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Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
NEGRAS MULHERES E MULHERES
DA BÍBLIA
trajetória de lutas e resistência por uma
educação antirracista
BLACK WOMEN AND WOMEN OF
THE BIBLE
rajectory of struggles and resistance for
an anti-racist education
Ana Maria da Rosa Prates*
Francisca Izabel Da Silva Bueno**
Marcio Luiz de Oliveira***
Resumo: O presente artigo aborda a trajetória de lutas e resistência das
mulheres negras na sociedade brasileira na perspectiva de implementação
de uma educação antirracista na escola e na academia. Trata-se de uma
reflexão sobre a existência do racismo que se faz presente no ambiente
escolar e na sociedade brasileira e indica a necessidade urgente de se pensar
práticas pedagógicas para combater posturas racistas e discriminatórias.
Para tal, utilizamos nossa própria trajetória no movimento de mulheres
negras e experiências profissionais como professoras e hoje discentes do
mestrado e doutorado do PPGEdu/UPF. Para elaborar o artigo foi
realizada uma revisão de literatura visitando as legislações que se referem à
educação das relações étnico raciais, bem como autores que se posicionam
na luta em defesa de uma educação antirracista: Gomes (2008, 2011),
Hooks (2017), Munanga (2006), Silva (2004). Na construção buscamos a
interação com algumas mulheres retratadas na bíblia que mostraram aos
seus pares a necessidade da vida em liberdade sendo referência para outras
mulheres. Na época souberam resistir e agir com coragem e criatividade
diante das ameaças à vida do seu povo. O olhar está no passado e também
nas referências atuais. O artigo está organizado em quatro seções: a
primeira parte inicia sob o título Lutas e resistência das mulheres, a
segunda parte, intitulada Lutas e resistências das mulheres da Bíblia, a
terceira parte sob o título Educação antirracista: tão perto de chegar, mas
longe de enxergar e na quarta e última parte apresenta Uma mística bíblica
antirracista: caminho se faz caminhando.
Palavras Chaves: Negras Mulheres. Mulheres da Bíblia. Lutas. Resistência.
Educação antirracista.
v. 39, n. 132, Passo Fundo,
p. 68-80, Jan./Jun./2022,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v39i132.87
* Professora de História, Diretora de escola
da rede pública estadual de ensino em Passo
Fundo - RS. Associada da Associação
Brasileira de Pesquisadores Negros/ABPN.
Ativista do movimento de Mulheres Negras
ACMUN-RS. Integrante do projeto de
extensão “UPF: Educação das relações étnico-
raciais". Doutoranda do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade de
Passo Fundo (UPF). Mestre em História pela
Universidade de Passo Fundo (UPF).
Especialista em Gestão Escolar pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e
Especialista em Educação de Jovens e Adultos
e PROEJA pelo Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-
grandense (IFSUL) Passo Fundo- RS.
Graduada em História pela Universidade de
Passo Fundo (UPF).
E-mail: anamariadarosaprates@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-4250-0081
** Professora, orientadora educacional da
rede pública estadual de ensino em Passo
Fundo - RS. Atualmente Formadora-Trilha
Antirracista-SEDUC/RS. Associada da
Associação Brasileira de Pesquisadores
Negros/ABPN. Ativista do movimento de
Mulheres Negras ACMUN-RS. Integrante do
projeto de extensão UPF: “UPF: Educação das
relações étnico-raciais”. Mestranda do
Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade de Passo Fundo (UPF)
Especialista em Supervisão e Orientação
Escolar pela Universidade Regional Integrada/
URI-Campus Erechim-Rs. Especialista em
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Abstract: This article addresses the trajectory of a struggles and resistance
of black women in Brazilian society from the perspective of implementing
an anti-racist education in school and academy. It is a reflection on the
existence of racism that is present in the school environment and in
Brazilian society and indicates the urgent need to think about pedagogical
practices to combat racist and discriminatory attitudes. To this end, we use
our own trajectory in the black women´s movement and professional
experiences as teachers and today students of the master and doctorate
courses at PPGEdu/UPF. For the article to be prepared, a literature review
as carried out visiting the laws that refer to the education of ethnic-racial
relations, as well as authors who stand in struggle in defense of anti-racist
education: Gomes (2008, 2011), Hooks (2017), Munanga (2006) e Silva
(2004). In the construction, we sought interaction with some women
portrayed in the Bible who showed their peers to need for life in freedom,
being a reference for other women. At the time, they knew how to resist
and act with courage and creativity in the face of threats to the lives of
their people. The look is the past and also in the current references. The
article is organized into four sections: the first part begins under the title
Women´s struggles and resistance; the second part, entitled Struggles and
resistances of women in the Bible; the third part, under the title Anti-
racist education: so close to arrive, but so far from seeing and in the fourth
and last part presents An anti-racist biblical mystique: the path is made by
walking.
Keywords: Black Women. Women of the Bible. Struggles. Resistance.
Education. Anti-racist.
Direitos Humanos e Educação Instituto de
Filosofia Berthier -IFIBE/Passo Fundo- RS.
Licenciatura Plena em Biologia/UNIJUI-
Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul Ijuí-RS.
Graduada em Ciências/UNICRUZ-
Universidade de Cruz Alta - RS.
