COMO SER CORPO MÍSTICO E
ASSEMBLEIA LITÚRGICA NA PÓS PANDEMIA
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Prof. Dr. Andrea Grillo*
DOI: https://doi.org/10.52451/teopraxis.v37i129.7
Recebido: 12 de janeiro de 2019 | Aprovado: 26 de junho de 2019
Resumo:
O presente texto quer refletir sobre o enunciado no título que me
foi proposto, isto é, quero colocar em relação ou em contraposição os termos
corpo místico e assembleia litúrgica, bem como assembleia celebrante,
que muito tem criado confusão, argumentação sem plausibilidade e até
confrontos em modos diferentes de pensar. Com a fundamentação de
documentos oficiais da Igreja vamos procurar refletir sobre estes termos,
relacionados ao contexto que estamos vivendo, sobretudo o da pandemia,
provocando o isolamento social e, desta forma, o fechamento de muitas
atividades, inclusive as da Igreja, sobretudo àquelas relacionadas às
celebrações litúrgicas.
Palavras-chave:
Corpo Místico. Assembleia Litúrgica. Igreja. Assembleia
celebrante. Pandemia.
Introdução
O título, com a sua bela formulação, nos motiva a uma
reflexão em três níveis, que se torna importante justamente
porque coloca em correlação mundos que, vistos de outras
formas, os teríamos precisamente separados: isto significa que
devemos refletir sobre a tradição da Igreja, que se auto-
1 Texto original em italiano. Tradução do Pe. Clair Favreto, doutor em Liturgia
Pastoral pelo Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua.
É professor de Liturgia e Sacramentos na Itepa Faculdades.
* É filósofo e teólogo italiano, leigo, especialista em liturgia e pastoral. Doutor em
teologia pelo Instituto de Liturgia Pastoral, de Pádua. Professor do Pontifício
Ateneu Santo Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de
Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina, de Pádua.
Também é membro da Associação Teológica Italiana e da Associação dos
Professores de Liturgia da Itália. Enail: grilloreba@gmail.com
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interpreta como
corpo místico
, em relação à outra definição, e
até diferente, definida como
assembleia litúrgica
, para
considerar que ela é mais do que um simples
ornamento
cerimonial
; e tudo isto devemos pensar nas condições de pós-
pandemia, ou seja, depois de uma passagem impressionante
que, do ponto de vista humano e teológico, é exigente e que
forçou a todos nós, por razões extra-eclesiais e extra-litúrgicas,
a uma reflexão radical sobre a identidade humana e cristã e,
portanto, também sobre a liturgia e o culto cristão.
Confrontam-se aqui três linguagens, que pertencem a
diferentes experiências e formas expressivas, o que não é fácil de
intregrá-las e harmonizá-las. Gostaria de mostrar brevemente a
complexidade deste entrelaçamento, que a condição de
pandemia de alguma forma acentuou. E, justamente por esse
motivo, nos forçou a repensá-las com profundidade, a buscar
sua raiz primeira e a nos reconciliar com a nossa história e a
nossa tradição. Por isso, gostaria, antes de tudo, analisar as três
palavras-chave do título para, depois, procurar integrá-las
numa visão unitária, que nos apontará uma mudança de rumo,
uma revisão das expressões, para obter uma experiência
eclesiástica mais profunda e autêntica, mesmo fazendo memória
de textos fundamentais, que frequentemente parecem ter sido
esquecidos.
1 Três expressões/palavras
As três terminologias relacionadas nascem de perspectivas e
preocupações parcialmente sobrepostas. Vamos analisar,
brevemente, cada uma:
a) A Igreja como Corpo Místico
Antes de Pio XII dedicar uma encíclica completa ao tema
Corpo Místico, em 1943, o termo já havia se tornado assunto há
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algumas dezenas de anos, a partir de um significado político
muito potente. Como lemos na
Vehementer Nos
2
(VN), com a
qual Pio X em 1906 comenta de maneira dolorosa as leis
francesas de separação entre Igreja e Estado, o termo é usado de
forma decididamente política:
A Sagrada Escritura nos ensina, e a tradição dos Padres nos
confirma, que a Igreja é o Corpo Místico de Jesus Cristo, um
Corpo regido por Pastores e Doutores; ou seja, uma sociedade de
homens no seio da qual há lideranças que tem plenos e perfeitos
poderes para governar, para ensinar e para julgar (Matt.
