EUCARISTIA: FONTE E CUME DA VIDA CRISTÃ
Tomai e comei, fazei isto em memória de mim (Lc 22,19)
Dr. Pe. Rogério L. Zanini*
Pe. Claudir Meoti**
DOI: https://doi.org/10.52451/teopraxis.v37i129.9
Recebido: 15 de novembro de 2018 | Aprovado: 01 de março de 2019
Resumo:
Para viver uma espiritualidade libertadora, talvez o mais delicado e
exigente seja a relação dos católicos com a Eucaristia. Infelizmente, a
Eucaristia, o mais precioso tesouro da fé e da vida espiritual, ainda se
encontra aprisionada e envolta de estruturas rígidas que nem sempre
permitem às pessoas se deliciarem com o mistério. Urge como desafio
refazer a centralidade da ceia de Jesus para que ela possa novamente se tornar
o alimento comunitário, ligada com a vida e às lutas cotidianas, como
sacramento da partilha e do amor de Cristo levado até o extremo (Jo 13,1). A
realidade da pandemia com o fechamento das Igrejas/Templos fez perceber
os desafios da evangelização em relação à Eucaristia, bem como seus avanços
na compreensão da ceia como banquete de solidariedade com os pobres e
excluídos. Por isso, a reflexão que segue busca, primeiro, discorrer de forma
narrativa sobre os Evangelhos com o objetivo de perceber a centralidade das
refeições na vida de Jesus. Em segundo lugar, compreender o sentido do
mandamento, deixado por Jesus:
fazei isto em memória de mim
. E, por fim,
em terceiro lugar, o
tomai e comei
como banquete da vida, rechaçando
qualquer perspectiva individualista e farisaica em relação à Eucaristia.
Palavras-chave:
Jesus. Eucaristia. Evangelização. Vida.
Introdução
A pandemia, como não poderia ser diferente, afeta a vida da
Igreja. No livro do Apocalipse encontra-se uma passagem, na
* Padre da Diocese de Chapecó. Doutor em teologia pela PUCRS. Professor e
Diretor da Itepa Faculdades - Passo Fundo. Email: zaninipastoral@hotmail.com
** Padre da Diocese de Chapecó. Pároco da Paróquia Senhor Bom Jesus da Coluna,
Xanxerê SC. Formado em filosofia e teologia e pós-graduado em Liturgia e em
Iniciação à Vida Cristã Catequese. Email: claudirmeoti@yahoo.com.br
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qual o autor afirma, referindo-se às comunidades: quem tem
ouvidos, ouça o que o Espírito diz às Igrejas (Ap 2,7). Se o
Espírito é o agente primeiro da evangelização: como nesta
realidade obscura, provocada pela pandemia, se revela e atua a
força do Espírito nos processos de evangelização? Que
diagnóstico eclesial é possível verificar diante do cenário da
pandemia? Alguns já se perguntam como será depois da
pandemia. Questão importante se estiver embasada numa
reflexão correta do cenário deixado por ela. Senão, há o sério
perigo de propor respostas a questões inexistentes. Daí a
importância de perguntar-se especificamente pela realidade da
Eucaristia, fonte e cume da vida cristã, e suas consequências
para os processos de evangelização.
Diante das orientações da Organização Mundial da Saúde
(OMS) para
controlar
a contaminação pelo coronavírus, uma das
medidas é o distanciamento social. Essa orientação necessária e
eficaz transtornou a caminhada de evangelização,
principalmente quando foi preciso
coibir
a participação física dos
fiéis na celebração eucarística. Surge o grande questionamento:
vamos ficar sem comungar? A pergunta é interessante e sobre o
que tentamos discorrer neste texto é o verdadeiro sentido do
comungar do Corpo e Sangue de Cristo para a vida daqueles
que desejam seguir a proposta do Evangelho.
A reflexão que segue aborda, em primeiro lugar e de forma
narrativa, os Evangelhos com o objetivo de perceber a
centralidade das refeições na vida de Jesus. Em segundo lugar,
em conexão com as narrativas das refeições, busca compreender
o sentido do mandamento deixado por Jesus: fazei isto em
memória de mim. E, por fim, em terceiro lugar, o
tomai e
comei
como banquete da vida, rechaçando qualquer perspectiva
individualista e farisaica em relação à Eucaristia. Ao refletir esses
três pontos, desejamos firmar que a Eucaristia é, sim, central e
alimento indispensável aos que seguem a Jesus. Ela é o sustento
essencial para a missão de anunciar o Reino de Deus.
ZANINI, Rogério L.; MEOTI, Claudir.
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1 Jesus e as refeições
Quando se analisa a vida de fé da Igreja católica, fica
evidente a importância teórica e prática da Eucaristia. A
tradição é longa e muito fecunda historicamente. Desde o
início do cristianismo, a Eucaristia se tornou o núcleo por
excelência da experiência cristã. Central na vida de Jesus, a
Igreja entendeu a Eucaristia, na expressão Concílio Vaticano II
(1965), como fonte e cume da vida cristã. Pela participação no
sacrifício eucarístico de Cristo, fonte e centro [cume] de toda a
vida cristã (LG 10; QA 84), a Igreja se torna o que ela de fato
é: comunhão.
Para compreender o processo da configuração da Eucaristia
como expressão da realidade comunal da Igreja, é importante
voltar às primeiras narrativas dos Evangelhos. