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O INTELECTUAL ORGÂNICO
A teologia não se deixa acorrentar
(2Tm 2,9)
THE ORGANIC INTELLECTUAL
Theology does not allowed to be chained
(2Tm 2,9)
Rogério L. Zanini*
Luiz C. Susin**
Resumo: O texto tem por objetivo compreender a missão do intelectual/
teólogo orgânico com clareza de sua opção, no sentido de ser portador de
certos valores contra outros valores, defender certos interesses contra
outros interesses; assumir a causa do reino de Deus contra o antireino.
Segundo a lição de Ellacuría e Sobrino, os pobres são o lugar epifânico da
revelação cristã e, consequentemente, do magistério cristão, porque entre
os pobres Deus quis colocar sua cátedra. De maneira límpida e profética
reconheceram explicitamente os Bispos na Conferência de Aparecida: “A
opção preferencial pelos pobres é uma das peculiaridades que marca a
fisionomia da Igreja latino-americana e caribenha” (DAp. 391). Para dar
conta desta questão, se pretende refletir o significado de uma teologia
profética que desce aos crucificados honrando a realidade das vítimas da
história em vista de sua ressurreição/libertação. Segue-lhe um segundo
aspecto, no qual se aborda a missão da teologia como um pensar as feridas
e resgatar a vida para que o mundo seja transformado na perspectiva do
seu Criador; e por fim, no terceiro ponto, compreender a vida e o legado
de padre Elli Benincá, um mestre inspirador do Instituto de Teologia e
Pastoral de Passo Fundo-RS, como um case de intelectual/teólogo
orgânico. Em conclusão, se realça a importância e atualidade/ousadia deste
método que tem o teólogo na postura de intelectual orgânico, pois é em si
uma postura profética diante da realidade virtual, individualista e
capitalista que marca o século XXI.
Palavras-chaves: Teologia. Profecia. Intelectual Orgânico. Benincá.
Abstract: The text aims to understand the mission of the organic
intellectual/theologian with clarity of mission, in the sense of being the
bearer of certain values against others, to defend certain interests against
others, to take up the cause of the Kingdom of God agains the other anti-
kingdoms. According to Ellacuria and Sobrino’s lesson, the poor are the
epiphany of Christian revelation and, consequently, of the Christian
magisterium, because among the poor God wanted to place his chair. In a
limpid and prophetic way, Bishops explicitly recognized at the Aparecida
Conference: “the preferential option for the poor is one of the peculiarities
that marks the face of the Latin American and Caribbean Church” (DAp.
v. 39, n. 132, Passo Fundo,
p. 35-46, Jan./Jun./2022,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v39i132.73
* Padre da Diocese de Chapecó/SC. Doutor e
Mestre em Teologia pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
PUCRS. Especialista em Metodologia
Pastoral pela Universidade Regional
Integrada do Alto Uruguai e das Missões -
URI. Graduado em Teologia pelo Instituto de
Teologia e Pastoral (Itepa) e em História pela
Universidade do Oeste de Santa Catarina -
UNOESC. Professor da Faculdade de
Teologia e Ciências Humanas de Passo
Fundo.
E-mail: zaninipastoral@hotmail.com
http://orcid.org/0000-0001-8771-3799
** Bacharelou-se em Teologia pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul
- Faculdade de Teologia (1979) e Licenciou-
se em Filosofia pela Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Ijuí (atual Unijuí) (1971).
É Mestre e Doutor em Teologia pela
Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma
(1979-1983). Atualmente é professor na
Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul como professor permanente e
pesquisador do programa de pós-graduação
em Teologia, professor na Escola Superior de
Teologia e Espiritualidade Franciscana, de
Porto Alegre, membro da Equipe
Interdisciplinar de Assessoria da Conferência
dos Religiosos do Brasil, Secretário Geral do
Fórum Mundial de Teologia e Libertação. Foi
membro do Comitê de Redação da Revista
Internacional de Teologia Concilium por
quinze anos (2000-2015) e atualmente atua
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INTRODUÇÃO
O presente texto tem por objetivo compreender a missão do
intelectual/teólogo ornico com clareza de sua opção, no sentido de ser
portador de certos valores contra outros valores, defender certos
interesses contra outros interesses; assumir a causa do reino de Deus
contra o antireino. O teólogo como intelectual orgânico é alguém que se
encontra estreitamente vinculado social e economicamente com os
insignicantes (Gustavo Gutrrez), ou pessoas inviveis da história
(linguagem realçada pela pandemia). Ora, seu objetivo maior é a
organização e a construção de estruturas diferenciadas no seio social,
como aquele que auxilia na elaboração de conceões que proporcionem
novas formas de vida em que todos tenham vida em abundancia como
pregou Jesus. Na perspectiva teológica, esta concepção de teólogo como
intelectual orgânico possui como verdadeira missão a constrão de um
agir encarnado na história, cujo projeto maior de vida é, na formulação
de Ellacuría e Sobrino, “descer da cruz os povos crucicados
1
. Tal conceão
mostra-se extremamente desafiadora, especialmente nestes tempos de
sociedade líquida (Baumann) e de tendência de retorno a “uma teologia
de escritório” (Papa Francisco), contextos que exigem, tendo por norte a
teologia latino-americana e caribenha, manter-se fiel na originalidade da
opção pelos pobres e contra a pobreza. Segundo a lão de Ellacua e
Sobrino, os pobres são o lugar epinico da revelão cris e,
consequentemente, do magistério cristão, porque entre os pobres Deus
quis colocar sua cátedra. De maneira límpida e protica reconheceram
explicitamente os Bispos na Confencia de Aparecida: A opção
preferencial pelos pobres é uma das peculiaridades que marca a
sionomia da Igreja latino-americana e caribenha(DAp 391).
Para dar conta desta questão, a presente reflexão se desenvolve
em três direções. Em primeiro lugar, pretende refletir o significado
de uma teologia profética que desce aos crucificados honrando a
realidade das vítimas da história em vista de sua ressurreição/
libertação. Segue-lhe um segundo aspecto, no qual se aborda a
missão da teologia como um pensar as feridas e resgatar a vida para
que o mundo seja transformado na perspectiva do seu Criador; e por
fim, no terceiro ponto, compreender a vida e o legado de padre Elli
em seu comitê científico. Foi presidente da
Associação de Teologia e Ciências da
Religião (SOTER) no triênio 1998-2001, da
qual é cofundador. Foi professor convidado
na Universidade Antoniana de Roma, no
Instituto de Teologia e Pastoral da
Confederação Episcopal da América Latina
em Bogotá. Foi professor colaborador na
Faculdade de Filosofia da PUCRS, em Ética
ambiental e Metafísica e na Faculdade de
Filosofia da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, em Ética e Filosofia da
Religião. Em 2011 realizou estágio pós-
doutoral na Georgetown University, de
Washington.
E-mail: lcsusin@pucrs.br
http://orcid.org/0000-0002-9475-8941
Recebido em 27/10/2021
Aprovado em 05/05/2022
391). To address this issue, it is intended to reflect the meaning of a
prophetic theology, who descends to the crucified, honoring the reality of
the victims of history in view of their resurrection/deliverance. A second
aspect follows, in which the mission of Theology is approached as a way of
thinking about wounds and rescuing life for the world to be transformed
in the perspective of its Creator; and finally, in the third point, to
understand the life and legacy of Father Elli Benincá, an inspiring teacher
of the Theology and Pastoral Institute of Passo Fundo-RS, as an organic
intellectual/theologian case. In conclusion, it highlights the importance and
topicality/boldness of this method that has the theologian in the position of
organic intellectual, because it is,in itself,a prophetic posture in the face of
the virtual, individualistic and capitalist reality that marks the 21st Century.
Keywords: Theology. Prophecy. Organic Intellectual.
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1 As expressões “povos crucificados” e “descer da cruz os povos crucificados” foram criados por Ignácio Ellacuría. Cf.
Jon SOBRINO, Jesus, o Libertador, p.366.
2 Jürgen Habermas, na linha de Michel de Foucault, aprofundou a análise da relação entre conhecimento e interesse,
da presença e operação do interesse no conhecimento, o que, até por questão de honestidade, não pode, mas deve
ser explicitado pelo intelectual. Cf. Jürgen HABERMAS, Conhecimento e interesse. São Paulo: Unesp, 2014.
3 Jon SOBRINO, A em Jesus Cristo, p.13 (grifo do autor). Segundo Sinivaldo Tavares, essa é uma das peculiaridades da
Teologia da Libertação. “Gostaríamos ainda de ressaltar uma peculiaridade da TdL que a coloca, para todos os efeitos,
em uma condição de ruptura epistemológica em relação à Modernidade ocidental. À diferença de teologias que,
ingênua ou intencionalmente, não revelam sua perspectiva epistemológica, apresentando-se como neutras e
universais, a TdL assume-se enquanto discurso elaborado a partir de uma situação concreta e de suas respectivas
indagações. Desde o seu nascedouro, a TdL tem manifestado claramente a consciência de se constituir em discurso,
para todos os efeitos, parcial: uma teologia que não tem pudor de se construir a partir dos pobres para libertá-los da
condição à qual encontram-se submetidos injustamente” (Por uma transformação intercultural da teologia. REB, v.
78, n. 311, 2018, p.717).
4 Pedro TRIGO. Distinción entre orden establecido y realidad: por honradez con la realidad. Disponível em: https://
revistas.uca.edu.sv/index.php/rlt/article/view/5747. Acesso em 8 de janeiro de 2022.
5 Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2019-2023, n.110.
Benincá, um mestre inspirador do Instituto de Teologia e Pastoral de Passo Fundo-RS,
como um case de intelectual/teólogo orgânico.
1 HONRADEZ PELA REALIDADE DAS VÍTIMAS
De alguma forma todas as teologias possuem como fonte originária elementos que
se encontram na realidade, uma vez que o teólogo, como parte integrante deste mundo
real, com ele convive e interage. Consequentemente se assume sempre a partir de uma
tomada de posição nesta realidade, na qual testemunha sua e reflete teologicamente. Por
isso, ao se referir à honradez para com a realidade se está adentrando nela com capacidade
de se colocar em uma situação que a atinge um universo próprio de forma configuradora.
Como intelectual, todo teólogo assume um ponto de vista, toma uma posição e elabora seu
pensamento em vista de objetivos e interesses concretos pessoais e/ou coletivos
2
.
A Teologia da Libertação reconhece que sua teologia toma parte e se posiciona desde
a parte dos pobres, portanto é parcial e notoriamente declarada em vista da opção pelos
pobres e excluídos. Seguindo Jon Sobrino: “todo pensamento se acha situado em algum
lugar e nasce de algum interesse; tem uma perspectiva, um lugar de onde e um para
onde, um para que e um para quem”. E a partir disso declara o objetivo de sua teologia:
parcial, concreta e interessada: as vítimas deste mundo”. E o motivo está na revelação de
Deus e também na realidade do mundo atual, embora isto sempre se configure dentro de
um círculo hermenêutico
3
.
No caso, de Sobrino, segundo o teólogo Pedro Trigo a “honradez com a realidade” se
configura no modo estruturante de sua preocupação teológica. Para Trigo, em Sobrino é
central este ponto de vista, porque insiste de tal maneira na honradez com a realidade, que
esta pode ser considerada como um elemento estrutural do seu pensamento e modo de ser.
A honradez para com o real não é um simples conteúdo, uma vez que possui suas raízes na
identidade cristã. O teólogo como “animal de realidades” precisa refletir e se deixar afetar
por coisas reais. Dizendo de modo simples: teologia com sentido de realidade
4
.
Os Bispos, nas Diretrizes para a evangelização, reconhecem que “contemplar o
Cristo sofredor na pessoa dos pobres significa compreender as causas de seus flagelos,
especialmente as que os jogam na exclusão”
5
. Esta afirmação contempla duas questões
profundas e determinantes que alicerçam a tomada de posição em favor e na opção pelos
pobres por parte da Teologia da Libertação. Uma primeira consiste num verdadeiro
axioma: contemplar Cristo conduz ao pobre. E, assim, não se pode compreender um ou
outro de forma separada, com o grave perigo de perder a identidade cristã. Aqui vale
recordar o debate acalorado e fecundo entre alguns teólogos da libertão em
ZANINI, Rogério L.; SUSIN, Luiz C.
O Intelectual Ornico: A teologia o se deixa acorrentar (2Tm 2,9)
Revista Teopxis,
Passo Fundo, v.39, n.132, p.35-46, Jan./Jun./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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contraposição à perspectiva tornada pública por Clodovis Bo após a assembleia do
CELAM em Aparecida. Para Bo, a primazia da está em Cristo, mas os pobres teriam
ocupado, na Teologia da Libertação, o lugar de Cristo, ocasionando um dano irreparável
à fé. Ele reitera: a Teologia da Libertação “colocou os pobres em lugar de Cristo”. Dessa
“invero de fundo resultou um segundo equívoco: instrumentalização da ‘para a
libertação
6
. O teólogo Érico J. Hammes, tecendo cticas a este argumento, traz à lume o
esquecimento dos pobres ao longo da história do cristianismo. A opção pelos pobres
aparece na Igreja na segunda metade do século XX”. E acrescenta: “os pobres nos ajudam
a encontrar Jesus e, no momento em que percebemos essa relação, muda nossa
concepção cristogica. Falamos aqui de uma espécie de rculo hermenêutico entre os
pobres e Jesus Cristo”
7
.
A segunda questão se refere às causas da pobreza e o compromisso de libertação que
tem seu alicerce na cristã. A partir da experiência latino-americana, Gustavo Gutiérrez
lembra que “o compromisso libertador significa para muitos cristãos uma autêntica
experiência espiritual, no sentido original e bíblico do termo: um viver no Espírito que
nos faz reconhecer-nos livres e criativamente filhos do Pai e irmãos dos homens
[humanos]”
8
. Segundo Celso Pinto Carias, estes dois elementos se encontram
intrinsecamente unidos, “o espiritual indica uma teologia como um discurso
predominantemente calcado na experiência de cristã, e o da libertação as consequências
de uma teologia enraizada no Mistério Pascal”
9
.
Esta é uma dimensão e uma experiência pouco valorizada pela maioria dos que se
afirmam cristãos, porque pensam que as realidades de carne e osso ligadas à vida, tais como
a saúde, o alimento, a moradia, o trabalho, a política ... devem acontecer à margem da fé,
como ação social e responsabilidade do Estado, e à margem dos âmbitos e espaços eclesiais
e da própria Igreja, que quanto muito assume a ação social como suplência.
2 A MISSÃO DA TEOLOGIA: PENSAR AS FERIDAS E RESGATAR A VIDA
Definir o papel da teologia em meio à complexidade das relações e as atuais
conjunturas socioeconômicas, políticas, culturais e religiosas não é uma tarefa cil. Em
diferentes épocas, e a partir de acontecimentos históricos e sociais diversos, a discussão sobre
a missão da teologia volta ao debate. Com o decorrer do tempo o fazer teológico e o próprio
conceito de teologia sofrem as influências da sociedade, às vezes em uma espécie de modismo
passageiro, em outras fixa-se em perspectivas e objetivos lucrativos, com ações e práticas de
cunho idolátrico. Em teologia, como em outros discursos contemporâneos, na sociedade
fluida e que prima por discursos e relacionamentos superficiais, as temáticas parecem não
conseguir se sustentar por muito tempo, especialmente quando tocam em questões
relacionadas à forma como se encontra estruturada a sociedade.
Neste tipo de estrutura de sociedade, aos teólogos e à teologia se exige sem rodeios e
com insistência, para que se diga coisas novas, e quando estas não são ditas ou ainda não
encontram eco junto aos formadores de opinião, são descartadas como produtos fora da
“moda”. Ou são rotuladas e relegadas ao passado como discursos ‘sem lugar’, como sal ‘sem
sabor’. Neste sentido, estão os que dão por encerrada, morta ou ultrapassada, a Teologia da
Libertação, buscando novas inspirações em algumas correntes do pensamento europeu ou
6 Clodovis BOFF, Teologia da Libertação e volta ao fundamento. REB 67, p.1001.
7 Luiz C. SUSIN, e Érico J. HAMMES, Teologia da Libertação após Aparecida volta ao fundamento? Disponível em: <http://
www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=ES&langref=PT&cod=33420>. Acesso em: 16 ago. 2011.
8 Gustavo GUTIÉRREZ, Práxis de libertação. Teologia e anúncio. Concilium, n. 10 (1974/6). p. 742.
9 Celso Pinto CARIAS e Aurelina de Jesus CRUZ CARIAS, Outra teologia é possível, outra Igreja também. p.61.
ZANINI, Rogério L.; SUSIN, Luiz C.
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norte-americano. Outros apontam com entusiasmo e sereno otimismo sua validade nas
sugestivas insinuações de Aparecida, com relão à contribuição de um método e de um
pensamento em vista da formão de discípulos-missionários na Igreja do Continente,
assegurada atras do método ver, julgar e agir (DAp 19). De toda maneira é preciso reconhecer
os sinais de que algo novo vem ocorrendo em relão à refleo teológica latino-americana,
mais sutil e senvel: algo assim como a presea do Reino de Deus, nem sempre evidente
10
.
