíli o da Babilônia
3
.
Quanto ao contexto literário, o capítulo 37 se situa na terceira parte das profeci as de
Ezequiel, na qual a mudez do profeta é retirada. Então, de novo, o profeta pode falar. A
Palavra de Deus volta a ecoar. Ela se expressa na forma de vis ão (no estilo de apocalipse) e
também na antiga forma de profecia, ou se j a, interpretação da visão aplicada à realidade e à
vida do povo de Deus.
3 Para esta discussão ver Alonso SCHOKEL e J.L. SICRE DIAZ, Profeta II, p.688-690.
BARROS, Marcelo.
A profeciada vida e dainsurreãono vale damorte: Uma leitura da pandemia a partir de Ezequiel37
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Passo Fundo, v.38, n.130, p. 86-94,Jan./Jun./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
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Dentro da terceira parte do livro, a maioria dos estudos aponta uma maior unidade
redacional que vai do capítulo 34 a 37. Esta part e reúne profecias de consolação e
esperança com o ocorrem com o livro do chamado Deutero-Isaías e de Jeremias 3133, ou
mais tarde Z ac ari as 9 em diante.
O capítulo 37 c ont é m a visão macabra de um cemitério cheio de ossos ressequido s.
No entanto, o seu centro conti nu a a be la promessa contida no capítulo anterior: o Senhor
conduzirá os exilados em novo Êxodo pa ra a terra prometida, os purificará de suas
impurezas e lhes dará um coração de carne, pondo neles/as o seu sopro de vida, a sua Ruah
(Ez 3 6 ,2 4s s) .
A visão do profeta é narrada em linguagem apocalí pti c a, como um sonho ou
arrebatamento (a mão do Senhor me pegou). Isso vai até o ve rso 11. Do verso 12 a 14, o
tom passa a ser mais concretament e de uma profec i a que explica e aplica a visão à realidade
do povo cativo. E do versículo 15 em diante, o profeta anuncia ou propõe a unidade dos dois
reinos, o de Israel e o de Judá. A libertação precisa desta unidade. Até hoje, se os oprimidos
não se unire m , mesmo em suas diferença s, difi ci lme n te conse g u i rão seus objeti vo s.
4 UM A LEITURA DE EZEQUIEL 37A PARTIR DAS NOSSAS DORES
Ao iniciar a leitura do texto, é bom v alori zarmos o tom de testemunho. As profecias
de Ezequiel têm este estilo. São nar radas como experiências pessoais. A mão do Senhor veio
sobre mim... O Senhor me le vou para fora... (Ez 37,1). Deus nos l e va para fora. No caso de
Ezequiel, Deus o leva para uma planície ou vale. No início do seu ministério, Deus lhe
havia dito: Levanta-te e vai para o vale. É ali que eu vou te falar (3,22). Agora, nesta visão do
capítulo 37, é o próprio Deus que o leva para o vale. Não se trata de perguntar se histórica
e geograficamente seria o mesmo vale ou planície. Pouco importa. Teológica e
espiritualmente sim o simbolismo é o mesmo. que no caso de s ta v i são a q u al o prof e ta
se sentiu arrebatado como em êxtase, Deus o c oloc ou em um vale (ou planície) repleto de
ossos. Fez-me circular no meio dos ossos em todas as direções (v.2). Deus tirou o profeta,
levou-o para fora (atualmente, o Papa Francisco propõe uma Igreja em saída). Para onde o
levou? Para o meio de uma planície cheia de ossos. E fez o profeta circular no meio dos
ossos em tod as as direções.
Para um profeta de família sacerdotal, arraigado na antiga cu ltu ra judaica, andar no
meio dos ossos de cadáveres, significava se tornar ritualmente impuro ( L v 21,1-4 e 22,4) .
Essa não é a temática do texto. No entanto, é mais um elemento que revela até que ponto a
realidade que o profeta vive é desafiadora. Talvez, atualmente, mais do que nunca, nossas
Igrejas sejam chamadas a i r além dos seus sistemas e de suas culturas relativas ao sagrado.
Jesus parece ter vivido o mesmo. Para nós que lemos hoje os evangelhos nem nos
damos conta de que Jesus, ao curar o leproso, faz questão de tocá-lo. Ao fazer isso, e le
assume o e s tad o de impureza legal, como se possibilitasse a inclusão do leproso no templo,
ele próprio se tornando impuro (Mc 1,41). Aos católicos, o Papa Francisco diz que prefere
uma Igreja acidentada, ferida , enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igre ja
enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero
uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa em um emaranhado de
obsessões e procedimentos (EG 49).
