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ENVIA TEU ESPÍRITO E
HAVERÁ CRI Ã O
1
SEND YOUR SPIRIT AN D
SHALL BE CREATION
Alessandro Gallazzi*
Resumo: Este estudo quer contribuir para alimentar uma espiritualidade
ecocentrada, a partir de uma releitura crítica dos textos bíblicos que nos
propõem uma visão holística da vida e da natureza, na qual a verdadeira
imagem de De u s é Jesus fonte da única vida que circula em tudo que existe.
Será necessário superar um perigoso antropocentrismo e colocar no centro
todas as vidas da nossa casa c omu m. Uma pastoral e c oce n trad a é a
concretização desta espi ri tu ali da de , uma vez qu e a ecologia, isto é, o pr oje t o
de casa que queremos construir, deve ser a base de toda economia, ou seja,
as regras para que nossa casa funcione em função da vida plena.
Palavraschaves:Ecocentrismo. Ecologia. Holística. Casa comum.
Abstract: This study wants to contribute to nurture an ecocentric spir it u ali ty ,
based on a critical re-reading of the biblical texts that offer us a holistic view of life
and nature, in which the true image of God is Jesus , the source of the only life that
circulates in everything that exists. It will be necessary to overcome a dangerous
anthropocentrism and put all the lives of our common home at the center. An
ecocentric pastoral is the re ali zat i on of this spirituality, since ecology, that is, the
house project that we want to build, must be the basis of all economi e s, that is, the
rules for our hou se to function in function of full life .
Keywords: Ecocentrism. Ecology. Holistic. Common home.
v. 38, n. 130, Passo Fundo,
p. 39-50, Jan./Jun./2021,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI: dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v38i130.47
* Possui graduação em Teologia pelo
Pontifício Instituto das Missões (1972) e
doutorado em Ciências da Religião pela
Universidade Metodista de o Paulo (1996).
Atualmente é agente educacional da
Comissão Pastoral da Terra.
E-mail: gallazzi46@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-9050-3098
Recebido em 20/11/20
Aprovado em 13/01/21
1 Este e ns aio é fruto da sistematização de vários outros escritos meus, ao longo destes
últimos anos. Foi publicado no Theological Journal Voices, n. XXXVII, abril-set e mbro
2014; «Deep Ecology, Spirituality and Liberation». 434 pp. Sito internet:
eatwot.net/VOICES/VOICES-2014-2&3.pdf.
40
Quero colaborar com esta re v is ta a partir de meus estudos teológicos e bíb lic os, mas,
sobretudo, a partir da minha convivência com as populações tradicionais da foz do rio
Amazonas: quilombolas, ri be i ri nh os, índios, com os quais celebro a Palavra. Entrar na
Bíblia a partir das culturas ancestrais latino-americanas fez aparecer mais evidente quais
são as coisas que o Pai quis rev e lar aos pequenininhos e fez questão de esconder aos
sábios e entend id os e, quem sabe, também, aos teólogos (Mt 11,25-26).
1UMA ESPIRITUALIDADE ECOCENTRADA
Espiritualidade é a obra, o sopro, a vida do Espírito de Deus em nós e em tudo que o
existe, desde que tudo começou, quando o sopro de Elohi m
2
estava tranquilo diante das águas
(Gn 1,2). Para experimentar e viver esta fo rça do Espírito precisamos desconstruir leituras,
reinterpretar palavr as, tirar véus e paredes que os entendidos levantaram para esconder as
coisas do Pai. Conheceremos e experimentaremos , assim, como o Espírito de Deus
fecunda e ge ra a nossa espiritualidade.
Vamos começar pelas primeiras página s da Bíblia, as páginas que todos conhecem e
que s e tornaram os pilares de uma civilização que, muitas vezes, foi de morte.
1.1Re-lendoaprimeiraparáboladacri ão
A chamada cultura ocidental, d e matriz grega, caiu na armadilha de pensar qu e a
tarefa que Deus ao ser humano de submeter a terra e dominar sobre os peixes do mar e sobre
as ave s dos céus e sobre todo animal que se move sobre a terra (Gn 1,28) significa que o
homem
3
, imagem de Deus, é, como Deus, o dono de tudo, o elemento mais importante da
natureza, o centro da criação. Movidos por esta teo-ideo log ia, acabamos por teorizar que
tudo que existe tem sentido qu and o orientado para nós e que nós podemos fazer com a
natureza tudo o que quisermos.
Em nome deste dom íni o, o homem submeteu a terra, devastou o ambiente, poluiu as
águas, matou os animais, sem alguma razão e causou a morte.
Submeter a terra legitimou a propriedade privada, a concentraç ão das riquezas e a
violência exploradora e assassin a de todas as vidas.
Em todos os mitos ancestrais dos povos originários da Amazônia, pelo contrário, a
ação criadora do/s deus/es é sempre uma ação que quebra e vence situações de morte e de
sofrimento. É a presença da vida que supera e derrota a presença da mor te .
É, exatam e nt e, o mesmo que nos diz a primeira página da Bíbli a.
Nada tem a ver com a visão filos óf i ca europeia, na qual os cristãos foram quase
sempre catequizados e que define c ri ação como fazer do nada todas as coisas, afirmando,
assim, a total separação entre Deus e todas as coisas e o se u domínio sobre tudo que existe.
Uma tradução incomum, mas literalmente possível, do primeiro versículo da Bíblia,
pode abrir horizontes e significados: No princípio criou Elohim com o s céus e com a terra (Gn
1,1): C é u s e terra participam como co-criadores desta ação de vida.