O modo de fazer teologia que se desenvolveu na América Latina e no Caribe depois
do Concílio Vaticano II e da recepção criativa/profética da Conferência de Medellín
produziu uma época de florescimento teológico. A originalidade desta teologia encontrou
seu alicerce/sustentáculo na grande tradição teológica que unificou a em Jesus Cristo
com a dura realidade dos pobres e marginalizados, tradição que remonta a Antônio
Montesinos, Bartolomeu de las Casas e tantos outros e outras que alargam a lista de
testemunho martirial
11
.
Neste sentido, assumindo a perspectiva levada a cabo pelos teólogos da libertação,
tais como Leonardo Bo, Jon Sobrino, Pedro Trigo e outros, se aprende que este modo de
produção teológica permanece (sempre a mesma), enquanto existirem estruturas
excludentes que produzem marginalizados e desigualdades sociais. Na opção pelos pobres e
contra a pobreza se fixa a pedra angular da teologia cristã. E isso não por modismo, mas por
exigência do Evangelho, pois como afirma o Papa Francisco, “existe um vínculo indissolúvel
entre a nossa e os pobres” (EG 48). Ora, aqui se pode compreender a insistência profética
de Sobrino quando elabora a paráfrase “fora dos pobres não salvação”
12
.
É evidente que os contextos se transformam e a reflexão teológica precisa estar
atenta aos “sinais dos tempos” (Mt 16,3), mas é certo que, como assegura Ellacuría, os
pobres são o sinal perpétuo de Cristo neste mundo injusto, porque são expressão da
crucificação de Jesus na história. Por isso, “esse povo [crucificado] é a continuação
histórica do Servo de Javé, a quem o pecado do mundo continua a tirar toda figura
humana, à qual os poderes desse mundo continuam a despojar tudo, continuam
arrebatando-lhe a vida, sobretudo a Vida”
13
.
As teologias, portanto, precisam certamente acompanhar as mudanças da sociedade
e das épocas, sem, no entanto, se desviar do ser humano caído no caminho, critério
sempre lido e atual que imprime salvação ou condenação para os cristãos segundo o
critério cristão originário do Evangelho. É o próprio Papa Francisco que recoloca os
pobres no centro da cristã como caminho salvífico devido à sua presença em toda a
tradição cristã. “Todo o caminho da nossa redenção está assinalado pelos pobres” (EG 197).
Francisco compreende que o imperativo evangélico que mais urge ser anunciado neste
momento da história agravado especialmente pela pandemia da Covid-19 e pela ameaça
de guerra difusa – é a fraternidade humana. Progressivamente, ele tem acentuado esta nota
essencial do cristianismo, propondo como “ícone iluminadora” a parábola do Bom
Samaritano (Lc 10,25-37), “capaz de manifestar a opção fundamental que precisamos fazer
para reconstruir nosso mundo ferido” (FT 67). Ser, portanto, “bons samaritanos” e não
“viandantes indiferentes”, por mais sagradas que consideremos outros empenhos, é a
opção que se impõe a cada pessoa de boa vontade neste momento (FT 69).
10 Pedro TRIGO, ¿Ha muerto la teología de la liberación? Bogotá: Pontificia Universidad Javeriana, Facultad de Teología,
Departamento de Teología, 2005. Entre outros elementos analisados, assinala o que disse os opositores, as razões
alegadas e algumas propostas significativas da teologia da libertação.
11 Ignacio Madera Vargas. Algunas consideraciones acerca del todo en teología latinoamericana. p.17. ¿Es
pertinente la Teoloa de la Liberacn hoy? Aportes de Amerindia Colombia. Amerindia. Septiembre 2020,
p.15-34.
12 Cf. Jon SOBRINO, Fora dos pobres não salvação: pequenos ensaios utópicos-proféticos. São Paulo: Paulinas, 2008.
13 Ignacio ELLACURÍA, El pueblo crucicado signo de los tiempos, p.1.
ZANINI, Rogério L.; SUSIN, Luiz C.
O Intelectual Ornico: A teologia o se deixa acorrentar (2Tm 2,9)
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Dessa forma, os pobres e a salvação são dimensões que se implicam, exigem-se
mutuamente e remetem à mais profunda mensagem da cristã. Mais: os pobres, além
disso, se constituem no lugar o locus theologicus - do qual tudo se melhor e mais
profundo. Inclusive que observar que o “desde os pobres”, que é uma parcialidade
histórica, além de ser uma exigência da cristã não causa limitação à plenitude
escatológica. No entanto, “desde os pobres” faz acontecer uma mudança epistemológica
transformadora, não observável a partir de outro ponto. Assim indica o Papa Francisco em
sua visita à paróquia dos santos Isabel e Zacarias, na periferia de Roma: “se entende melhor
a realidade não a partir do centro, mas das periferias”
14
. Assumir a realidade desde baixo
significa atentar para esses movimentos que principiam uma nova lógica para o mundo.
Em palavras de Ellacuría: “há lugares mais propícios ao surgimento de utopias proféticas e
de profetas utópicos”
15
.
Em tempos de vários ópios e distrações, como futebol, fake news e outros
espetáculos, vislumbram-se sinais de esperança. Criar oportunidades de avançar desde o
reverso da história e nas brechas da história para outro mundo possível, como se tem
afirmado, tornou-se absolutamente necessário e extremamente urgente. Por isso, com
razão e urgência, seguindo o veio libertador do evangelho, o Papa Francisco vem
desafiando os teólogos e as comunidades eclesiais para um estilo de vida de acordo com o
projeto do Reino de Deus. Retoma-se, desta forma, a primazia do pastoral sobre o teológico,
o que para muitos teólogos e mesmo cristãos de escritório, causa calafrios e relutância
16
.