E-mail: francisca.bueno566@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-1209-8485
* Professor, biblista, membro do Centro
Ecumênico de Estudos Bíblicos em Feira de
Santana, Bahia. Atualmente encontra-se na
Coordenação de Extensão da Faculdade
Católica de Feira de Santana, Bahia. Bacharel
em Teologia pela Faculdade Católica de Feira
de Santana - FCFS), licenciado em Filosofia
pela Faculdade Batista Brasileira FBB e
especialista em Hermenêutica Bíblia pela
Universidade Católica de Pernambuco
UNICAP. É professor na Faculdade Católica
de Feira de Santana na área de Teologia
Bíblica. Tem experiência de ensino e pesquisa
em História de Israel, Livros Históricos,
Literatura Profética, Apócrifos da Bíblia,
Bíblia e Literatura e Leitura Popular da
Bíblia.
E-mail: lomarcio7@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-9060-8815
Recebido em 15/12/2022
Aprovado em 23/05/2022
A voz da minha bisavó ecoou [...]
A voz de minha avó/ ecoou obediência[...]
A voz de minha mãe/ ecoou baixinho revolta [...]
A minha voz ainda ecoa versos perplexos[...]
A voz de minha filha/ recolhe todas as nossas vozes/
recolhe em si as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato.
Vozes Mulheres, de Conceição Evaristo
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Tecer a nossa trajetória de lutas e resistência de negras
mulheres, que buscam romper com o silenciamento e a invisibilidade
impostos ao longo da história brasileira, por uma estrutura
escravocrata, é o objetivo deste artigo. Grande parte das riquezas
deste país construiu-se e ainda se constrói com o trabalho de pessoas
que foram arrancadas de suas terras e escravizadas em terras
brasileiras da pior forma possível. Neste processo de escravização
perderam grande parte de sua condição de humanos, mas nunca
deixaram de resistir e lutar pela sua liberdade, pelos seus direitos e
pelas condições de vida digna. Neste processo desenvolveram saberes
e práticas de lutas de resistência contra todos os tipos de opressão,
especialmente a escravidão e o racismo.
Para compreendermos as razões e as referências
epistemológicas dessas lutas, precisamos retomar o passado e buscar
70
as suas fontes. Pensar e conhecer o passado é condição para se transformar o presente.
Segundo Bakhtin
1
,
um diálogo com o grande tempo é falar do presente levando em consideração o
passado, pois nascemos num tempo presente, mas não nos alimentamos apenas
de sua atualidade. Não se vive nos séculos posteriores se não se impregnou, de
alguma maneira, dos séculos anteriores.
As mulheres negras sempre tiveram um trabalho importante na história de
construção da cultura deste país, mas demoraram e ainda demoram a serem reconhecidas e
ouvidas. É urgente refletirmos e valorizarmos a presença das mulheres negras que
historicamente produzem insurgência contra o modelo dominante e a exploração de sua
condição de mulher negra.
Um dos campos de luta da mulher negra é pelo seu espaço na escola, na academia,
enfim, no desenvolvimento da cultura em geral e da cultura científica. A feminista Lélia
Gonzalez
2
, nos uma perspectiva interessante quando critica a hierarquização de saberes
como produto da classificação racial da população. Ou seja, para ela, quem possui o
privilégio social possui o privilégio epistêmico, uma vez que o modelo valorizado e
universalmente considerado de ciência é o dos grupos sociais dominantes, geralmente
formado por homens e homens brancos. A consequência dessa hierarquização é a
legitimação como superior da concepção epistemológica, eurocêntrica ou norte americana.
Trata-se de uma cultura que o esconde seu viés machista e racista, especialmente contra
a cultura feminista e negra. Isso vem conferindo ao pensamento moderno ocidental a
exclusividade do que seria conhecimento valido, estruturando-o como dominante e, assim,
inviabilizando outras experiências do conhecimento. A autora afirma que o racismo se
constitui “como a ciência da superioridade euro cristã branca e patriarcal”. Esta reflexão
nos uma pista: quem pode falar ou não, quais saberes /vozes são legítimos e quais
saberes devem ser calados ou menosprezados.
Nesta perspectiva, também queremos nos aproximar e buscar luzes no texto bíblico.
Mas como estabelecer caminhos de libertação a partir da Bíblia se, justamente, esta foi
usada como instrumento de dominação dos corpos negros e, mais ainda, dos corpos
negros femininos? Uma leitura histórico-crítica da Bíblia, com chave contextual e
libertadora, precisa nos ajudar a encontrar neste livro controverso “alimento capaz de
sustentar as lutas e esperanças”
3
das mulheres negras hoje, dentro e fora do ambiente
religioso cristão, o qual tem a Bíblia como fonte e luz do caminho.
A proposta do texto é analisar, partindo de referências bibliográficas, quais o os
limites e as potencialidades de se pensar novas epistemologias sustentadas na cultura negra
e na experiência da mulher negra e iluminar esse caminho com a leitura da mulher na
Bíblia, como também da leitura da Bíblia sob a perspectiva do lugar da mulher. Para tanto,
uma das fontes é indicada por Bell Hooks
4
, quando fala sobre o quanto as lutas das
mulheres negras sempre foram ligadas ao corpo e desta relação desenvolveram sua
compreensão de vida e de mundo, seu modo de pensar e agir na realidade. São formas que
revelam dependências e resistência diante de um contexto racista e de origem
escravocrata, mas também, a luta pela manutenção de uma origem e de uma ancestralidade
que coloca em questionamento a dominação de uma epistemologia eurocêntrica
1 Mikhail BAKHTIN, Marxismo elosoa da linguagem, p.349.
2 L. GONZALEZ, Racismo e sexismo na cultura brasileira, p.225.
3 PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, A interpretação da Bíblia na Igreja, p.75.
4 Seu nome é grifado em letras minúsculas no corpo do texto e na bibliografia, por se tratar de um pseudônimo de a
Gloria Watkins.