XXVIII,
18-20; XVI, 18-19; XVIII, 18
; Tit.
II, 15
; II Cor.
X, 6; XIII, 10
).
Daí resulta que a Igreja é, por sua natureza, uma sociedade
desigual, isto é, uma sociedade formada por duas categorias de
pessoas: os Pastores e o Rebanho, os que ocupam uma posição
entre os diferentes graus da hierarquia, e a multidão dos fiéis. E
essas categorias são tão distintas entre si, que apenas no corpo
pastoral residem a lei e a autoridade necessária para promover e
dirigir todos os membros para as finalidades sociais; e que a
multidão não tem outro dever a não ser de se deixar conduzir e,
como rebanho dócil, de seguir os seus Pastores (VN 22).
A expressão corpo místico se imbuiu de sentido político
quando assumiu a tarefa de decidir a relação entre Igreja,
mundo e história de forma radical. Neste sentido, usa o termo
absolutidez e não democracia, usa o termo autoridade e não
liberdade, pensa no povo de Deus como rebanho e a Igreja
como sociedade sem igual.
A retomada, em 1943, por parte de Pio XII, em um
contexto mais amplo e dramático, acrescenta outros temas, mas
não perde esse núcleo institucional da definição. Corpo
místico é, ao mesmo tempo, uma definição teológica e
sociológica da Igreja: indica nele a referência soberana da
autoridade, em relação à qual é difícil conceber uma
2 Carta Encíclica
VEHEMENTER NOS
- sobre as relações entre a Igreja e o
Estado, de Pio X, publicada em 11.02.1906.
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autonomia das realidades seculares. Assim, no termo corpo
místico, ao mesmo tempo em que acrescenta a dimensão
sacramental, tende a prevalecer um perfil institucional que
durante a pandemia procurou fazer uma leitura do contágio,
do confinamento, da distância, como uma perda de poder. E,
às vezes, tanto fora como dentro da Igreja, houve reações de
modo desproporcionado, inclusive a respeito do próprio texto
da Igreja.
b) A Igreja como assembleia litúrgica
Diferente é a linguagem da assembleia litúrgica, do povo
de Deus, da redescoberta da centralidade da celebração
litúrgica. A origem dessa expressão é ao mesmo tempo mais
antiga (do ponto de vista bíblico) e mais moderna, pois é um
dos frutos do Movimento Litúrgico e do Concílio Vaticano II
(1962-1965). Neste caso, a pandemia não coloca em questão a
autoridade da Igreja e sua soberania, mas a sua linguagem
mais delicada e primitiva, mais elementar e mais profunda. A
impossibilidade de reunir a assembleia litúrgica se torna, a este
respeito, um grave limite para a experiência de comunhão
eclesial. Assembleias impossibilitadas, ou limitadas nos gestos,
movimentos, cantos, alteraram o âmago eclesial e a
possibilidade de presença nas realidades humanas e sociais. Por
essa razão, uma reflexão sobre o impacto da pandemia para a
Igreja tomou esse perfil cultual e litúrgico de modo central.
Muitas vezes, porém, a autoridade da Igreja foi identificada
com a possibilidade de propor atos de culto, sem considerar
minimamente que a Igreja nem tanto se designa a si mesma
no seu ato de culto, mas, sobretudo, se revela à ação da graça
de Deus. De fato, ao celebrar, a Igreja nem tanto ganha poder,
mas perde poder. Ao invés, esta passagem do senhorio para a
liturgia, muitas vezes pareceu, como veremos, muito rápida e
imediata. Pouco meditada.
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c) A Igreja na circunstância da pandemia
De grande interesse é o fato de que, durante a pandemia, as
duas perspectivas que indicamos - ou seja, a natureza de corpo
místico e a de assembleia litúrgica - foram usadas numa
relação complexa, frequentemente problemática ou até mesmo
competitiva. O que quero dizer com esta observação? Que
diante da confusão causada pela epidemia tão incerta e tão
potente, que levou à tomada de medidas de isolamento e de
cuidado muito drásticas na esfera civil, a Igreja experimentou
uma forte crise de identidade, uma vez que viu suas funções
litúrgicas reduzidas ou até mesmo impedidas. Para sair desta
restrição, não é comum, mas foram usados argumentos muito
redutivos e perigosos para um desenvolvimento integral e
equilibrado da parte prática (pastoral). Por um lado, de fato,
havia a tentação de incumbir-se numa visão de corpo
místico garantido exclusivamente pela hierarquia. Parece que a
hierarquia ganhou uma margem de operatividade ritual -
mesmo ao custo de celebrar apenas de forma privativa - a Igreja
pode ser salva! Por outro lado - e este é o outro extremo das
reações - houve um total desejo de identificar a Igreja com as
próprias ações rituais a ponto de sentir como que uma
afronta violenta em cada tentativa de justificar a limitação dos
contatos, dos espaços, dos movimentos. Talvez tudo isso tenha
sido possível desde que fosse esquecido o rico e complexo
caminho que nos levou a essas novas evidências. Vamos tentar
recordar brevemente este recente caminho histórico.
2 O caminho de crescimento após o Concílio Vaticano II
As difíceis relações com a história, que sempre
caracterizaram a vida da Igreja, permitiram desenvolver
categorias de mediação através das quais a Igreja interpretou sua
identidade em relação a Deus e ao mundo. Os termos corpo
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místico e assembleia litúrgica foram usados para o mesmo
fim, mas com intenção e referências muito diferentes. Mesmo
diante da pandemia, era comum que a ênfase mais acentuada se
voltasse para a instância do corpo místico, na qual se presume
uma visão de Igreja e de mundo que o Concílio Vaticano II
queria explicitamente superar.
A pandemia, desta forma, - usando a metáfora das
máscaras em nossos rostos - deixou cair muitas destas
máscaras. As mesmas máscaras com as quais buscamos
principalmente uma identidade perene do corpo da Igreja e
que, muitas vezes, a identificamos com as imagens do século
XVIII, isto é, de forma intransigente, infalível, como sociedade
sem igual.
A Igreja deve preservar sua própria diferença. Ai se não a
fizer! Mas as categorias com as quais ela guia a esse propósito na
história, nem sempre foram as mesmas. Diante da crise da
pandemia, uma prova de responsabilidade e de colaboração
com as autoridades civis, por parte da Igreja, não é em si uma
indicação de uma perda de relevância. Uma estilização de
ritos - temporânea e até dolorosa - pode ser a passagem
obrigatória para uma Igreja que realmente quer ser o corpo de
Cristo, místico e real. A tentação de identificar corpo místico
e rito tridentino ainda permanece forte, e provém também
dos ambientes que nunca pensamos que ainda poderiam ser
assim tão atrasados, não apenas teologicamente, mas também
pastoralmente, isto é, também na maneira de celebrar.
3 O desafio para o futuro
O que podemos esperar para o nosso futuro? Eu diria,
claramente, pelo menos três aspectos:
a) Estávamos todos despreparados e reagimos como
podíamos. Onde os Estados foram solícitos pelo bem comum,
mesmo tomando medidas drásticas para restringir a livre
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circulação de pessoas, permitiram salvar vidas. Não se deve
esquecer que isso só é possível com base num certo nível de
estado social. Até mesmo o fechamento das Igrejas pode
ocorrer por meio de uma solicitação social, e até de forma
intensa, encontrando, inclusive, meios à sua disposição para
fazê-lo. Seria grave se a Igreja olhasse apenas para a própria
liberdade e negligenciasse o bem comum.
b) A suspensão das celebrações ou até mesmo a sua limitação
constituem, no entanto, uma ferida à ação normal da Igreja. A
ferida não é devida a alguém, não é um erro que alguém faz à
Igreja, mas é o resultado de decisões pensadas que podem e
devem ser aceitas. Mesmo assim, elas fazem sofrer o corpo da
Igreja que, para viver, precisa da palavra celebrada e do
sacramento compartilhado.
c) Precisamente esta condição de minoria pode abrir
espaços incríveis de recuperação no pós-covid. Se e quando
for, poderemos e deveremos voltar às nossas ações rituais com
toda a riqueza de um desejo não realizado - de linguagem
verbal e não verbal - que finalmente tomará forma, figura,
estrutura e força. Poderá ser útil lembrar que somente sendo
plenamente assembleia celebrante, daremos forma ao corpo
de Cristo, ao corpo do Ressuscitado que é o corpo místico.
4 Algumas verdades esquecidas que precisam ser
redescobertas
A diferença entre o estado de exceção relacionado à
persistência de estilos tridentinos e ao projeto do Concílio
Vaticano II nos permitirá, um belo dia, dizer que o estado de
exceção acabou. Podemos e deveremos voltar à lógica
conciliar. Portanto, o isolamento social - com todo o
sofrimento humano e comunitário que provoca faz surgir
duas lógicas opostas e antitéticas. Colabora para uma igreja
exclusivamente de padres (e de padres exclusivos) e também
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remete à iniciativa dos fiéis não clérigos e não masculinos. Em
particular, emerge, ao mesmo tempo:
a tentativa de apoiar uma igreja de emergência de apenas
padres celebrantes, que se baseia em documentos e cânones
do início da modernidade e pré-conciliares;
a tentativa de justificar o papel da assembleia, de uma
ministerialidade ampliada e do papel das mulheres, que
implica a retomada de discursos profundos e decisivos sobre
essas questões.
Tudo isso requer uma desclericalização radical e urgente,
que possa dizer três questões decisivas, não de fato novas, mas
que é urgente dizer de um modo novo.
a) Que a assembleia celebrante é o Corpo de Cristo
ressuscitado (e, portanto, não pode ser de algum modo pensada
ou considerada apenas acessória);
b) Que a assembleia precisa de múltiplos ministérios, não
apenas a presidência do presbítero;
c) Que as mulheres possam exercer funções de autoridade,
porque podem e devem ser reconhecidas como titulares de um
ministério num sentido íntegro e pleno, de um ministério
verdadeiro e não apenas de enfeite. Nas mulheres está implicado
e expressado o anúncio apostólico, do qual depende a mesma
tradição eclesiástica na sua verdade plena.
Esse caminho, pois, é difícil e, teologicamente, também é
muito exigente. Poderá colocar definitivamente no sótão
aqueles discursinhos clericais, bem selados em tristes auto-
indicativos, onde ficam radiantes em citar as frases de homens
certamente geniais, mas que viveram na época das invasões
bárbaras ou do feudalismo, e ficam negociando e
compartilhando acordos institucionais sem os terem escolhido,
mas como se fossem evangelho ou, ainda pior, como se fossem
de direito divino.
São as artimanhas típicas de uma igreja que não existe mais e
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que fica bem apenas a portas fechadas. Porque há uma Igreja
que sempre esteve de portas fechadas mesmo quando as portas
estavam bem abertas. Uma Igreja que ficou fechada em
condutas antigas, em palavras antigas, em fórmulas antigas. E
justamente agora ela se vê melhor porque realiza, plenamente, a
si mesma, graças à epidemia. E também realiza isso com uma
ingenuidade simples e, às vezes, com uma arrogância sem
pudor.
Mas não há só isso. Há, também, e bem viva, uma Igreja que
precisa urgentemente recuperar os grandes discursos, que a
oficialidade eclesial teve a força de fazer abertamente e
solenemente há 60 anos atrás e que hoje parece tão confusa
quando tem que repeti-los de forma credível. Há, porém,
aqueles que o sabem fazer. E se encontra justamente naquele
ponto alto da pirâmide que está de forma invertida
3
.