A palavra de Elohim é geradora de vida. Do outro lado está a morte, estão o deserto,
as treva s e as águas do abismo: as forças caóticas simbólicas da m orte (Gn 1,2).
2 No lugar de usar a costu me i ra tradução Deus, prefiro manter a palavra hebraica Elohim com seu sentido singular e
plural ao mesmo tempo. Seria algo como Toda a divindade e que se aplica a todas as maneiras com que nos é dado
experimentar e conhecer a divindade mantenedora da vida.
3 Uso de propósito a palavra homem , no masculino, porque e st a ideologia greco-ocidental não considera a mulher
como sujeito filosófico.
GALLAZZI,Alessandro.
Envia teu Esritoe haveCrião.
Revista Teopráxis,
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Viva a luz e viveu luz... Viva uma ex pa nsão entre as águas e vi ve u ... E assim v ive u ...
(Gn 1,3.6.7.9).
Viver: hyh / hayah
4
como ser, acontecer. Um verbo que se repete 27 vez e s em Gn 1.
O verbo que é o radical do nome de Yahweh: o vivent e que faz viver.
A mesma alma vivente que faz viver Adam (Gn 2,7) faz viver os filhos das águas (Gn
1,20s), os filhos da terra (Gn 1, 24 ) e todos, igualmente, recebem a b ê nçã o de Elohim de
gerar vi da: Fruti f ic ai e multiplicai-vos (Gn 1,22.28).
A parábola da criação de Gn1, então, longe de ser uma fábula nostálgica de um
passado d e f in it i vame n te perdid o, é memória da luta criadora e re-criadora permanente em
defesa do bom, que é tudo o que vive, contra todas as forças caóticas de morte que
teimam em transf ormar a vida em trevas e deserto.
Desde o princ ípi o - assim proclama esta página - Elohim se manifes ta com seu poder
vencedor. Nos trê s primeiros dias canta-se a vi t óri a de Elohim contra todos os males,
simbolizados pelas t re vas , pelas águas do abismo e pelo deserto.
A ação criadora de Elohim, que separa as trevas da luz, as águas de cima das águas
debaixo, a terra dos mares, transformando o deserto em prados e florestas, revela aos
pobres e aos opri mi dos que vale a pena confiar neste Elohim capaz de derrotar todas as
forças ca óti ca s que produzem o medo e a morte.
A vitória de Elohim completa-se nos outros três dias, quando, após faze r viver a luz,
o firmamento e a terra fértil, ele garante sua continuidade, criando os exércitos da luz, das
águas, dos ares e da terra. Apesar da conotação negativa e viole nt a que esta palavra tem
para nós, latino-americanos, usamos a palavra bíblica exércitos (Gn 2,1) porque indic a que
as criaturas que povoam a natureza terão a incumbência de cuidar, de zelar e de defendê-la,
combatendo, até o fim dos tempos, contra todas as formas de morte.
Caberá ao sol, à lua e às estrelas cuidar e zelar pela vida da luz; aos seres marinhos
caberá zelar pela vida das águas; da vida dos ares cuidarão os pássaros do céu e os animais
deverão tomar conta da vida do solo fértil.
A criação do ser humano homem e mu lh er feito à imagem e semelhança de
Elohim, tornará toda a obra de Elohim boa, mui to boa, pronta para continuar sendo, para
todo o sempre, boa, muito boa. Os exércitos de Elohim, assim completos, farão com que a
vitória de Elohim sobre as trevas, os abismos e os desertos possam continuar ao longo da
história. Os exércitos de Elohim, g u iad os pelo ser huma no, cuidarão para que trevas,
abismos e deser tos nunca mais voltem a vencer.
Submeter a terra nos obriga, então, a cuidar e zelar por esta nossa casa comum e por
tudo que nela habita com a mesma paixão cri adora e amorosa de Elohim, em vista da
felicidade de todas as pessoas e de todos os seres vivos.
Como Elohim, com a prese nça de seu espírito, nós, homens e mulheres, devemos
continuar sua obra criadora, lutando contra todos os males que ameaçam a vida de todos e
do planeta, cont ra a violência presente em todas as páginas da história humana. É um
permanente processo de criação e re-criação que terminará quando poderemos viver
sem mais dor e luto nos novos céus e na nova terra, na terra sem males que todos queremos.
4 A leitura hieroglífica destas letras nos diz que h é o símbolo da vida, do ser, do que anima e y é o símbolo da
potencialidade, da durão, dose manifestar. O verbo hyheno simboliza a vida que se manifesta e se potencializa na vida.
GALLAZZI,Alessandro.
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1.2Re-lendoasegundaparáboladac ria ção
A segunda parábola da criação (Gn 2,4b-25) nos fala da relação de Adam com
Yahweh Elohi m e com o jardim das delícias / Éden.
Novamente encontramos uma si tu ão inicial de não vida, de deserto.
Na prime i ra parábola o elemento vital era o sopro de Deus sobre as ág u as. Agora é o
vapor, que , hieroglificament e , indica uma força em movimento que encharca a adamah
5
,
a terra enquanto geradora de vida (Gn 2,6).
Da adamah Yahweh Elohim forma Adam que vive como alma vivente pelo alento de
vida (Gn 2,7); da adamah Yah weh Elohim faz brotar toda árvore (Gn 2,9); da adamah Yahweh
Elohim f orma tudo o que vive no campo e nos c é us (Gn 2,19).
Tudo que vive te m um único pai e uma única mãe: uma única vida em todas as suas
diferentes formas.