O recuo para a teologia de escritório trouxe limitações teológicas, tal como o
distanciamento dos teólogos da realidade do povo. Não seria essa uma das causas que
forçou a um certo academicismo dentro do mundo teológico? Novamente o Papa
Francisco tem exortado para essa realidade: não se contentar com uma teologia de
escritório. O lugar de reflexão teológica devem ser as fronteiras, as ruas, onde os teólogos
e pastores sintam o odor do povo e da rua, derramem azeite e vinho sobre as feridas das
pessoas
17
. Por isso, é importante questionar-se: “em quem pensamos quando fazemos
teologia? Que pessoas temos diante de s? Sem este encontro com a família, com o Povo
de Deus, a teologia corre o grande risco de se tornar ideologia”
18
.
Esse chamamento do Papa Francisco parece ser novamente um reenvio para “realmar”,
dar alma novamente à atuação e inserção junto às CEBs, buscar a honradez que se deve para
com a realidade... Segundo o Papa, o risco maior de ideologia está em construir uma teologia
de escritório, desde as sacadas ao ins do meio da rua, ou uma Igreja de sacristia, fechada
sobre si e com medo do mundo. Ambas as coisas levam ao perigo histórico de sempre: o
docetismo teológico e eclesial
19
. Neste sentido, Jon Sobrino, mantendo fidelidade à
tradição teológica latino-americana e preocupado com um fazer teológico encarnado nos
problemas e dores dos pobres, sentenciava antes do Papa o perigo da teologia atual.
14 Papa FRANCISCO. Visita à paróquia romana dosSantos Isabel e Zacarias.
15 Ignacio ELLACURÍA, Utopía y profetismo. In: I. ELLACURÍA e J. SOBRINO (Org.). Mysterium Liberationis. v. 1,
p.393. Tradução nossa.
16 Cf. Antonio MANZATTO, Jesus Cristo, p.10-13.
17 Cf. Carta do Papa Francisco por ocasião do Centenário da Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Católica
Argentina. Disponível em:https://www.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2015/documents/papa-
francesco_20150303_lettera-universita-cattolica-argentina.html. Acesso em 19 de abril de 2022.
18 (VATICANO. Mensagem do Papa Francisco ao congresso de teologia junto da Pontifícia Universidade Católica
argentina). Ibidem.
19 Doutrina existente nos séculos II e III que negava a existência de um corpo de carne a Jesus Cristo, que seria espírito
com aparência corpórea apenas. Traduzindo para o contexto latino-americano e caribenho, seria uma teologia sem
corpo, sem o chão dos pobres.
ZANINI, Rogério L.; SUSIN, Luiz C.
O Intelectual Ornico: A teologia o se deixa acorrentar (2Tm 2,9)
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O que mais me preocupa na teologia é sua tendência ao docetismo, isto é, a
criar um âmbito próprio de realidade que a distancie e a desentenda da
realidade real, ali onde o pecado e a graça se fazem presentes. Este docetismo,
que normalmente é inconsciente, pode muito bem levar ao aburguesamento,
isto é, a prescindir dos pobres e vítimas que são maioria na realidade e são a
realidade mais flagrante
20
.
Outra querela atual que também intriga a teologia, uma realidade com graves
consequências, é a falta de utopia. Não serve qualquer utopia, mas aquela que melhor
corresponda à teologia do Reino de Deus pregado por Jesus. Em uma sociedade onde
crescem as disparidades sociais, políticas e econômicas, a teologia precisa fazer valer sua
esperança profética. Neste quesito a teologia pode surgir, segundo Susin, como uma teologia
“exorcista”, capaz de desmascarar a violência legitimada pela sacralidade, e assim refazer
saudavelmente o tecido social e eclesial. Haja vista os momentos históricos em que a religião
tem servido para justificar e promover uma paz sem justiça, onde os pobres e as vítimas são
responsabilizados pelo fracasso do sistema dominante, em nosso caso o sistema capitalista
21
.
Nesta mesma direção tem observado Aquino Junior:
Basta ver como os grupos e os governos de extrema direita na América Latina,
nos EUA e na Europa se reconhecem como cristãos’, justificando
‘religiosamente’ sua política econômica neoliberal, sua aversão aos direitos
humanos, suas mais diversas formas de preconceito e racismos e até mesmo seu
caráter e suas práticas fascistas e/ou nazistas. O atual governo brasileiro é o
exemplo mais claro e transparente de perversão e manipulação da cristã:
‘Brasil acima de tudo; Deus acima de todos’
22
.
Bem de acordo com as denúncias do Papa Francisco é preciso superar esta “economia
que mata”, o que exige caminhar em direção a “adotar outro estilo de vida, menos voraz,
mais sereno, mais respeitador, menos ansioso, mais fraterno” (QA 58).
Para agir com honradez dentro deste contexto é fundamental trabalhar com uma
“teologia exorcista”, com a finalidade de esconjurar falsas teorias e concepções que são
avessas à mensagem do Reino de Deus. É neste horizonte de trabalho por uma inversão
plena, no sentido de colocar o mundo no caminho real da vida, que supere as práticas de
violências justificadas, que Susin fala de uma teologia como exorcismo. Para Susin, hoje
precisamos de uma teologia que seja capaz de exorcizar todas as formas de violência; a
libertação pode ser entendida também como o resultado positivo do exorcismo que
nome à realidade e desmascara seus falsos nomes. Assim, a teologia da libertação é uma
teologia que começa por reconhecer o pecado presente na sociedade e as responsabilidades
por estes pecados incrustados em sua estrutura infetada pelo vírus letal do mercado
capitalista em que o capital está acima, é mais sagrado, do que as pessoas e seu trabalho.