Precisamente por causa dessa condição invertida, muito antes da
atual pandemia que desertifica o mundo, mesmo quando o Papa
Franciso ainda saía no meio da multidão festiva, numa Praça de
São Pedro aberta, ele já havia aparecido gigantemente sozinho,
buscando viver numa igreja de portas abertas, mesmo que ela
preferisse continuar de portas fechadas. É aquela mesma Igreja
que se revitaliza hoje, que se permite fazer sem o povo, se
permite o substituir em tudo, por meio de um carimbaço ou de
um decreto. Se tivermos a paciência para ler os discursos
escritos nas últimas semanas por muitos dos que estão em
contatos próximos com esta cúpula da pirâmide de forma
3 Segundo o teólogo Andrea Grillo, a forma invertida quer significar que quanto
maior e mais alto grau é o ministério, tanto mais na base deve estar. Ele entende
que todo o ministério deve ser colocado a serviço. O verdadeiro ministério,
principalmente o do alto da pirâmide, deve estar embaixo, na base. Por isso usa a
expressão pirâmide invertida (rovesciata), literalmente virada, de cabeça para
baixo. É uma inspiração do Papa Francisco que insistentemente pede uma Igreja
de comunhão, do serviço, da sinodalidade. De cabeça para baixo significa que o
vértice se encontra abaixo da base e desta obtém a sua autoridade, uma autoridade
que se coloca a serviço.
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invertida, não é difícil reconhecer que essa condição paradoxal
de afastamento dobrou: o fechamento civil, duplicado pelo
fechamento da Igreja. As portas fechadas da Igreja, porém,
abrem uma
dupla responsabilidade
, extraordinariamente
complexa:
aqueles que podem estar na igreja, procurem estar de
forma diferente. Aqueles que na Igreja não podem estar, que saibam
ser igreja em outro lugar e de forma diferenciada.
a) O mínimo episcopal de teologia eucarística
Para ambas as categorias de sujeitos, não doi nada fazer um
retorno a uma das fontes decisivas do entendimento eucarístico
comum. O uso dos termos mais apropriados é, muitas vezes, o
primeiro sinal de um estilo eclesial e de um método confiável.
O texto normativo oficial, ao descrever a experiência de
celebração eucarística, nunca usa o termo missa sem povo.
O esquema usado pela
Instrução Geral do Missal Romano
(IGMR) 3ª edição, para falar das diferentes formas de
celebração eucarística, é o seguinte:
Missa com o povo;
Missa concelebrada;
Missa com a presença de apenas um ministro.
Isso acontece porque a IGMR sabe que a missa não pode ser
celebrada privativamente, mesmo que seja o Papa. A missa é,
antropológica e eclesialmente, um
evento plural e comunitário
.
Humanamente, nunca inicia de 1, isto é, de uma pessoa
somente, mas pelo menos de 2, de uma elementar
comunidade. Esta é a mesma sabedoria que permanece escrita
também no Código de Direito Canônico, quando no cânone
906 se encontra o seguinte: O sacerdote não celebre o
Sacrifício Eucarístico sem a participação de pelo menos alguns
fiéis, se não por justa e razoável causa.
Quando são feitas essas afirmações com tanta precisão, é
colocado acima de tudo o valor da celebração comunitária e
GRILLO, Andrea.
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se usa o termo caso de necessidade apenas como uma exceção,
mesmo sendo dolorosa e difícil. A sabedoria teológica se
encontra justamente em perceber e comunicar essas diferenças,
tão sutis quanto um fio de cabelo, mas tão decisivas para a
vitalidade da Igreja.
b) A Missa não é o joguinho da torre
4
A compreensão profunda de um necessário sentido
litúrgico e pastoral pode ser lida nos números 91-96 da
IGMR
5
. Vejamos o primeiro número:
A Celebração eucarística constitui uma ação de Cristo e da Igreja, que
é o sacramento da unidade, isto é, do povo santo, unido e ordenado
sob a direção do Bispo. Por isso, pertence a todo o Corpo da Igreja, e o
manifesta e afeta; mas atinge a cada um dos seus membros de modo
diferente, conforme a diversidade de ordens, ofícios e participação atual.
Dessa forma, o povo cristão, geração escolhida, sacerdócio real, gente
santa, povo de conquista, manifesta sua organização coerente e
hierárquica. Todos, portanto, quer ministros ordenados, quer fiéis leigos,
exercendo suas funções e ministérios, façam tudo e só aquilo que lhes
compete
(IGMR 91).
Dizer que a missa pertence a todo o Corpo da Igreja é a
visão mais profunda, sem qualquer competição entre os
sujeitos, o que inverteria o próprio sentido da eucaristia. Cada
um é sujeito. A lógica nunca é aquela que distingue entre livre
e submisso. Seria um erro no uso das categorias. É como se
fosse aceitar a lógica do joguinho da torre, jogo clássico e
perverso: na missa, quem é jogado da torre? o padre ou a
assembleia?