O texto de Ezequiel reforça que os ossos estão mais do que secos: bem ressequidos.
Na sua visão, o profeta ossos ressequidos. Se para a cultura judaica ossos f ora da
sepultura representam um absurdo, revelam a ameaça de impureza ritual. Mais ainda: para
a pessoa morta, ter seus ossos expostos f ora da se pu ltu ra é u ma maldição. Através de
BARROS, Marcelo.
A profeciada vida e dainsurreãono vale damorte: Uma leitura da pandemia a partir de Ezequiel37
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Jeremias, Deus fez esta ameaça aos reis e aos nobres de Jerusalém: Vou tirar os seus ossos
das sepu lt ur as e os seus esqueletos ficarão expostos ao sol, à lua e às estrelas (Jr 8,1-3). Era
o cast ig o rese rvad o à elite opressora do povo.
Ao ve r os ossos secos, Ezequi e l não julga nem culpa ninguém. A tradição judaica
interpreta com muit a liberdade os textos bíblicos. No tempo antigo, em seus comentári os
midráshicos de Ezequi e l, o rabino Yehos hu ah Ben Korha ens i nav a que aqueles ossos
teriam sido dos 600 mil hebreus saídos do Egit o. Outro rabino antigo dizia que eram os
ossos dos efraimitas que tinham querido se libe rt ar antes dos outros e, por isso, tinham
sido massacrados pelos filisteus
4
.
Para nós, o que o texto nos diz é que os ossos estão mais do que mortos: secos e
ressequidos. É bom ve r estes atores que aparec e m no texto além do profe t a: de um lado os
ossos secos, do out ro o Espírito.
Como nos outros textos do livro, o profeta é chamado de ser humano (filho do
homem). No texto de Ezeq u ie l, o termo não tem ainda a conotação escatológica e a relação
com o mito babilônico da Divindade Humanizada que, por exemplo, toma nos textos
apocalípticos do livro de Daniel (Dn 7). O prof e t a é simplesmente o h u mano. E o que Deus
lhe pergunta é se estes ossos poderão re viv er . O profeta responde Tu, Senhor, sab es . E
Deus lhe manda profe t i zar aos ossos.
Embora os termos hebraicos sejam diversos, é claro que o texto de E ze qu i e l lembra o
livro do Gênesis quando diz: Do da terra, o Senhor formou o s e r humano, com o seu
sopro, soprou em suas narinas e lhe deu o seu sopro de vida (Gn 2,7). Ag ora em Ezequiel,
não é mais diretamente. E o profeta que invoca o sopro divino para que este possa re e ntr ar
nos ossos e lhes restitu i r a vida. Parece irônico mandar os ossos escutarem a profecia,
que os vivos não querem escutá-la. Não deixa de s e r estranho imaginar que ossos possam
escutar uma profecia.
A conclusão a que podemos chegar é que existe um tipo de profecia que para ser
eficaz depende da qualidade da escuta. No entanto, a profecia que vida conté m de tal
forma a energia cri at i va do amor que faz surgir vida mesmo no reino da morte. Esta é a
força da Ruah Divin a.
Neste te xto, aparece oito vezes a palavra ossos e dez vezes o termo ruah sopro,
espírito (ar em movimento), seja se referindo ao sopro divino, seja ao sopro de vi da
humana. O profeta diz a palavra do Espírito para os ossos. O texto é muito forte ao
sublinhar a importância da profecia: Enquanto profetizava..., se escutou. O texto diz: houve
um terremoto, se escutou trovão e os ossos se juntaram. As forças cósmicas da natureza
respondem à humanidade que a agride, se desequilibrando. A í acontecem terremotos e
furacões como forças destruidoras da vida. Aqui, a natu re za se torna aliada da vida e o
terremoto e trovão colaboram com a profecia, ou até fazem parte da profecia que re s ti t u i
vida aos ossos se cos da humanidade. No entanto, mesmo se eles se tornaram corpos
humanos, faltava-lhes o sopro da vida. Era como se, mesmo t en do recebido o sopro de vida
que lhe permitiu formarem corpos, lhe s faltasse o Sopro maior que consiste na vida
autônoma e renovada. É como se o próprio ato do Espírito se desse em um processo. No
livro de Jó, o patriarca ora assim: Lembra-te, por favor, que me f i ze s te como argila e,
agora, me red u ze s ao pó? (Jó 10,9-11).