PRATES, Ana Maria da Rosa; BUENO, Francisca Izabel Da Silva; OLIVEIRA, Marcio Luiz de
Negras mulheres e mulheres da blia: trajetória de lutas e resistência por uma educação antirracista
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.132, p.68-80, Jan./Jun./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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autoritária e machista. A pensadora afirma que a combinação entre racismo e sexismo
implica, em sermos vistas como intrusas, pois somos portadoras de mentalidade estreita.
Além disso, a própria conceituação ocidental de uma epistemologia branca faz com que o
caminho para a escola, para a academia e para a ciências se torne mais difícil para as
mulheres negras.
A mulher negra tem muito conhecimento a oferecer sobre a realidade humana, sobre
a vida, sobre o corpo e sobre a cultura. Sua capacidade de realizar uma síntese ou uma
síncrese cultural é fonte de muita sabedoria e capacidade de ação prática. Isto é percebido
pela própria Bell Hooks quando a define como uma intelectual que une criativamente o
pensamento, a prática para entender a sua realidade concreta. Pensamento e prática não
são para ela realidades dicotômicas excludentes; ao contrário, são dialéticas que conversam
entre si e produzem compreensões e práticas emancipadoras.
Desde os anos que precederam o fim legal da escravização no Brasil, o movimento
negro organizou várias formas de luta contra a escravidão, vale dizer, contra o racismo e
todas as formas de discriminação racial. Neste processo de análise destacamos,
inicialmente, que as mulheres negras sempre tiveram em suas pautas de luta um papel de
destaque. A seguir pretende-se mostrar a luta e a resistência do movimento negro e do
movimento de mulheres negras no combate à discriminação racial e ao racismo existentes
na sociedade brasileira e suas repercussões. Para tanto buscamos iluminar esta análise
tendo como fonte a luta e a resistência de algumas mulheres da Bíblia. Destacamos, ainda,
a importância da legislação da educação brasileira acerca das relações étnico raciais,
indicando a pertinência e a importância da implementação de tal legislação para o campo
educacional. Neste sentido será evidenciada a educação antirracista da Lei 10.639/2003,
enquanto uma política curricular que visa o reconhecimento da história e cultura da
população negra, bem como, os desafios e as possibilidades de transformações no
enfrentamento do racismo em todas as instâncias. Por fim, será evidenciado o caminho de
uma mística bíblica, destacando o lugar da mulher negra na construção e no
reconhecimento da história de luta por uma cultura antirracista.
LUTAS E RESISTÊNCIAS DAS MULHERES
O racismo e a discriminação impedem o livre exercício da cidadania bem como o
acesso democrático ao desenvolvimento, portanto devem ser eliminados para permitir o
desenvolvimento com equidade social. O impulso para que a temática racial seja
incorporada na sociedade, se faz necessária a aplicação de ações afirmativas e políticas
voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade.
A conquista da restauração da ordem democrática do Brasil tem como marco legal a
Constituição Federal de 1988, que pela primeira vez e de forma inédita reconhece o
racismo e o preconceito racial como fenômenos presentes na sociedade brasileira e
apresenta caminhos para superação do racismo, das desigualdades, reconhecendo a
pluralidade étnico-racial e abrindo as comportas para o avanço dos movimentos sociais
que lutam contra a discriminação racial.
O estado Brasil um país de muitas leis inovadoras, mas de direitos ainda limitados.
Apesar de inúmeros avanços legais, ainda falta a criação de condições objetivas e efetivas
para superação do racismo e das desigualdades, que permitam a todos se beneficiarem da
igualdade de oportunidades. Diante da desigualdade instituída historicamente no Brasil, é
preciso tratar os desiguais de forma desigual, elevando os desfavorecidos ao mesmo
patamar de partida dos demais indivíduos.
PRATES, Ana Maria da Rosa; BUENO, Francisca Izabel Da Silva; OLIVEIRA, Marcio Luiz de
Negras mulheres e mulheres da blia: trajetória de lutas e resistência por uma educação antirracista
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.132, p.68-80, Jan./Jun./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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O resultado da luta e resistência da população negra encontra-se presente nos
avanços de muitas legislações, que mesmo apresentando contradições, expressam algum
grau de conquista da luta dos negros contra a situação de exploração. A luta implica na
construção de uma nova história, como no caso da própria Lei Áurea, de 13 de maio de
1888, comumente apresentada como uma data em que ocorreu a concessão da liberdade a
todos os escravos pelo poder imperial. Tal lei precisa ser questionada quanto a sua efetiva
contribuição na libertação dos escravos, considerando que muitos fatores que
determinaram a lei são desconsiderados e desconhecidos. Ademais, as condições em que os
escravos passam a viver com a libertação, revelam que não se tratou de libertação, mas de
abandono dos negros a própria sorte, sem os meios básicos de sobrevivência. Somente a
luta e a busca de alternativas pelos próprios escravos é que os tornou efetivamente livres,
embora em condições precárias. Por isso, pergunta-se: o 13 de maio é uma data para
comemorar? E o dia seguinte, 14 de maio, como foi? Em quais condições passa a viver a
população escravizada que a partir de então? Sem acesso à terra, ao trabalho, aos meios de
sobrevivência, como sobreviveram os escravos então libertados? Que alternativas eles
encontraram para sobreviver? Como sabemos, a população negra, mesmo após a abolição,
nunca teve condições de igualdade e de participação efetiva na sociedade brasileira. No
entanto, resistiu e conseguiu avançar em suas conquistas.