Dois verbos definem esta relação com o jardim: A da m é colocado no jardim para
`abad = servir, prestar culto e para shamar = observar, obedecer, guardar (Gn 2,15)
6
. Estes
mesmos verbos que, em muitos outros textos, definem a nossa relação com Deus, aqui,
definem, também a nossa relação com o jardim, com a adamah, com a terra. Adam não é o
dono do jardim: é o servo obediente.
Quando tudo começou, ainda não havia vida porque nem Yahweh Elohim tinha feito
chover, nem havia Adam para servir a terra (Gn 2,5). É desta relação de serviço e de
obediência que pode nasc e r e se sustentar a vida.
Na primeira parábola é Elohim qu e m o nome a todas as realidades de vida quando
são criadas: dia e noite, firmamento, terra e mar (Gn 1,5.8.10). Nesta segunda parábola é
Adam quem o nome a todas as almas viventes (Gn 2,19-20). É o compromisso de quem
conhece, cuida e se responsabili za, como um pai que o nome ao filho recém-nasc id o.
E, contra toda arrogância antropo-cêntrica de nossa filosofia greco-ocidental, esta
página nos propõe u ma relação eco-cêntrica, ao proclamar que o Adam sozinho não é bom.
A imagem de Deus precisa se relacionar com o jardim, com as árvore s e com todos os seres
vivos. E reconhece na mulher a sua mesma id e nt id ade , seu mesmo nome: ele a reconhece
exatamente igual a si, diante de si: substância de minha subsncia, carne de minha carne (Gn 2,23).
A proximidade desta cosmovisão bíblica com a cosmovisão dos mitos dos indígen as
e dos afr o-de s ce nd e nt e s é evident e . Ler a Bíblia com os povos da Amazônia é a
possibilidade que o biblista tem de se aproximar com maior facilidade do sentido
originário das palavras do Gênesis.
Como é difícil alcan çar esta proximidade quando a Bíblia é lida nas academias e até
nas nossas liturg ias !
1.3Re-lendoapaboladaárvoredasvidasedoconhecimentodobemedomal
A interpretação que nossas c omu ni dad e s costumam fazer desta página nos leva a
aplicar o paradigma do c rim e -cas t ig o. Um crime tão grande que marcou um castigo para
todas as gerações: o pecado original. Um pecado do qual foi isent a a virgem Maria e,
evidentemente, seu filho Jesus, cujo sangue derramado aplac ou a ira do Pai e nos lavo u de
nossas c u lpas, mas não de nosso corpo de morte. A morte é o cas ti g o defini t iv o, a
inevitável consequência do pecado de Adam e de sua mulher.
5 A palavra adamah cont é m a palavra dam = sangue. Sangue da terra, terra fértil, geradora de vida.
6 Nossas Bíblias, quase sempre, preferem usar a tradução da Bíblia Grega (LXX): cultivar e guardar.
GALLAZZI,Alessandro.
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Uma leitura a partir dos povos da Amazônia, porém, nos conduz por um caminho
mais amplo e menos moralista e condenatório. A terra onde estão sepultados os ancestrais
é terra sagrada, é terra santa, fonte de vida: essencial para recuperar as forças vitais.
A parábola nos fala do homem e da mulher que quebram as re la çõe s de serviço e de
obediência porque querem se afastar da terra para ser como Yahweh Elohim
7
. A tentação é
ser como Deus: justamente o que sugeria a leitura equ i voc ada do submeter a terra da
primeira parábola. Querer ser como Deus é querer ser o dono de tu do. Esta é a causa de
todos os males.
O castigo é voltar a servir à vida, é volta r a servir a terra. Será c om dor e será com
fadiga, mas o encontro com a terra será sempre vivificador.
Até que voltes à terra, porque dela foste tomado; porque tu és e em voltas (Gn3,19).
Voltar, retornar: shub
8
. C onv e rte r- se : é o mesmo verbo. Converter-se a Deus e
converter-se à terra. Voltar a servir e a obedecer; voltar à vida no sentid o mais ple no. Não
existe a palavra morte nas palavras de Yahweh Elohim.
O vers íc ul o seguint e é decisivo: é a chave de leitura do castigo:
E chamou Adam o nome de sua mulher havah / vida/ Eva; porque vive a mãe de todos
os viventes (Gn 3,20 ).
agora, neste momento que podia parecer de morte, Adam consegue dar um nome
à sua mulher: Vida! Adam vai levar consigo a vida para fora do jardim. No conhecimento
da mulher e no servir terr a, a vida poderá continuar até que tenhamos nov os céus e nova
terra e nunca mais haverá lágrimas e dor.
E Yahweh Elohim o enviou fora do jardim do Éden para servir a terra da qual foi
tirado (Gn 3,23).
E conheceu Adam a Vida, sua mulher e ela concebeu (Gn 4,1).
1.4BendizeiaoSenhor,todasasob ra sdoSenhor
Os céus narram a glória de Deus , o firmamento anuncia a obra de suas mãos (Sl 19,1).
Todos nós que celebramos com hinos e salmos ao nosso Deus, fazemos
quotidianamente a experiência de convoc ar a criação toda para aclamar e proclamar as
maravilhas do nosso Deus, celebrar sua glória, manifes ta r s e u poder e seu reinado. Tudo
que existe proclama: Teu reino é reino de todos os séculos, teu domínio se estende a todas as
gerações (Sl 145 ,1 3) . De Yahweh é a terra com o que ela contém, o universo e os que nele
habitam (Sl 2 4, 1- 2) .