Para esta tarefa profética e exorcista são necessários teólogos, sociólogos,
historiadores, que atuem como intelectuais orgânicos, capazes de apontar as contradições,
denunciar as injustiças e, de certa forma, desconstruir os “intelectuais convencionais”, na
linguagem de Antonio Gramsci, ou ainda mais claramente, desconstruir os intelectuais de
corte. Trata-se de uma teologia de libertação capaz de desmascarar os ídolos fascinantes do
sistema imperialista que provocam a morte de multidões de pobres e excluídos.
20 Jon SOBRINO, Teología desde la realidad. In: Luiz C. SUSIN (Org.). O mar se abriu, p.168.
21 Anotação de palestra proferida online para o colegiado superior do ITEPA, 09/12/2021.
22 J. AQUINO, Francisco de. Teologia e o poder da libertação. Concilium, 386, (2020/3), p.91.
ZANINI, Rogério L.; SUSIN, Luiz C.
O Intelectual Ornico: A teologia o se deixa acorrentar (2Tm 2,9)
Revista Teopxis,
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3 ELLI BENINCÁ: UM TEÓLOGO-INTELECTUAL ORGÂNICO
Despois deste caminho reflexivo, nossa atenção se volta para o legado do padre Elli
Benincá como intelectual orgânico. A intenção, aqui, é explicitar sua proposta
metodológica como um verdadeiro ‘intelectual orgânico’, considerando-se o conceito
clássico formulado pelo filósofo italiano Antônio Gramsci
23
.
Em primeiro lugar, precisamos elucidar a categoria de intelectual orgânico, para
julgar quanto cabe a Benincá e quanto ele mesmo ajuda a compreender melhor este papel.
Sabe-se que para um teólogo da libertação, comprometido com a práxis teológica é
adequado o conceito de “intelectual orgânico”, ou mais especificamente “teólogo orgânico”.
É aquele que está intrinsecamente comprometido com uma classe social, que assume a sua
causa e reflete caminhos alternativos sempre com uma preocupação de superar as mazelas
sociais e resgatar a vida a partir dos últimos. O conceito de intelectual orgânico,
originalmente de Gramsci, foi incorporado pela Teologia da Libertação porque o
verdadeiro teólogo precisa estar conectado indispensavelmente com a base das minorias
sociais mesmo aquelas que são maiorias em número que são subalternas e que sofrem
as consequências de assimetrias injustas. O Papa Francisco, pastoralmente cuidadoso em
suas palavras, mas ao mesmo tempo sem meias palavras, aponta recorrentemente, de
forma ampla, para as “periferias existenciais e sociais”.
Este pertencimento direcionado às periferias e aos pobres é condição e critério de
atuação de um intelectual orgânico, segundo Antônio Gramsci.
O erro do intelectual consiste em acreditar que se possa saber sem compreender
e, principalmente, sem sentir e sem estar apaixonado (não pelo saber em si,
mas também pelo objeto do saber) isto é, em acreditar que o intelectual possa
ser um intelectual [...] mesmo quando distinto e destacado do povo nação, ou
seja, sem sentir as paixões elementares do povo, compreendendo-as e, assim,
explicando-as em determinada situação histórica, bem como relacionando-as,
dialeticamente às leis da história, a uma superior concepção do mundo,
científica e coerentemente elaborada, que é o “saber”
24
.
Seja em Gramsci ou seja na Teologia da Libertação, a falta de vínculo orgânico pode
distorcer a visão do intelectual e como consequência tirá-lo do solo sagrado da práxis. É na
práxis, na verdade, o lugar onde se encontram os reais fundamentos de todo engajamento
teológico na luta das pessoas, dos grupos excluídos e dominados, com o objetivo da
libertação/salvação. Partindo do conceito ou da compreensão de intelectual orgânico, e de
um ponto de vista de um fazer teológico crítico que tenha por finalidade a libertação de
todas as opressões e desigualdades sociais, em última análise o teólogo orgânico está
presente e intervém intelectualmente na realidade a partir de baixo, tendo como ponto de
partida os sofrimentos e as esperanças, as lágrimas e alegrias dos pobres e excluídos.
Ao analisar agora o pensamento teológico de Benincá pode-se aproximá-lo do
conceito de intelectual orgânico elaborado por Gramsci. Em sua pesquisa de mestrado,
23 Antônio Gramsci, escritor italiano nascido em 1891 na ilha de Sardenha, uma das regiões mais pobres da Itália,
cresceu numa família de classe baixa e desde cedo conviveu com o fato de ter que deixar os estudos para ajudar em
casa. Quando retornou à escola, destacou-se entre os demais estudantes. Cursou Letras em Turim, onde ingressou no
Partido Socialista Italiano (PSI) no qual teve grande atuação como jornalista escrevendo para o órgão oficial do
partido e para outros órgãos socialistas da Itália. Entretanto, o PSI seguia uma linha economicista de interpretação
do marxismo, combinada com uma influência positivista da qual Gramsci discordava. Através da discussão sobre
uma “filosofia da práxis” desenvolvida por Giovanni Gentile intelectual provindo também do sul da Itália
Gramsci, inspirado na ação dos bolcheviques na Rússia, argumentava sobre as condições culturais para o início do
processo revolucionário cuja classe operária seria o ator principal. Jordana Souza SANTOS, Gramsci e o papel dos
intelectuais nos movimentos sociais. Revista Espaço Acadêmico, ano IX, n.102, nov. 2009. Disponível em:http://
eduem.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewFile/7128/4819 Acesso em: 20 jul. 2017.
24 Antônio GRAMSCI, Concepção dialética da história, p.139.
ZANINI, Rogério L.; SUSIN, Luiz C.