As mulheres negras e os homens negros sempre reagiram e continuam a reagir às
tentativas da mentalidade colonialista de impor, pela força, uma vida totalmente diferente
a que viviam em sua terra mãe África. O movimento negro vem organizando, desde alguns
os anos que precederam o final da escravização, formas de luta e resistência contra o racismo
e a discriminação racial. Essas práticas antirracistas
5
m continuidade nos dias atuais.
Um avanço da luta antirracista no Brasil são as conquistas da Lei 10.639/2003 e da
Lei 11.645/ 2008, que alteraram a Lei 9.394/1996 Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, incluindo no currículo a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e da Cultura Indígena. Estas leis, apesar de inúmeras dificuldades, têm
possibilitado que as questões que envolvem estas culturas comecem a ser conhecidas e
estudadas nas escolas e no ensino superior, nos cursos de formação de professores.
Entre os marcos legais na luta antirracista destacamos, ainda, a Lei 12.288/2010,
que institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinada a garantir à população negra a
efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos, individuais,
coletivos e difusos e o combate à discriminação e as demais formas de intolerância
étnica. Soma-se a ela a Lei 12.711/2012, a chamada Lei de Cotas, que garante a reserva
de, pelos menos, metade das vagas nas universidades blicas e Institutos Federais de
Educação, Ciência e Tecnologia a alunos pretos, pardos e indígenas, oriundos
integralmente do ensino blico.
São conquistas importantes que precisam ser consolidadas e ampliadas. Para tanto,
uma das lutas que tem sido destacada, é o da descolonização dos pensares e saberes que se
fazem presentes em diferentes contextos. A permanência das visões patriarcais, machistas,
racistas são desafios que precisam ser enfrentados por novas concepções de mundo, de
vida, de conhecimento, de saber. Descolonizar os diferentes espaços de saber envolve,
também, a descolonização da visão espiritual, da visão religiosa e das fontes da formação
5 Destacamos que existem diferentes maneiras de praticar o antirracismo, que vão além de denunciar o racismo, crime
considerado hediondo no Brasil, sem direito a fiança. Outros tipos de antirracismo são as ações do movimento negro
que buscam levar à sociedade o conhecimento sobre a história de lutas dos homens e mulheres negros pela liberdade,
durante a escravatura e no pós abolição, pelo reconhecimento das suas singularidades culturais e civilizatórias.
Também representam outro tipo de antirracismo as iniciativas dos governos, sob a pressão do movimento negro, de
fazerem valer leis que foram criadas para garantir direitos iguais para homens negros e mulheres negras na educação,
na saúde, na segurança, no desenvolvimento cultural e no mercado de trabalho.
PRATES, Ana Maria da Rosa; BUENO, Francisca Izabel Da Silva; OLIVEIRA, Marcio Luiz de
Negras mulheres e mulheres da blia: trajetória de lutas e resistência por uma educação antirracista
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.132, p.68-80, Jan./Jun./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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das pessoas. Os espaços de saberes ainda são cheios de barreiras e cristalizados na nossa
formação social, cultural, econômica e educacional.
Diante disso, nossa proposição é de buscar descolonizar a própria leitura da Bíblia,
procurando promover um novo olhar antirracista e anticentralista pela revisão dos
conceitos e pela identificação dos preconceitos que reproduzem e alimentam um ambiente
espiritual discriminador. Entendemos que é esse o caminho que permitirá o acesso aos
espaços de poder, a desconstrução dos valores forjados pela mentalidade colonialista, a
superação do racismo institucional que tem marcado a exclusão das negras e dos negros da
escola, das academias e também de muitos espaços eclesiais.
LUTAS E RESISTÊNCIAS DAS MULHERES DA BÍBLIA
É na perspectiva de descolonizar a leitura e interpretação da Bíblia que buscamos
alumiar todas essas histórias de lutas e resistências com as experiências de mulheres da
bíblia e mulheres negras da bíblia a partir de leitura libertadora e feminista, ou seja, na
perspectiva de “redescobrir a posição e o papel da mulher” nos movimentos do povo
bíblico
6
. O que será que seus gritos marginais têm a nos dizer? Pois, é do lugar da margem
que nos encontramos com essas mulheres
7
, não estão no centro das grandes narrativas
bíblicas, mesmo assim, constituem essencial contribuição para o desenvolvimento do povo
de Israel, e hoje, suas narrativas são “pedagogia de libertação” da mulher, do negro, do
pobre, povo de Deus em marcha na história, ontem e hoje.
a) O grito de Agar é ouvido (Gn 16,115; 21,9-21): nas margens das tendas dos
patriarcas e matriarcas ecoa o grito de Agar a escrava egípcia, ou seja, escrava africana. Ela
é a escrava usada, maltratada e expulsa, mas encontrada por Deus em seu sofrimento: De
onde vens e para onde vais?(Gn 16,8); é a pergunta sobre a origem, mas também sobre o
destino, sobre o horizonte. No deserto, com fome e sede, ela desespera pela morte do filho.