A criação toda é viva: os montes pu lam , os rios batem palmas, as tempestades
revelam o nosso Deus.
Impressiona o cântico dos três rapazes jogados pelo imperador na fornalha ardente
(Dn 3,57-90 LXX). Escrito em grego, este texto confronta o modelo grego de ecologia e
economia que pretendia se impor a toda a oikoumen e mediterrânea: uma natureza
inanimada, pura matéria, cujos recursos inesg ot áve i s deviam ser explorados para gerar
riquezas em prol dos mais fortes.
7 Este movimento de se afastar da terra para chegar a Deus está presente também nas parábolas do dilúvio e da torre de
Babel. Também nestas parábolas a volta para a terra é ele me nt o vivificador.
8 A simbologia hieroglífica destas letras é conhecimento para dentro que faz a unidade = reconstrução da tua identidade.
GALLAZZI,Alessandro.
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A criação, pelo contrário, é viva, é animada e participa da grande louvação: Bendizei o
Senhor, cel eb rai-o e exaltai-o para sempre!
É o que acontece no turé, uma dança típica dos nossos índios: tudo o que existe e vive é
chamado a entrar na roda, a participar da única festa do povo, a se fazer uma coisa
conosco, penetrando na vida dos que dançam e festejam. É assim nos terreiros do candomblé
e da umbanda: tudo é vida, tudo é interação: us e terra se encontram, se fecundam,
produzem e se reproduzem num processo permanente de criação. Assim é na Bíblia.
Terra santa, tempos s ant os , comunidade santa: uma trindade indivisível que
experimenta a circ u laç ão de uma única vida, a do Espírito!
Os t e mpos da natureza são tempos santos: novilúnios, semeaduras, colheitas,
vindimas, cios das ovelhas, primícias, vinho novo, azeite perfumado, tu do vira fest a,
marcando os tempos, os ritmos deste útero fecundo e gerador, os ge s tos sagrados de um
povo que celebra seu Elohim/deus (e s) , singular e plural ao mesmo tempo.
Precisamos nos libertar da visão economicista que seja ela capitalista ou socialista
considera a natu re z a matéria prima que adquire valor quando transformada em
mercadoria, em riqu e za.
Se Deus colocou tudo aos nossos pés é para que seja manifesto quão grande é o nome
de Deu s em toda a terra e quanto Ele nos a ma (Sl 8,3-9).
Esta é a raiz de uma espiritualidade profun da. Esta espiritualidade sig n if i ca entrar em
sintonia, em comunhão holística, com a ação do Espírito de Deus que, desde que tudo
começou, continua criando e renovando a face da terra: Envia teu espírito e haverá criação e
renovas a face da terra (Sl 104,30).
2ESPIRITU AL I DADE ECO-CENTRADA É ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
Na arrogância de nossa c u lt u ra ocidental, a nossa lógica racionalista nos le v ou a u s ar
palavras de conotação negativa, para falar desta cosm ovi são comum às populações
tradicionais: sincretismo, politeísmo, panteísmo, animismo, pois elas acreditam que todas
as coisas e todos os seres têm alma/vida, a mesma vida de Deus.
Na melhor das hipóteses, chegamos a dizer que estas páginas bíblicas são narrativas
míticas, próprias do antigo testamento e que devem ser supe rad as pe la per spe c ti va
racional, re ve la da no novo testamento.
Precisamos aprofundar: esta espiritualidade é compatível com a espiritualidade
cristã? Qual seri a o lugar de Jesus na espiritualidade ecocentrada?
Vamos v oltar à afirmação d e Gn 1,27: E criou Deus o homem à sua imagem: à imagem
de Deus o criou; homem e mulher os criou. Ou, como re cord a Gn 5, 1-2 questionando nosso
machismo congênito: Quando Deus criou o ser humano, ele o criou à semelhança de Deu s .
Criou-os ho me m e mulher, e os abençoou. E no dia em que os criou, Deus os chamou Adão.
A plena compreensão destas palavras e, por isso, da nossa missão de imagens de
Deus, é possível a partir de Jesus, a mais autêntica e completa imagem de Deus. Como
nos diss e a carta aos Colossenses:
Ele é imagem do Deus invisível, o p rim og ên it o de toda a criação; pois é nele que foram
criadas todas as coisas nos céus e na terra. Tudo foi criado por ele e para ele. Ele existe
antes de todas as coisas e nele todas as coisas têm consistência (Cl 1,15-17).
A única vida que perpassa tudo que existe é a vida de Cristo. É o que repete,
também, o evangelho de João qu e se abre com a afirmação do novo gênesis, num claro
paralelismo com a primeira página da Bíblia:
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Todas as coisas foram feitas por ele e sem ele nada do que foi feito se fez (Jo 1,3).
Dominar a terra, então, significa fazer com que toda a criação participe do plano
amoroso que Deus tinha quando criou tudo que existe:
Colocar Cristo como cabeça de tudo o que existe no céu e na terra (Ef 1,10) .
Submeter a terra si g ni f ic a, assim, conduzir tudo e todos a Jesus, ao seu Reino de vida
e de luz, no qual todas e todos tenhamos a vida, a paz, a abundância, sem distinção de raça,
de cred os, de classes sociais e nem das nomenclaturas científicas.
É o que a criação toda espera de nós que, com Cristo, em Cristo e por Cristo, somos
a image m de Deus na terra.
A criação espera ansiosamente a re vel ão dos filhos de Deus (Rm 8,19).
Assim saberemos que o gemido de dor da criação é, na realidade, um gemido de
parto (Rm 8,22), sinal supremo de vida e de invencível esperança (Jo 16,2-22).