No versículo 8, o texto de Ezequiel se refere a diversos espíritos. Deus manda o
profeta chamar o Espírito dos quatro ventos. A fórmula parece única em toda a Bíblia:
profetiza ao Espírito (v.9) . Até en tão, estávamos habituados que, em nome do Espírito, a
4 FARHID, Daniel, (rabino), Haftarah do ShabbathHolHamoed de Pesah, homilia public ada em uma sinag og a de Paris,
divulgada na internet, 21 abril 2014.
BARROS, Marcelo.
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profecia é dada às pessoas. Neste capítulo de Ezequiel, a profecia é dada aos ossos secos e
depois, Deus manda dizê-la ao Espírito e o denomina Espírito dos quatro ventos. Isaías
tinha se referido aos sete espíritos ou dons do mesmo Espírito (Is 11,2). O A poc ali pse
falará nos se t e Espíritos d e Deus (Ap 1,4). Em um texto escrito para uma obra coletiva
publicada na Itália, o teólogo irlandês Diarmuid OMurchu afirma que, com os aborígenes
australianos e c om os nativos da Nova Zelândia aprendeu que o Grande Espírito e os
Espíritos, adorados por alguns povos tradicionais, são expressões do mesmo Espírito que a
tradição bíblica chama de Ru ah Divina
5
.
Neste momento de grave crise ecológica e ci vi li zac i onal, um desafio atual para as
Igrejas cristãs é não s ome nt e respeitar e dialogar com as tradições dos povos originários
(indígenas) e comunidades afrodescendentes, mas inserir-se e aprender com eles e elas
uma espiritualidade cósmica e da natureza qu e nos ajude a colaborar para o
reencantamento do mundo. No sul do México, Guatemala e alguns lugares da América
Central as etnias Maya iniciam cultos saudando o Espírito presente na s quatro direções do
mundo. Na cordilheira, povo s andinos fazem a invocación à lassietedirecciones (al este, al
norte, al oeste, al sur, el arriba, el abajo, el centro)
6
. Do mesmo modo, é preciso ver nas
manifestações dos Orixás, dos Inqui ce s ou Voduns nas diversas formas de Candomblé,
Santeria, Umbanda e tradições afrodescendentes a mesma fonte comum, a Ruah Divina
que nos ch ama à profecia da vida.
É estranho que at é ao invocar o Espírito, Deus manda o profeta dizer para o Espírito
fazer reviver estes corpos mortos (o termo hebraico usado haruguin significa literalmente
assassinados ou massacrados). Então, os ossos secos de repente se tornaram símbolos de
resisncia (osso é o que resta de mais duro em um corpo) e mbolos de um martírio coletivo.
Como não recordar aqui os mais de 30 mil irmãos e irmãs, mártires da caminhada
latino-americana, como pessoas assassinadas. Mas, o me ro de mártires vivos/as que
resistiram a perseguições e continuam o seu testemunho é bem maior.
Agora, o proc e ss o está concluído e os ossos formam um grande exército. No verso
11, a visão lugar à interpretação profética: estes ossos são toda a casa de Is rael. E como
no Êxodo do Egito, Deus mostra que escuta o grito e o lamento dos oprimidos . São como
que três queixas: A primeira é Nossos ossos estão secos. Os salmos contêm estas queixas:
Minha vida se acaba em aflições... meu s ossos se consomem (Sl 31,11). Faze-me ouvir o júbilo e a
alegria e exultem estes ossos qu e trituraste (Sl 51,10). A s e g u nda queixa ou lamentação é quase
final: Veavedatikvaténu: nossa esperança acabou. Por isso, os ossos estavam para além de
secos. A conclusão é a terceira lamentação: estamos perdidos. É a este tríplice grito que Deus
responde com a profec ia que vai do verso 12 a 14 do capítulo 37.
A linguagem lembra a do Êxodo. Deus dizia: Eu desci para fazer o povo subir (Ex
3). Agora Deus diz: Eu vou descer até as vossas sepulturas para vos fazer sai r (fazer sair é o
mesmo verbo usado para o Êxodo). É estranho que durante toda a visão não se falou em
sepultura. Era vale aberto cheio de ossos. Aqu i o texto parece vir de outro contexto
literário e cult u ral, certamente posterior. Mu it os exegetas creem que os versos 12 e 1 3
foram acrescentados posteriormente ao te xto
7
. Inclusive quem veja na re daç ão destes
versos a influência de u m poema apocalíptico colocado no texto de Is as, mas que é
posterior ao exílio. Ali estava escrito: Teus mortos reviverão, seus cadáveres vão se
levantar. Acordai para c ant ar, vós que dormis debaixo da terra (Is 26,19).