Deus faz caminho com essa jovem escrava africana. Primeiro, a partir de aparição de anjo,
Deus ouve seu grito: Não temas, Deus ouviu a voz do menino!(Gn 21,17b); e convida esta
mulher a não se entregar a morte. Depois, abriu seus olhos e ela viu um poço de água(Gn
21,19). Deus ouve o grito de Agar e deu seu filho. É um grito de uma mulher negra
escravizada e injustiçada. Deus ouve, alimenta sua esperança, abre seus olhos e sacia sua sede.
b) As parteiras egípcias enganam o faraó (Ex 13,15-21): nas margens no processo
de libertação do povo hebreu no Egito, temos a contribuição de um importante
movimento de parteiras. O faraó pede a Séfora e Fua para matar os meninos hebreus, por
sua vez elas criam artifício para salvá-los e trazer-lhes a morte: as parteiras, porém,
respeitavam a Deus, e, em vez de fazer o que lhes mandava o rei do Egito, deixavam com vida os
recém-nascidos(Ex 1,17). Essa experiência de educação popular das parteiras revela duas
coisas importantes para nosso caminho: Primeiro, é necessário ouvir e respeitar a voz que
protege a vida; segundo, também, contra impérios de morte, usa-se dos argumentos e
armas que se pode, pois, o mais importante é resguardar a vida para que ela não seja
atirada no rio da morte (cf. Ex 1,22b).
c) Aslhas de Salfaad exigem umpedaçode terra (Nm 27,1-11): nas margens do
caminho pelo deserto, o caminho da libertação e da purificação antes de chegar na terra
prometida, temos o importante testemunho de um grupo de mulheres, as filhas de Salfaad.
Não tinham pai, o tinham irmãos, por isso não tinha terra, os direitos da terra estavam
associados ao homem. Com essas mulheres, Maala, Noa, Hegla, Melca e Tersa, o povo do
6 PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, A interpretação da Bíblia na Igreja, p.79.
7 CNBB, A Igreja e as Comunidades Quilombolas (Estudos da CNBB, 105), p.84.
PRATES, Ana Maria da Rosa; BUENO, Francisca Izabel Da Silva; OLIVEIRA, Marcio Luiz de
Negras mulheres e mulheres da blia: trajetória de lutas e resistência por uma educação antirracista
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deserto aprende que as mulheres também têm direitos: Moisés apresentou a causa ao Senhor,
e o Senhor disse a Moisés: As lhas de Salfaad (Nm 27,5-7). Em um mundo em que os
direitos das mulheres são mínimos ou inexistentes, temos aqui uma importante inovação
possível que essa lei seja bem posterior). Não é possível entrar na Terra Prometida sem
conceder o direto da Terra às mulheres. Terra está associada ao básico para se viver e não
se pode viver sem ser concedido o básico. Por sua vez, da pedagogia do deserto temos esse
ensinamento: as mulheres precisam gritar por seus direitos!
d) Raab quer fazer parte do povo (Js 2,1-21): às margens da chegada na terra, as
margens da organização tribal, uma mulher apresenta um importante contraponto: Raab.
Mas uma vez o povo está sob ameaça de poderes quem podem matar e são protegidos por
uma mulher. Raab era uma prostituta, sua casa ou seu prostibulo, visitado pelos espiões
que vieram, quem sabe, atrás de seus serviços sexuais, ficava no muro, de fora, na margem
da grande cidade de Jericó
8
. É provável que tivesse motivos para indignar-se com a classe
dominante da cidade que a usava e discriminava, ao passo que adere ao movimento rebelde
associado a um Deus que liberta escravos
9
: ouvimos que o Senhor secou a água do Mar
Vermelho diante de vós, quando vos tirou do Egito...(Js 2,10). Ela uma possibilidade de vida
nova para si e para seu clã, por isso não tem pudor em mentir, esconder, omitir e enganar,
como também fizeram as parteiras do Egito. Raab tem a sua frente uma promessa de povo,
como nunca experimentou na vida. É preciso fazer parte de um povo onde se tenha um
lugar, uma missão: libertada para libertar.
e) Hulda é voz profética feminina que vem da periferia (2Rs 22,14-20): A
narrativa de Hulda se insere no contexto do reinado de Josias e seus movimento
deuteronomista, que pretendiam grande reforma religiosa a partir do encontro com a Lei
de Deus ou palavra de Deus (2Rs 22,8-13), mas seus reais motivos eram a dominação
política. É ele que pede ajuda a profetisa. Hulda morava na periferia de Jerusalém, o era
profeta oficial da corte. Ela proclama a destruição que virá pelas mãos de Babilônia por
conta dos pecados e povo, das falsas alianças dos reis e poderosos e do esquecimento da
Aliança, ou seja, do que fez pelo seu povo o Deus dos Êxodo. O rei é limitado, não entende
a Palavra de Deus, Hulda, essa mulher sabe ler o Livro da Aliança porque sabe-se
conectada a Deus a história de seu povo. Assim, com esta profetisa aprendemos que é
impossível ler a Bíblia sem íntima conexão com vida e história de seu povo, pois Deus atua
nessa história.
Agar, as parteiras egípcias, as filhas Salfaad, Raab e Hulda são algumas, dentre
muitas, narrativas bíblicas, algumas até esquecidas, que encontramos na leitura crítica do
lugar da margem. Poderíamos explorar até mais, com Débora, guerreira do povo (Jz 4-5),
com uma mulher anônima que quebra a cabeça de um rei opressor (Jz 9,50-55), com Rute
e Judite, que usam dos artifícios que podem para fazer sobreviver o povo. No movimento
de Jesus, o grupo dos discípulos também era seguido de um grupo de discípulas (Lc 8,1-3),
entre ela, Maria de Magdala, Joana de Cusa e Susana. Também nas comunidades de Paulo
inúmeros testemunhos para presença e atuação de mulheres, como na comunidade de
Roma (Rm 16,1-16), com a diaconisa Febe, Prisca ou Priscila, esposa de Áquila, uma tal
Maria, Júnia, chamada de ‘apóstola’, Trifena, Trifosa e Pérside, mulheres que ‘se afadigaram
no Senhor’, e outras mais. Também na comunidade de Filipos (Fl 4,2-3), com a atuação de
Evódia e Síntique, ‘lutadoras do Evangelho’.
