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A libertação dos paradigmas arcaicos exigia uma separação das coisas antigas. Não se
trata de odiar os familiares e parentes, mas separar-se de todos os elementos que podem
significar vínculo com um passado superado. As tradições são a memória que qualquer um
carrega, mas a sua grande maioria pertence ao mundo da saudade. Muitas vezes seria como
renunciar a um avião e optar por um jumento para percorrer longas distâncias. A saudade é
um sentimento nobre, mas não move o presente.
A parênese é clara: “... ficai firmes a fim de que nos vos deixeis prender outra vez sob
o jugo da escravidão” (Gl 5,1). Essa escravidão era aquela das tradições antes do evento Jesus
Cristo, mas os Gálatas tinham caído no engodo da “vaca fria” e tinham sido “enfeitiçados”
por maus operários (Gl 3,1). Agora recebem nova advertência dos perigos de retornar ao
passado, depois de terem recebido a revelação de Jesus Cristo através do Espírito.
A prática da lei era a anulação da Cruz de Cristo (1Cor 1,17). Nessa perspectiva, era
preciso abandonar muita coisa do passado, libertando-se de preconceitos culturais que
impediam a beleza do Evangelho, tais como, as diferenças entre judeus e gregos, livres e
escravos e homens e mulheres (Gl 3,28; Cl 3,11).
A liberdade é a maturidade de discernimento, a capacidade de distinguir e optar.
Tanto a dependência cega dos princípios rabínicos atribuídos a Moisés na Torah, quanto a
prática obcecada dos ritos idolátricos geravam regimes de escravidão e submissão quer
religiosa, quer social. A liberdade, no entanto, exigia uma maior maturidade e gerava uma
responsabilidade sócio-econômica-religiosa com maior grau de comprometimento.
Paulo sabia quanto era pesado o jugo das leis rabínicas (os 636 preceitos) e o que eles
geravam. Em nome desses preceitos os judeus conservadores matavam os que não
cumpriam essas leis acreditando estar purificando os costumes, no entanto, estavam
transgredindo o Decálogo. Era mister libertar o ser humano das amarras de costumes e
práticas arcaicas a fim de conferir maior liberdade, autonomia e dignidade as pessoas. A
contribuição do helenismo, sob essa ótica, foi fundamental na vida de Paulo. A liberdade
era, em alguns casos, exagerada no mundo greco-romano, por isso Paulo advertia que a
liberdade não poderia servir de pretexto para a libertinagem ou os abusos do individualismo
e a absolutismo, considerados os desejos da carne (Gl 5,13). Na exortação paulina estava
explícito o ensinamento do aperfeiçoamento do amor à luz da assistência do Espírito Santo, pois
há um antagonismo entre as obras da carne (libertinagem ou escravidão) e as obras do Espírito:
16
Digo, porém: andai no Espírito e jamais satisfareis à concupiscência da carne.
17
Porque a carne milita contra o Espírito, e o Espírito, contra a carne, porque são
opostos entre si; para que não façais o que, porventura, seja do vosso querer.
18
Mas, se sois guiados pelo Espírito, não estais sob a lei.
19
Ora, as obras da carne
são conhecidas e são: prostituição, impureza, lascívia,
20
idolatria, feitiçarias,
inimizades, porfias, ciúmes, iras, discórdias, dissensões, partidarismos,
21
invejas,
bebedices, glutonarias e coisas semelhantes a estas, a respeito das quais eu vos
declaro, como já, outrora, vos preveni, que não herdarão o reino de Deus os que
tais coisas praticam.
22
Mas o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz,
longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade,
23
mansidão, domínio próprio.
Contra estas coisas não há lei.
24
E os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne,
com as suas paixões e concupiscências.
25
Se vivemos no Espírito, andemos
também no Espírito.
26
Não nos deixemos possuir de vã glória
28
, provocando uns
aos outros, tendo inveja uns dos outros (Gl 5,16-26, grifos do autor).
As obras da carne estão em conflito com os frutos do Espírito. As obras da carne dominam
a pessoa e ela pratica atos contrários ao seu próximo e ofendem a Deus. O pecado
desqualifica o ser humano e ele deixa de espelhar a beleza divina da sua criação, por isso
28 A expressão grega kenodoxia significa, literalmente, a glória vazia, a glória fútil e inútil. A tradução vã glória traduz
melhor o grego, pois o lexema português vanglória pode significar mais o orgulho ou ambição.
MAZZAROLO, Isidoro
Paulo e a integração: cultura, religião, corporalidade e espiritualidade
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.131, p. 39-57, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.