Na contramão do pensamento greco-romano que afirmava ser a natureza algo
totalmente inanimado e, por isso, subordinada aos int e re ss e s dos humanos racionais, a
carta aos Romanos afirma que a criação está indis solu v e lme nt e ligada aos seres humanos:
conosco ela geme, conos co ela espera, conosco ela anseia, conosco ela sofre. No horizonte
da humanidade e da criação está a mesma esperança de serem libertados da escravidão da
corrupção
9
, em vista da liberdade que é a glória dos filhos de Deus (Rm 8,21).
O Espírito que, desde o princípio, está na origem da vida, une seus gemidos aos
nossos gemidos e aos gemidos da criação e vem em socorro da nossa fraqueza, diante de
um des af io tão grande (Rm 8,26-27).
As comunidades eclesiais, alimentadas pel a certeza que t u do concorre para o bem dos
que amam a Deus (Rm 8,28), deverão sempre ser as testemunhas do ressuscitado, viver
segundo a nova criatura, buscando sempre, em primeiro lugar o reino de De u s e a sua
justiça, contra os falsos reinos geradores de injustiça e de morte.
É o que o Espírito nos impele a fazer. Lutar, como Jesus, em favor da vida, contra
todas as forças caóticas da morte e da exclu s ão, buscando faze r com que a criação t oda
possa alcanç ar a plenitude da vida que nela é contida.
Neste t e xto (Rm 8,19-26), a criação, os filhos de Deus e o Espírito, também, formam
uma espécie de trindade, na qual os três elementos formam uma única realidade, na
construção da liberdade dos filhos de Deus que signifi ca a li be rd ade de toda a criação. Hoje
a ciência, também, vem confirmando esta visão holística que Paulo e João, fiéis à
cosmovisão semita, proclamavam, na contramão do pensamento lógico grego.
3DEUS CRIADOR,DEUS DE TO DO S OS POBRES
A outra questão que provoca esta ref le xão é decisiva, sobretudo, na América Latina:
O que têm a se dizer mutuamente a ecologia profunda e a espiritualidade da libertação?
Na memória dos povos da Amazônia a divindade é sempre o Pai da bênção e da
promessa, da vida. Herdeiros de uma longa história de brutal exploração, eles recorrem à
divindade, a santos, orixás, benzedores, pajés, mães de santo, pois, guardam a certeza,
celebrada, também, e m inúmeros salmos, que Deus cuida deles, faz justiça, não abandona
os que nele confiam.
9 O termo grego ftorá significa, sobretudo, des t ru ão, ruína, aniquilamento, devastação.
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A memória do Elohim criador da natureza, de tudo qu e existe , não deve ser, em
hipótese alguma, separada da memória do Yahweh salvador dos pobres e dos oprimidos.
Bem-aventurado aquele cuja esperança está em Yahweh, seu Elohim,
que fez os céus e a terra, o mar e tudo o que neles
e mantém para sempre a sua fidelidade.
Que faz justiça aos oprimidos e pão aos que têm f ome .
Yahweh liberta os encarcerados. Yahweh abre os olhos aos c eg o s,
Yahweh levanta os abati dos , Yahweh ama os justos.
Yahweh guarda o peregrin o, ampara o órfão e a viúva,
porém transtorna o c a min ho dos ímpios.
Yahweh reina para sempre; o teu Elohim, ó Sião, reina de geração em geração. Aleluia!
(Sl 145,5-10 e i me ros outros Salmos; ver, também, Jt 9,11-12).
Usar a narrativa d a criação para justificar a dominação sobre a natureza e sobre os
outros s er e s humanos será, sempre, uma blasfêmia.
Não podemos esquec e r que a primeira página do Gênesis encont ra, possivelmente,
sua origem li te rári a nos capítulos 40-55 do livro de Isaías, conhecido como Segundo
Isaías
10
. Estas páginas nasceram nos momentos difíceis em que escravos e escravas viviam
oprimidos n o cativeiro em Babilônia.
Foi deste grupo de excluídos e excluídas que surgiu a boa not íc i a. Lá, do fundo do
poço, surgiu uma teologia com dimensões completamente novas, inauditas, mas que vinha
acontecendo desde o princípi o, desde sempre (Is 41,26; 43,19).
É o anúncio do Deus Criador, da grande mãe, a única mãe geradora da vida de todos
e de tudo: Eu t e formei,... eu te fiz,... eu te criei,... eu te modelei,... eu t e tomo pela mão,... eu te
ajudo,... eu estou contigo,... eu te dou forças,....
Nestas páginas, Deus deixa de ser somente o Deus de Israel. Deus é Deus de todos,
até dos filhos se m família, dos sem genealogia, dos sem povo, das culturas oprimidas,
excluídas, m arg in ali zadas (Is 45,9-12). Todos são filhos dele, também os não judeus, filhos
da violên ci a, da guerra e da deportação (Is 45,23-24).
Nunca um a mensagem foi tão universal, tão abrangente, tão inclusiva!