8 Amilcar Araujo PEREIRA, O mundo negro: relações raciais e a constituição do movimento negro contemporâneo
no Brasil/Amílcar Araújo Pereira, p.39.
9 Norman K. GOTTWALD, As tribos de Iahweh: uma sociologia da religião de Israel liberto 1250-1050, p.562.
PRATES, Ana Maria da Rosa; BUENO, Francisca Izabel Da Silva; OLIVEIRA, Marcio Luiz de
Negras mulheres e mulheres da blia: trajetória de lutas e resistência por uma educação antirracista
Revista Teopráxis,
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Em todas essas mulheres nos encontramos como povo de Deus, de forma particular,
enquanto mulheres negras que tomam a Palavra de Deus para animar as lutas e celebrar as
conquistas. Essas leituras são manifestos bíblicos, ao mesmo tempo pedagogia de
libertação para celebrar cada conquista da mulher negra no contexto da educação
brasileira, que como Agar e as filhas de Salfaad, precisaram gritar, que como as parteiras e
como Raab, tiveram que enfrentar pessoas de poder, que como Hulda, tiveram que
aprender a ler a vida e a história.
EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: TÃO PERTO DE CHEGAR, MAS LONGE DE ENXERGAR
Nas últimas décadas do século XX e início de século XXI, vivenciamos momentos
ricos de debates, elaboração e implantação de propostas curriculares e uma mudança de
perspectivas teórico metodológica na educação das relações étnico raciais pautadas na
realidade imposta pela modernidade e pela colonialidade, pensando as formas de
dominação e exploração que construíram as relações sociais na América Latina, a
colonialidade e o colonialismo discutida por Quijano.
A colonialidade diz respeito a um padrão de poder que opera através da
naturalização de hierarquias territoriais, raciais, culturais e epistêmicas, possibilitando a
(re)produção de relações de dominação, bem como a destruição de conhecimentos,
experiências e formas de vida dos sujeitos que são explorados. O colonialismo se refere a
um momento histórico marcado pelo processo de domínio político e militar, utilizados
para garantir a invasão e a exploração do trabalho e das riquezas das colônias, em benefício
do colonizador. Para Paim e Pereira:
A epistemologia decolonial e a lógica da decolonialidade não são abordagens
novas, tampouco categorias teórico-abstratas. Elas existem desde a imposição
da colonização e da escravização dos povos americanos, africanos e asiáticos. A
decolonização pauta-se em eixos permanentes de luta dos diversos povos
sujeitos à violência estrutural pensada, assumida e realizada como projeto de
posicionamento político, social, cultural, religioso econômico e epistêmico para
subjugar e dominar os povos não europeus
10
.
De acordo com os teóricos decoloniais, a colonialidade pode se expressar de três
maneiras: colonialidade do ser, do poder e do saber. A ideia de colonialidade defendida por
estes teóricos sustentam que o sistema capitalista se mantém interseccionando
sistematicamente nas mais variadas formas de opressão e está presente em todo o
pensamento negro. A Lei 10.639/2003, trouxe para a realidade escolar e acadêmica,
perspectivas de avanços que enfrentem a colonialidade de saberes ilustrada pela ideia de
um ponto zero de conhecimento. A lei é considerada um marco histórico, ao mesmo
tempo, um ponto de chegada das lutas antirracistas no Brasil e um ponto de partida para a
renovação da qualidade social da educação brasileira
11
. Gomes destaca:
O Brasil do século XXI tem um perfil étnico-racial mais diverso do que
séculos. Sabemos que muito ainda precisa avançar. A luta não dá trégua. Mas
não podemos desconsiderar que a sociedade brasileira, na atualidade reconhece
a existência do racismo e que os negros e as negras, aos poucos, ocupam mais
espaços sociais, políticos e acadêmicos. E que conseguimos construir, a partir de
2003, políticas públicas de igualdade racial bem como inserir o recorte étnico-
racial – não sem resistências - nas várias políticas sociais existentes”
12
.
10 Elison PAIM e Nilton PEREIRA, Interfaces: educação e temas sensíveis na contemporaneidade, p.13.
11 BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica.
12 Nilma Lino GOMES, O Movimento Negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação, p.19.
PRATES, Ana Maria da Rosa; BUENO, Francisca Izabel Da Silva; OLIVEIRA, Marcio Luiz de
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Um dos principais campos de luta contra a discriminação e o racismo é a escola.
Segundo a concepção hoje predominante, os espaços escolares devem ser compreendidos
como espaços de troca de conhecimentos, no qual se constituem aprendizagens e
experiências docentes e discentes coletivas, de mútuo reconhecimento e livres de todas as
formas de racismo ou desigualdade.
Para tanto, é preciso incluir na escola e nos currículos escolares a cultura, o saber e a
história produzidas pelas populações negras. Pois as negras e negros carregam em si uma
rica história da ancestralidade africana, de experiências de luta e de resistência no Brasil,
que pode e deve ser positivamente incluída no cotidiano escolar, com vistas a tirar a
população negra da visão de uma cultura de inferioridade, diminutiva, subordinada. É
preciso recuperar a riqueza da cultura afro-brasileira, colocando-a em uma posição
afirmativa de construção no desenvolvimento da sociedade brasileira.