5 Diarmuid OMurchu, Orizzonti dello Spirito nel XXI secolo, In: A cura di Claudia FANTI e José Maria VIGIL, Il Cosmo
come rivelazione: Una nuova storia sacra per lumanità, p.163-164.
6 RED DEL BUEN VIVIR, Eterno Deseo: Reflexiones para una eco-espiritualidad, p.19-20.
7 MAERTENS, Thierry e FRISQUE, J., Guia da Assembleia Cristã III. p.209.
BARROS, Marcelo.
A profeciada vida e dainsurreãono vale damorte: Uma leitura da pandemia a partir de Ezequiel37
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130, p. 86-94,Jan./Jun./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
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É claro q u e esta linguagem permitiu aos grupos cristãos interpretarem sempre esta
profecia de Ezequiel como promessa da ressurre ão. Certamente, esta perspect i va estava
presente na redação do te xto do Apocalipse de Isaías, no século IV ou III a.C.
Em Ezequiel, o horizonte é a volta do exílio e a restauração do povo de Israe l-J u dá.
No seu contexto histórico, o conteúdo de Ezequiel 37 é primeiramente social e político.
Isso não nega a perspectiva da re ss u rre i ção que tem sempre por trás da palavra o termo
insurreição e o prefixo re que nos coloca na perspectiva de uma segunda e mais profunda
insurreição pela vida provocada pelo Es píri t o, Ruah Divina
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5 EAGORA,NA NOSSA REALIDADE DE IGREJAS E DE MUNDO
A leitura de Ezequiel 37 nesta realidade que estamos vivendo parec e nos desafiar a
retomar a perspectiva de viver e compreender a como profeci a. Concretamente, r et omar
o fato de que v iv e r a e a espiritualidade judaico-cristã significa ouvir uma Pa lavra em
situação de exílio como acont e ce u com Ezequiel e a responsabilidade do profeta é viver
esta palavra e ser capaz de comunicá-la pela vida aos seus irmãos e irmãs.
Frente a tendências de um cristianismo ritual e autocentrado, um te xt o como
Ezequiel 37 nos ajuda a firmar uma vocação profética at rav é s de um estilo de vida e de
espiritualidade, baseado na palavra e na ética da li be rt ação como meio de vivermos a maior
intimidade com Deus.
Esta espiritualidade sócio-política libertadora se revela na pluralidade de caminhos e
sensibilidades. Ensinam-nos a caminhar juntos/as na divers id ade de gêneros, nas lutas
contra o patriarcalismo, o racismo, a xeno fo bi a e as diversas formas de homofobia. Assim,
poderemos nos unir aos gritos dos milhões d e pessoas que neste mundo são excluídas.
Assim, poderemos como Eze qu i e l receber de Deus o encargo de profetizar ao Espírito, para
que este mundo se transforme de um vale de ossos secos e ressequidos em uma terra nova
na qu al a justiça ecossoci al e a paz possam florescer.
Os evangelhos mostram que Jesus uniu em sua pessoa e na sua atuação a dimensão
carismática ou pentecostal da e a dimensão transformadora ou revolucionária.
unindo estas duas dimensõe s poderemos hoje realizar o encargo de profe t iz ar ao Espírito
para que o mu ndo dei xe de ser um vale de ossos secos e se transforme e m terra do bem-
viver. O texto de Ezequiel nos faz retomar a profecia do S almo 104, antig o hino egípcio a
Aton Ra, o Sol. Ele foi ass u mi do pelos profetas e profetizas da Bíblia, tornou-s e um hino
contemplativo da ão divina no universo e nós o resu mi mos dizendo: Envia, tua Ruah
Divina, o teu Espírito de Amor e toda a terra será recriada e sua face renovada (Sl 104,29-
30).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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sinagoga de Paris, divulgada na internet, 21 abri l 2014.
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8 Tewolddemedhin HABTU, Ezequiel, In: Tokunboh ADEYEMO, Comentário Bíblico Africa no, p.1002-1003.
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