Esta gente sofrida nos fala de um Deus, mas com u ma incrível quantidade de
facetas. Tudo que é fonte de vida para o pobre cansado e desanimado é parte deste Deus
que é único, mas que para cada um dos pobres assume um rosto diferente, capaz de gerar
vida. Deus é único, não porque exclui, mas porq u e reúne em si mesmo t odos os element os
de vida das religiões populare s . Encontramos nele o Deus cananeu da chuva e do orvalho
fecundante (Is 45,8; 55,10-11); o oleiro modelador da mitologia mesopotâmica (Is 45,9); o
dominador dos mares agitados (Is 51,15) e, de maneira especial, a deusa-mãe, comum a todas
as cult ura s semitas (Is 46,3-4; 49,15; 66,9-13). Pela primeira vez Deus é chamado de Pai:
Repara desde os céus e olha desde a tua santa e gloriosa morada: Onde estão o teu ciúme
e a s tua s força s? O frêmito das tuas entranhas e das tuas misericórdias
11
para comigo
acabou? Porque tu és n os so Pai, quando Ab raão não n os conhece, e Israel não nos
reconhece; tu, Yahweh, és nosso Pai; nosso Redentor desde a antiguidade é o teu nome
(Is 63,15-16).
10 A vitória de Deus contra trevas, águas, abismos e desertos, as forças caótic as da morte, estão presentes de maneira
significativa, no Segundo Isaías (Is 42,7; 43,2; 43,16; 44,3; 44,4; 45,7; 48,21; 49,9; 50 ,2 ; 51,3; 51,10) Diga-se o mesmo
da palavra tohu / caos. O míti co adversário das origens, também, está muito presente nos textos do Segundo Isaías (Is
34,11; 40,17. 23; 41,29; 44,9; 45,18; 49,4). Porque assim diz o Senhor, que criou os céus, o Deus que formou a terra,
que a f e z e a estabelece u ; que não a criou para ser um caos/tohu, mas para ser habitada: Eu sou o Senhor, e não
outro (Is 45,18). Ver, também, GALLAZZI, Sandro. Por meio dele o desígnio de Deus de triunfar. In: Ribla, v.21.
Petrópolis: Vozes, 1995, p.11-31.
11 Literalmente úteros. É um Deus Mãe e, agora, Pai.
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É um Deus único, mas completo: tudo que for elemento de vida, de segurança, de
esperança para os pobres, ele reúne, ele soma, ele engloba nu ma s ó di vi nd ade , b oa,
materna, protetora, consoladora para toda esta gente sof ri da: um Elohim único e completo.
Os outr os deuses não existem: se forem dos pobres, estão contidos nele; se forem dos
opressores, são ídolos , imagens, não são nada/tohu!
Única imagem de Deus é A dam , a humanidade, no mesmo tempo image m de Deus e
produto da terra fértil/'adamah. Adam: homem e mulher (Gn 5,2), criado/os para serem os
herdeiros do domínio d e Deus sobre a terra. Representantes de Deus não s e rão os reis, os
sacerdotes, os g rand e s, mas o homem e a mulher. Ídolos nunca mais!
Os valores presentes nestas páginas bíblicas m muito a ver com os valores presentes
na vida quotidiana dos povos da Amazônia. Trata-se de estabelecer um diálogo atento e
humilde, na atitude evangelizadora de Paulo que poderíamos assim parafrasear: Fazer-nos
índios com os índios, caboclos com os caboclos, negros com os negros, ribeirinhos com os
ribeirinhos, seringueiros com os seringueiros, fazer-nos tudo a todos e a todas.
Este imaginário de vida e de salvação inspirou os profetas que proclamaram as
promessas de Deus ao seu povo sofrido:
Vou criar novos céus e nova terra... não haverá ali criancinhas que vivam apenas
alguns dias, nem velhos que não completem a sua idade... Construirão casas para nelas
habitarem, plantarão vi de iras e comerão de seus frutos... Os meus eleitos comerão eles
mesmos o fruto do trabalho de suas mãos... (Is 65,17-25).
É assim que o jardim vai entrar em nossas casas e no nosso quotidiano e o sinal da
paz e da vida será descansar, esposos, filhos e filhas, debaixo das vinhas e das figueiras (Mq
4,4; Z c 3,10; 1Mc 14,12).
É a terra sem males do mundo indígena.
4ECUMENISM O,ECONOMIA,ECOLOGIA
A interação entre espiritualidade ecocentrada e e spi ri tu al id ade da libertação nos leva
a ampliar nossa reflexão sobre o que devemos entender por ecologia.
As palavras economia, ecologia e ecumenismo vêm todas da língua grega e se
originam do verbo oikeo: habitar. O particípio presente passivo feminino deste verbo é
oikoumenen: a realidade que e s sendo habitada. O substantivo derivado é oikoumene.
Esta palavra foi, logo, entendida como todo o universo habitado, toda a sociedade
humana, toda a terra. A esta palavra costuma-se dar uma dimensão universal.
Quase todas as vezes que a palavra oikoumene aparece nos textos bíbl ic os
12
tem a
conotação qu e lhe é dada no texto clássico:
De Yahweh é a terra e a sua plenitude, o mundo (oikoumene) e aqueles que nele
habitam (Sl 24,1).
É, porém, interessante notar que a palavra oikoumene nunca aparece nos textos
paulinos
13
e é m ui t o pouco usada no Segundo Te st ame nt o. Apesar do seu esforço em
dialogar com o mundo grego, Paulo não usa esta palavra, preferi nd o usar, como em geral
no Segu nd o Testament o, a palavra kosmos
14
.