Paulo Freire é um dos autores que tem uma grande contribuição para pensar uma
educação antirracista e de valorização da cultura popular negra. Freire, preconiza os
homens como seres inacabados e que se educam em comunhão por meio do diálogo. Sua
concepção de educação nos convida a refletir sobre a relação que precisa se estabelecer
entre educador e educando:
Não mais educador do educando, não mais educando do educador, mas
educador-educando com educando-educador. Desta maneira, educador já não é
o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o
educando que, ao ser educado, também educa
13
.
A legitimação de uma educação antirracista, que contribua com a inclusão social,
será possível de ser realizada, se houver escuta e participação efetiva dos sujeitos que
sofrem a discriminação: não se trata de uma educação para alguém, mas com alguém,
entendendo que o conhecimento deve servir para transformar uma realidade e que as
práticas educativas possam agregar e trocar saberes alternativos e transformadores.
A educação formal, por meio do currículo, alfabetiza e ensina saberes convencionais,
além de valores para a formação cidadã. Esta educação acontece na escola e na academia
que tem a responsabilidade de debater e incluir em seus currículos a temática das relações
étnico-raciais na perspectiva de romper, de superar e de combater às desigualdades sócio
raciais. Cabe aos educadores não silenciar diante dos pré-conceitos, da discriminação racial
e construir práticas pedagógicas que promovam a igualdade racial no cotidiano escolar. Para
isto, acontecer precisam saber sobre a história e a cultura africana e afro-brasileira, superar
pré-conceitos sobre as negras e os negros, combater o racismo e a discriminação racial.
Em consequência do período escravocrata brasileiro a população negra ficou fora de
vários espaços de poder, as egressas e egressos das senzalas foram colocados à margem da
sociedade. Sem políticas de inserção a população recém liberta no projeto do pós abolição
e apoiados no preconceito de cor e inferioridade, não tiveram acesso à cidadania plena.
Para ressignificar os valores da tradição africana e fortalecer o pertencimento racial,
promovendo de fato um desenvolvimento integral das educandas e dos educandos,
devemos estar atentos como educadores para que o fazer pedagógico promova sentimento
de pertencimento e de respeito, reivindicando um espaço para a epistemologia africana na
construção e disseminação do saber e a compreensão de que somos iguais enquanto
humanos, embora diferente como indivíduos.
Educar para as relações étnico-raciais é educar para conhecer e respeitar as
diferentes matrizes culturais, éticas e epistemológicas que compõem os diferentes espaços
13 Paulo FREIRE, Pedagogia do Oprimido, p.78-79.
PRATES, Ana Maria da Rosa; BUENO, Francisca Izabel Da Silva; OLIVEIRA, Marcio Luiz de
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da sociedade. Ela se insere em um processo de luta continua pela superação do racismo e
das desigualdades raciais e pode contribuir para modificar e fazer repensar a lógica das
instituições escolares, fazendo destes espaços para produção de conhecimento não racistas
e não discriminadores.
A compreensão das diferenças raciais deve ser o ponto de partida para construir o
currículo escolar e as práticas pedagógicas que dão vida à escola. O momento político atual
é preocupante em vários aspectos, inclusive no que se refere à educação, autonomia das
escolas, das educadoras e dos educadores estão ameaçadas, considerando que a Base
Nacional Comum Curricular BNCC não dialoga com as políticas de ações afirmativas
conquistadas desde 2003. Mais do que nunca todo o docente precisa rever seus conceitos e
pré-conceitos, oferecendo a si próprio a oportunidade de desconstruir e libertar-se da
mentalidade colonialista e dar continuidade a estas conquistas históricas.
O ponto de partida para uma prática pedagógica comprometida com a inclusão
racial, se faz necessário propor e executar ações efetivas de enfrentamento dessa realidade,
começar pelo acolhimento de crianças, adolescente, jovens e adultos ao ambiente escolar.
A educação tem um papel fundamental na busca da equidade e oportunidade para todos,
lembrando que as relações de poder, as diferenças socialmente construídas entre negros e
brancos foram naturalizadas e até justificam as desigualdades entre os grupos. Não basta
no discurso dizer que a diversidade nos enriquece, quando na realidade discrimina e
classifica. Precisamos de ações prática no cotidiano escolar. Ao reconhecer que o sexismo,
a opressão e o racismo estão interligados, que violentam e matam podemos indicar
caminhos para o seu enfrentamento e superação das diferenças sociais e raciais.
Entender que as mulheres negras têm um protagonismo na educação, que permite
discutir estas relações, refletir sobre os lugares de fala e quem pode falar. É preciso
mergulhar na história real do Brasil e redescobrir as suas memórias de luta e
sobrevivência, pois o desconhecimento causa a perpetuação do sofrimento.
O reconhecimento da história de mulheres, negros, indígenas é ainda muito recente,
por isto há uma necessidade urgente de estimular e apoiar iniciativas que apresentem essas
outras histórias. Uma educação emancipadora não se constrói com silêncio das histórias
ou com uma história única. A educação deve resgatar estes silenciamentos ao longo da
própria história de sua construção.