O Intelectual Ornico: A teologia o se deixa acorrentar (2Tm 2,9)
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analisando os conflitos religiosos na ação política do Movimento dos Sem-Terra (MST),
ele mesmo realça a importância dos intelectuais orgânicos. Em sua dissertação retoma este
conceito aplicando-o ao MST, que forma seus líderes em vista dos processos de
conscientização, organização e lutas sociais e políticas
25
. Afirma Benincá que o MST: “tem
seus próprios intelectuais, que procuram o se distanciar da cultura e religiosidade
popular dos trabalhadores”
26
. Na ocasião, retoma o exemplo do deputado estadual, Adão
Preto, que, no ano de 1987, no exercício de legislador, reconheceu em entrevista que se
identificou com a Teologia da Liberação e com a parte da Igreja que assume essa teologia.
A mudança na consciência de Adão ocorreu enquanto agente de pastoral engajado nas
lutas dos sem-terra e nas atividades sindicais
27
.
Benincá reconhece que o MST forma seus líderes que pensam e refletem a ação de
sua classe.
São intelectuais a seu modo, uma vez que não são escritores nem artistas, mas
os cérebros do movimento; aqueles que se imiscuem na vida prática, constroem
o processo de luta social, organizam os agricultores “Sem-Terra”, atuam junto
aos acampados e aos agricultores, persuadindo-os a continuarem na luta,
buscando sempre uma fundamentação teórica, religiosa ou social para dar
compreensão às suas lutas políticas
28
.
Desentranhando estas palavras de Benincá, é possível chamar atenção ao menos para
três questões, no que contribui para a identidade ao intelectual orgânico. Uma primeira,
quando se refere a intelectuais ao seu modo, ou seja, que não dependem exclusivamente da
educação formal, mesmo que esta não seja desprezada. Significa que podem ser analfabetos
nos critérios da sociedade vigente e intelectuais ao seu modo. Entraria aqui a concepção de
saberes diferentes, pluralismo de saberes defendido pelo educador brasileiro Paulo Freire.
Uma segunda questão, a necessidade da inserção prática na vida e na luta social, de onde
brota o testemunho e a necessidade de trabalhar para mudança de mentalidade e a
transformação social/política/religiosa. Uma terceira e última questão, a necessidade de
fundamentação teórica, religiosa e social para avançar na compreensão e conscientização
das massas. No caso, Benincá utiliza a simbologia da Bíblia e da cruz para ressignificar a
prática e a concepção teológica entranhada nos acampados.
A função do intelectual orgânico é encontrar estratégias de luta, formar na prática
política, e mesmo fazer conexão com outras categorias de intelectuais, como sociólogos,
antropólogos e cientistas políticos. Desta forma, segundo Benincá, a organização do MST
estudada por ele conseguiu criar uma camada de intelectuais próprios, nem todos com o
mesmo nível formal, mas capazes de compreender a lógica ou, melhor, a dialética do
processo histórico, e em condições de dirigir e orientar o movimento. Todavia, seguindo o
estudo de Benincá, o reconhecimento e a legitimidade da função que os líderes do MST
exercem como intelectuais não lhes vêm apenas da classe, ou, no caso, dos acampados que
dão consentimento às suas propostas políticas, mas de outras categorias de intelectuais e,
principalmente, dos seus inimigos, justamente quando os combatem
29
. Característica
similar ao que aconteceu com a Teologia da Libertação, pois foi uma atribuição de outros,
de modo especial dos seus inimigos, representantes das classes dominantes e
25 Cf. Elli BENINCÁ, Conito religioso e práxis: o conflito religioso na ação política dos acampados de encruzilhada
Natalino e da Fazenda Annoni, p.151-153.
26 Elli BENINCÁ, Conito religioso e práxis, p.151.
27 Elli BENINCÁ, Conito religioso e práxis, p.151-152.
28 Elli BENINCÁ, Conito religioso e práxis, p.152-153.
29 Elli BENINCÁ, Conito religioso e práxis, p.153.
ZANINI, Rogério L.; SUSIN, Luiz C.
O Intelectual Ornico: A teologia o se deixa acorrentar (2Tm 2,9)
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conservadoras que buscam reprimi-la ou negá-la para torná-la ilegítima justamente
porque percebem o perigo em seu potencial conscientizador e transformador.
É esta perspectiva que orienta o trabalho de Benincá junto aos pobres, no sentido de
ajudar na ressignificação das imagens e da concepção de Deus. Em sua pesquisa junto ao
MST, Benincá constata que os acampados sem-terra, nos acontecimentos e nas lutas diárias,
revelam imagens a configurar um Deus que justifica a dor e que os manm alienados seja
das causas históricas de sua condição seja da real configuração de Deus segundo o Evangelho.
Como se fosse vontade de Deus a existência dos sem-terra. Foi uma tarefa exigente a de
ressignificar a simbologia da cruz e a própria Bíblia, para que deixassem de ser instrumentos
de opressão e de submissão para se tornarem fonte de libertação. No caso específico da cruz,
ela foi revisitada como modo de execução humilhante, utilizada originalmente pelo império
romano como instrumento pedagógico para impedir rebeldias e manifestações do povo.
Pedagogicamente, os romanos deixavam expostos os corpos dos crucificados com o objetivo
de mostrar publicamente o destino de quem contrariasse a ordem legal do Império Romano.
A recuperação da “cruz histórica” corrige assim a mistificação da cruz como um drama intra-
trinitário, a cruz como vontade e desígnio do próprio Deus. A Bíblia em geral, de forma
semelhante, foi frequentemente invocada e utilizada como ferramenta para moralizar na
forma de submissão, reprimindo e dificultando a compreensão da realidade histórica,
política, social, econômica e religiosa. Como na carta a Timóteo, Benincá professa e ensina
que a Palavra de Deus não se deixa acorrentar (2Tm 2,9); ou como o salmista, ele lembra
que a Palavra de Deus é lâmpada para os pés e luz para o caminho (Sl 119,105); ou tal como
um agricultor ele atenta para a força libertadora da Palavra de Deus, assim como na
semente a força que a faz germinar enquanto o agricultor dorme.