12 A palavra oikoumene aparece na LXX e no NT: 2Sm 22,1 6; 1Esd 2,2; Est 3,13; 2Mc 2,22; Sl 9,9; 17,16; 18,5; 23,1; 32,8 ;
48,2; 49,12; 71,8; 76,19; 88,12; 89,2; 92,1; 95,1 0 , 13; 96,4 ; 97,7, 9 ; Odes 7, 45 ; Pr 8,31; Sb 1.7; Is 10,14 , 23; 13, 5, 9, 11;
14,17, 26; 23,17 ; 24m1, 4; 27,6; 34,1; 37,16, 18; 62,4; Jr 10,12; 28,15; Lm 4,12; Ep. Jr 1,61; Dn 2,38; 3,2, 45; Dat 3,45;
Mt 24,14; Lc 2,1; 4,5; 21,26; At 11,28; 17,6, 31; 19,27; 24,5; Rm 10, 1 8; Hb 1,6; 2:5; Ap 3,10; 12,9; 16,14.
13 Rm 10,18 é uma citação dos LXX.
14 A palavra oikoumene aparece 15 vezes no Segundo Testamento, enquanto a palavra kosmos aparece 15 0 vezes.
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Para os gregos a palavra oikoumene indicava, quase sempre, as populações que eram
conectadas com o projeto político e come rc ia l grego. Os bárbaros e os escravos não faz ia m
parte da oikoumene .
Diga-se o mesmo para o império romano: oikoumene eram as nações q u e formavam
o império, os povos tribu t ados e comerci alme n te explorados pelo império
15
. Oikoumene,
que parecia ser uma palavra inc lu si va, era, na verdade, um forte elemento de exclusão. Uns
eram oikou me n e e muitos outros não.
Esta ambiguidade justifica a ausência desta palavra nos textos paulinos. Suas
afirmações são claras :
Eu sou devedor tanto a gregos como a bárbaros, tanto a sábios como a ignorantes (Rm 1,14).
Não grego, nem judeu, circuncisão, nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo ou
livre; m as Cristo é tudo em todos (Cl 3,11).
O Reino de Deus é uma coisa, a oiko u men e é bem outra (ver também, Mt 24,14; Lc
4,5; 21 ,2 6 ): a ela deve ser anunciado o evangelho do Reino
16
.
Por que fiz e st as considerações? Porque do verbo oikeo d e ri vam, também, as palavras
oikia, oikos: h abi t ação, casa, residência, lugar habitado, família.
A oik ou m en e é o conjunto das casas, de todos os espaços que são habitados. Não
como separar o universal do local.
Aqui, porém, precisamos levar em consideração que casa, também, nunca foi
sinônimo de igualdade entre os que habitam nela. Tem o homem e tem a mulher, tem o
pai e tem o filho, tem o amo e tem o escravo.
As relaç õe s internas da casa são determinantes, podem ser igualitárias:
Não judeu nem grego; não servo nem livre; não macho nem fêmea; porque
todos vós sois um em Cristo Jesus (Gl 3,28).
Ou as relações dentro da casa podem ser de domínio, de governo:
Todos os escravos que estão debaixo do ju go estimem os seus s en hor es dignos de toda a
honra, para que o nome de Deus e a doutrina não sejam blasfemados (1Tm 6,1).
As mulheres idosas (...) ensinem as mulheres novas a serem prudentes, a amarem seus
maridos, a ama re m seus filhos, a serem moderadas, castas, boas obreiras de casa,
submetidas a seus maridos, a fim de que a palavra de Deus não seja blasf e mad a (Tt
2,3-5).
Quanta diferença ent re o homem: dono/patrão da casa (oikodespotes) e a mulher
trabalhadora d a casa (oikourgous)!
É por isso que precisamos definir qual é a nossa ecologia
17
. Qual é o nosso discurso
sobre a casa? De que casa nós estamos falando quando usamos a palavra ecologia?
Ecologia é dizer o que pensamos da nossa casa, com o um todo. Quase sempre e,
nisso, empresários e ambientalistas costumam ser iguais se entende ecologia como a
15 Com este sentido a palavra oikoumene aparece, por exemplo, em Lucas 2,1 e em Atos 17,6 e 19,27.
16 Temos que dizer que também a palavra kosmos, sobret u do em João, não tem o significado global de mundo, de
universo, mas iden ti f i ca as forças negativas que se contrapõem ao Reino. É bom lembrar que esta ambiguidade se
mantém, também, nos tempos atuais: a palavra ecumenismo que deveria significar a atitude de encontro e de
respeito entre todos os que vivem no mesmo mundo habitado - é quase sempre usada para falar da unidade das
igrejas cristãs, excluindo do ecumenismo as demais expressões religiosas. Para estas foi prec is o cri ar a palavra macro-
ecumenismo: uma evidente redundância.
17 Ecologia vem do grego: oikos = casa e logos = discurs o. Diga-se o mesmo da economia que vem de oikos = casa e
nomos = lei, norma.
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nossa relação com a natureza, com o meio ambiente, podemos dizer com o nosso quintal.
Discute-se o ambiente , discute-se como deve f u nc i onar o quintal, mas não se discute que
tipo de casa nós queremos.
Tem muita gente que, quando pensa em casa, não pensa numa casa comum, onde
todos sentam ao re d or da mesma mesa e repartem o mesmo pão, sem di s ti ão; continuam
pensando e m casa grande e em senzala.
Muitos falam em ecologia, mas se preo cu pam com o quintal, com a natureza, com
o ambiente que está fora da casa e, assim, f alam em desenvolvimento sustentável, em
defesa da terra e da água, mas continuam sem pôr e m discu ss ão a casa grande dos países
mais ricos, das classes dominantes, das corporações indu s tri ai s e financeiras, das elites
privilegiadas e corruptas que engordam às custas de uma imensa, incalculável senzala que
é explorada, oprimida, excluída.
Progresso, crescimento, desenvolvi me nt o, para eles signif i ca entrar a fazer parte da
casa grande, nem que seja como uma reme di ad a classe média. A senzala ainda não saiu da
cabeça de muitos de nós.