UMA MÍSTICA BÍBLICA ANTIRRACISTA: CAMINHO SE FAZ CAMINHANDO
Então, o que a Bíblia pode oferecer para corroborar com esses avanços na luta
antirracista na educação e conquista para o povo negro na escola, entre crianças, jovens e
adultos, de forma particular, as mulheres? Como vimos, não é verdade que a Bíblia fala
de homens, do centro à margem, muitas mulheres ajudaram a consolidação do povo de
Deus. De modo que elas criam para s uma metodologia de luta, uma “mística bíblica”
para alumiar a experiência de luta na escola. Mas isso é possível a partir de uma
“hermenêutica afro-brasileira, feminista, libertadora e popularque reconsidere o rosto de
Deus, o significado da leitura, o papel das mulheres e as mulheres com o papel:
1) o rosto de Deus: É óbvio que rosto do Deus dablia é masculino: ele é o pai e criador,
o senhor, o rei. Numa perspectiva decolonial, é preciso ir além do óbvio para perceber que “ele
é pai, mas ele é também Deus de ternura e de amor maternais
14
, como aparece no livro do
profeta Oseias: Quando Israel era menino, eu o amei e do Egito chamei o meu lho... Fui eu,
contudo, quem ensinou Efraim a caminhar, eu os tomei pelos bros” (Os 11,1.3). Ora, é de um pai
14 PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, A interpretação da Bíblia na Igreja, p.81.
PRATES, Ana Maria da Rosa; BUENO, Francisca Izabel Da Silva; OLIVEIRA, Marcio Luiz de
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que o profeta fala, mas os gestos são de uma e: Deus é pai, mas também é e, mulher.
É urgente reencontrar-se de junto das crianças e jovens negras e negros rosto materno e
feminino de Deus.
2) o signicado da leitura: a leitura é um processo libertador. Paulo Freire nos
lembra que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”
15
: ler para ler a vida e com a
vida ler a Bíblia. Descobrir novas formas de ler a vida com as crianças e jovens negras na
escola, leituras estas que tragam suas tribos, gírias e lutas, também, seus medos, angústias e
apreensões. Essa mística bíblica na escola precisa aprender o jeito do Deus materno do
Êxodo: “Eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu grito por causa de seus
opressores; pois eu conheço as suas angústias. Por isso, desci a fim de libertá-los (Ex 3,7-8).
Uma mística para ver, ouvir, conhecer (sentir), descer e libertar onde esses sujeitos que
sofreram e sofrem discriminação possam ser protagonistas de seu processo libertador.
3) o papel das mulheres: como fizemos aqui, essa mística bíblica busca referência
na experiência de mulheres com o Deus Mãe de Israel e de Jesus: suas experiências são
referências. Ao tempo que, contemplando as mulheres da Bíblia, conectamos essa
caminhada feminina do povo de Deus com a longa marcha das mulheres no Brasil e no
mundo que deram e dão sua contribuição. Assim, de Miriam, a profetisa irmã de Moisés
(Ex 15,19-21) até a mais simples mulher negra de uma periferia do Brasil, encontramos
ligações, correspondências e esperanças compartilhadas.
4) as mulheres com o papel: feito esse caminho, de redescoberta do rosto materno
e feminino de Deus, da importância do ato de ler e do papel das mulheres, as mulheres
negras tomam o papel na mão: o papel da Bíblia, o papel da História do Brasil e da África,
o papel da escola para ler e reler, fazer novas leituras e interpretações. Percebendo o rosto
materno, ou seja, de um Deus, que também é mulher, é possível perceber o “rosto negro de
Deus”, ou seja, de um Deus que se associa a escravos e movimenta libertações (cf. Ex 3).
Assim, feita essa leitura com as mulheres, ao mesmo tempo que a Bíblia se torna um livro
na mão e continua sendo um livro muito importante, também faz com que as mulheres
negras passem a perceber a necessidade de escrever sua página à Palavra de Deus, a partir
de sua história, de seus desenhos, de seus gritos e de suas esperanças.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O artigo teve como propósito refletir e discutir a trajetória de lutas e resistências das
mulheres negras na sociedade brasileira na perspectiva da implementação de uma educação
antirracista, iluminado por relatos bíblicos que revelam a presença da mulher na Bíblia,
mesmo que à margem. Procuramos tecer as trajetórias de lutas de negras mulheres, na
perspectiva do revelar a importância do romper com o silenciamento e a invisibilidade que
as acompanham durante os processos de sua formação.
O título do artigo “Negras mulheres e mulheres da Bíblia, trajetória de lutas e
resistência: por uma educação antirracista” é oportuno para o momento em que vivemos e
assistimos às discussões sobre a maioridade da Lei 10.639/2003, que traz para o debate os
avanços conquistados e a possibilidade de desenvolver discussões que enfatizam a dificuldade
e a resistência da implementação da referida legislação nos espaços escolares e na academia.
Pela análise efetuada constatamos que a inclusão da educação para as relações étnico
raciais na formação dos professores mostra-se um caminho para uma efetiva mudança nas
instituições que coíba a reprodução do racismo, do preconceito e da discriminação,
analisando as questões raciais de forma a se desprenderem e dos hábitos eurocêntricos,
15 Pulo FREIRE, A importância do ato de ler, p.19.
PRATES, Ana Maria da Rosa; BUENO, Francisca Izabel Da Silva; OLIVEIRA, Marcio Luiz de
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patriarcais, machistas e racistas. Consideramos que a Lei 10.639/2003, apesar de suas
limitações, traz algumas contribuições que poderão contribuir para a normatização na
qualificação da organização escolar, na formação dos educadores na qualificação da gestão
escolar numa perspectiva antirracista. Entendemos que sem incluir na pauta escolar e no
plano pedagógico a questão racial o haverá educação antirracista que promova equidade
de oportunidades a todos.
E assim encerramos entendendo que:
Nossa dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e
vivemos como nossos pais... (Elis Regina, música “Como os nossos pais”)
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