4 É uma brincadeira em que as crianças montam uma torre feita de cubos de
madeira ou de plástico com tamanhos diferentes, às vezes enumerados. O jogo
consiste em derrubar da torre os cubos sem deixá-la cair. Por fim cai também a
torre.
5 Na
Instrução Geral sobre o Missal Romano
para o Brasil, n.58-62.
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A mesma lógica inclusiva a encontramos na referência
dedicada ao presbítero (IGMR 93), na qual a autoridade de
presidência está relacionada ao serviço a Deus e ao povo. Não se
usa as categorias de objetivo/subjetivo, mas aquelas de serviço a
Deus e ao povo. Este serviço não pode ser separado, no sentido
que assim, como não se pode servir o povo sem servir a Deus,
também não se pode servir a Deus, sem servir o povo: a oferta
do sacrifício se torna presente no presidir o povo reunido.
c) Temos vergonha, talvez, de dizer assembleia
celebrante?
A resposta pode ser encontrada na brilhante e articulada
definição da função do ministro da assembleia. Aqui seria
interessante e oportuno recuperar, por parte de todos os fiéis e
ministros da Igreja, a força desses textos, sem se distrair com
documentos gravemente enganosos que tinham a ousadia de
pedir cautela no uso da categoria de assembleia celebrante.
Às vezes, de forma imprudente, essas lógicas apologéticas de
combate aos abusos, impedem de pensar com ternura a
respeito das dinâmicas da Igreja. Os bispos e os presbíteros
devem ter isso bem claro, pois presidem uma assembleia que
celebra. O ato de celebrar é constitutivamente plural e
comunitário. Para isso, retomamos o que nos diz a IGMR 95-96:
Na celebração da Missa os fiéis constituem o povo santo, o povo
adquirido e o sacerdócio régio, para dar graças a Deus e oferecer o
sacrifício perfeito, não apenas pelas mãos do sacerdote, mas também
juntamente com ele, e aprender a oferecer-se a si próprios. Esforcem-se,
pois, por manifestar isto através de um profundo senso religioso e da
caridade para com os irmãos que participam da mesma celebração. Por
isso, evitem qualquer tipo de individualismo ou divisão, considerando
sempre que todos tem um único Pai nos céus e, por este motivo, são
todos irmãos entre si
(IGMR 95)
6
.
6 Na versão português Brasil, n.62.
GRILLO, Andrea.
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Formem um único corpo, seja ouvindo a Palavra de Deus, seja
tomando parte nas orações e no canto ou, sobretudo, na oblação comum
do sacrifício e na comum participação da mesa do Senhor. Tal unidade
se manifesta muito bem quando todos os fieis realizam em comum os
mesmos gestos e assumem as mesmas atitudes externas
(IGMR 96)
7
.
Estes parágrafos evidenciam o espírito da Igreja desta
arejada apresentação da experiência eucarística. Neste horizonte
de oferta comum do sacrifício e da participação comum à mesa
do Senhor, em comunhão com a palavra e o sacramento, a
experiência da Igreja toma corpo. Desta forma, ela não se deixa
fechar numa prática de funcionários assediados, o que trairia
não apenas o
munus
episcopal, mas o próprio sentido do
ministério ordenado. Permanecer orientados por aquilo que
propõe a IGMR - para enfrentar o desafio de um tempo tão
surpreendente e desconcertante - parece-me a única maneira de
realmente ter presente, seja uma mínima unidade de ternura
eclesiástica, seja um mínimo episcopal de competência
eucarística. Depois da pandemia procuremos, pelo menos, não
nos distanciar do que diz a IGMR, isto é, de pelo menos não
dispensar da referência que ela nos propõe. E de recomeçar
tudo a partir daí.
Referências Bibliográficas
CNBB.
As introduções gerais dos livros litúrgicos
. São Paulo: Paulus, 2003.
MISSAL ROMANO
. São Paulo: Paulinas, 1992, 2ª ed.
PIO X, Papa.
Carta Encíclica Vehementer Nos
. Roma: Libreria Editrice
Vaticana, 1906.
7 Na versão português Brasil, n.62.