Precisamos nos converter, pois a economia (a lei, a organização, a administração da
casa) va i depende r da ecologia (de que casa estamos falando, em que tipo de casa que re mo s
viver).
Se continuarmos a acreditar na casa grande
18
, teremos uma economia ce nt rad a na
especulação financeira, nos monopólios industriais, na privatização dos serv os públicos -
realidades estas que nada teriam a ver com a ecologia. Uma economia baseada no
agronegócio, na monocultura, na mineração, nas exportações de matéria prima, no
trabalho e sc ravo, na concentração fundiária, nas sementes transgênicas, nos agrotóxicos.
Na melhor das hipóteses, faremos os estudos de impacto ambiental e as audiências
públicas para tentar minimizar e corrigir a inevitável de s tr ui ç ão que será compe ns ada com
poucas esmolas socia is , com uma oferta te mporár ia de empregos, com a promessa de
impostos que, depois, serão sempre descontados e com algumas medidas compensatórias
regularmente abatidas do i mpos to de renda devido.
A casa grande ficará com os produtos e os lucros; a senzala ficará com o trabalho e as
migalhas da a ss is t ê nci a social e o quintal será devastado. Os pobres perderão a terra! A
terra per de a vida!
A v e rdad e ira e mais importante diferença está na maneira de olhar a terra, a água, a
natureza: socialistas e capitalistas enxergam tudo isso como matéria prima que a dqu i re seu
valor ao vira r mercadorias que deve ser comercializada e privatizada, deixando de ser
direito e bem cole t iv o. Nós queremos olhar a terra, a água, a natureza como a nossa casa, a
nossa mãe e fonte de vida para todas as criaturas.
Nós entendemos que a lu ta pela terra é, hoje de maneira especial, luta pela TERRA,
com a T maiúscula. É a luta pela vida do planeta que é violentamente ameaçada por um
falso conceito de crescimento, desenvolvimento, progresso e por uma ainda mais falsa
ideia d e que os recursos naturais são infindáveis.
Aprender com as comunidades tradicionais o que significa uma casa feita tenda
comum, abe rt a a todos, não significa atraso. Significa vida abundante para todos e todas.
Lutar pela terra e pela vida da Terra é um imperativo ético que testemunha nossa
fidelidade à me móri a, à tradição, à ancestra lid ade , às nossas raízes. É a fidelidade aos
pobresdeDeus.
18 Não vamos esquecer que a palavra far significa, literalmente, casa grande.
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Lutar pela terr a e pela vida da Terra é uma exigência que testemunha nossa relação
sagrada com a terra, nossa mãe, nossa amiga, nossa amante, à qual devemos servir e
obedecer, pois dela todas as gerações terão vida em abu ndâ nci a. É a fidelidade à terra
queédeDeusedetodo setodasnós.
Lutar pela te rra e pela vida da Te rra é uma obrigação que testemunha a no nosso
Deus. Da ecologia, depende não a economia, mas, também, a teologia. A c asa que
pensamos e queremos determina qual é o Deus ao qu al nossa casa deve ser fiel. É a
fidelidadeaoDeusdospobres.
Este testemunho de fidelidade ao Deu s dos pobres, aos pobres de Deus e a terra que é
de Deus e de todos, levou inúmeras companheiras e companheiros a amar até o fim, até
derramar se u sangue . São os mártires/testemunh as que as Igrejas nunca devem esquecer.
5ECOLOGIA E ECLESIOLOGIA
Nossas Ig re jas , muitas vezes, se g u i ram e seguem a lógica da casa grande e da senzala
que deturpou nossas re laç õe s: templos, a ltar es , sacrifícios, hierarquias, governos são coisa
da casa grande, de um sacro-ne g óci o blasfemo e diabólico, o mesmo que, aliado ao império
opressor, c ond e nou à morte Jesus de Nazaré.
O evangelho do Reino de Deus nos convida a faze r a diferença dentro e fora da
Igreja: casa, mesa, pão repartido e serviço devem substituir templos, altares, sacrifícios e
dominações. Foi isso qu e Jesus celebrou na ceia pascal. É isso que d ev e mos continuar
testemunhando em memória dele e de seu martírio.
Pão repartido quer dizer terra repartida, bens partilhados, luta contra toda
concentração, contra o latifúndio excludente, devastador e violento. É a defesa da vida
contra todas as formas de escravidão, mesmo as que são mascaradas de crescimento e são
chamadas d e mercado.
Pão repartido é crer que nossa casa é uma oca comum ou, usando a linguag e m
bíblica, uma tenda. Nem palácios, nem templos, ne m quartéis, nem armazéns, nem
bancos, ne m especu laçõe s finance i ras .
Vamos repe t ir uma vez mais: a palavra faraó significa casa grande.
O noss o Deus, o Deus dos nossos pais e das nossas mães, o/s deus/e s dos nossos
povos ancestrais nunca estará na casa grande, apesar dos templos gigantescos que eles
construíram e conti nu arã o construindo.
Iahweh será sempre o Deus dos he bre u s
19
, dos marginalizados que querem viver
em paz, podendo desfrutar d o fruto da terra e do seu trabalho, do pão e do vinho q u e
ofertamos ao Senhor para que seja sempre de todos e de todas.
19 Segundo muitos estudiosos, o termo h e bre u vem de hapiru que, na literatura egípcia, indicava alguém que estava às
margens da sociedade, muitas vezes, com a conotação negativa de bandido, assaltante, mercenário etc.
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