CONCLUSÃO
O presente artigo buscou adentrar a concepção de intelectual/teólogo orgânico. Na
perspectiva de Antônio Gramsci, o pensamento convencional ou tradicional é decorrente
de um tipo de intelectual que se mantém ligado a uma determinada classe social, atuando
como seu porta-voz e, consequentemente, continua a repetir indefinidamente a mesma
visão e compreensão, servindo assim aos mesmos interesses: as classes hegemônicas.
Romper com esta epistemologia permeada de ideologia foi a missão preliminar
desencadeada pela Teologia da Libertação, ao colher os ventos transformadores
provenientes do Concílio Vaticano II, particularmente na recepção criativa e profética de
Medellín que escutou seriamente os clamores dos povos latino-americanos e colocou as
bases de um movimento revolucionário, o de resgatar a vida e dignidade dos pobres e
excluídos. O teólogo orgânico, nessa nova postura eclesial, explicita uma verdade
evangélica fundamental: os pobres são elevados a sujeitos na compreensão de que eles o
são somente destinatários do Evangelho, mas, inspirados pelo Evangelho, se tornam
criadores de suas próprias vidas e sujeitos de transformação da vida social e mesmo eclesial
em que vivem e atuam, em seu aspecto tanto histórico como salvífico, porque
experimentam Cristo vivo em sua carne. Coerentemente o Papa latino-americano, Papa
Francisco, ensina com toda a força de seu magistério que os pobres são sujeitos ativos e
criativos, que têm muito a oferecer e que se tornam critério de julgamento da sociedade.
Assim, denuncia: “Não fazer os pobres participar dos seus próprios bens é roubá-los e
tirar-lhes a vida” (EG 57).
O resgate da metodologia benincaniana sublinha o testemunho de meio século de
coerência metodológica, a constituição de um método que, em primeiro lugar, mantém a
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O Intelectual Ornico: A teologia o se deixa acorrentar (2Tm 2,9)
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“honradez para com a realidade”, na esteira do método do Mestre Jesus, e em conformidade
com a essência da mensagem evangélica traduzida pela teologia latino-americana e
caribenha. Ao mesmo tempo, Benin explicita claramente ao lado de quem e a servo de
quem deve estar uma verdadeira teologia comprometida, viva e fiel aos passos do Mestre.
Propondo em seu todo pastoral e teológico os passos ordenados de 1. Observação; 2.
Registro; 3. Sessão de estudo; 4. Reencaminhamentos, o teólogo, bem como qualquer cristão
que busca pensar responsavelmente, se mantém vinculado com a práxis, sendo este vínculo
fundamental no processo metodológico elaborado com sucesso por Benincá.
A metodologia benincaniana contempla de modo extremamente prático e
transparente a teologia como “ato segundo”, com a precedência pelo ato primeiro da práxis
da cristológica e eclesial no Reino de Deus. Segundo um dos pais da Teologia da
Libertação, Gustavo Gutiérrez: “O discurso sobre Deus vem depois porque o dom da é
anterior e fonte da teologia”
30
. Não se pode descurar de que a realidade dos pobres e das
vítimas do sistema que, ao mesmo tempo que privilegia também vitimiza, é uma realidade
que não somente desperta, mas também perturba, abala, e questiona o sentido da teologia.
Na compreensão de Geraldina Céspedes, “o encontro da com a realidade vivida é o que
vai determinar o caráter específico de nossa teologia”
31
.
O itinerário brevemente percorrido acima demonstra a importância e atualidade/
ousadia deste método que tem o teólogo na postura de intelectual orgânico, pois é em si
uma postura profética diante da realidade virtual, individualista e capitalista que marca o
século XXI. A rapidez com que acontecem os fatos, a interação virtual das notícias e o
discurso e incentivo ao ‘mérito’ e à meritocracia visando a legitimação da acumulação dos
bens materiais o referências cada vez mais clamorosos na sociedade atual. Apresentar
convincentemente, com coerência, a necessidade urgente e inadiável de um estilo de vida
com práticas comunitárias, participativas, a partir dos mais vulneráveis, é certamente
colocar-se na contramão do “sistema-mundo” do mercado globalizado por sua economia
“que mata” (Papa Francisco) a começar pela produção de vasta exclusão.
O Padre Elli Benincá, como teólogo-intelectual orgânico, partindo de uma efetiva
opção pelos empobrecidos e vulneráveis da sociedade, construiu uma metodologia pastoral
e teológica que é capaz de abraçar a teoria e a prática, respeitando a historicidade dos
acontecimentos e demonstrando a necessidade da ‘honradez para com a realidade’, assim
como tem feito a Teologia da Libertação. Ora, na verdade, se “método” tem o sentido de
caminho que conduz para além, para uma meta e uma superação, temos aqui um caminho
obrigatório para que os cristãos como discípulos-missionários que tem as mesmas
aspirações, sentimentos e ágape de Cristo. Benincá traçou um modelo extremamente
prático e compreensível, que traz em seu interior mais profundo uma espiritualidade
profética e criativa e que possibilita atuar na realidade social e eclesial como sal da terra e
luz do mundo (Mt 5,13-14), porque produz libertação histórica/salvação transcendente
sem confusão nem separação. O método mesmo sinaliza o Reino de Deus, na
concretização do bem maior, que, segundo a revelação nas Escrituras é o atributo por
excelência do Deus Vivo, o dom da Vida!
30 Gustavo GUTIÉRREZ, Teologia da libertação, p.33.
31 Geraldina CÉSPEDES, Novos fios para um novo tecido. In: Agenor BRIGHENTI e Rosario HERMANO (Org.),
Teologia da libertação em prospectiva, p.32.
ZANINI, Rogério L.; SUSIN, Luiz C.
O Intelectual Ornico: A teologia o se deixa acorrentar (2Tm 2,9)
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.132, p.35-46, Jan./Jun./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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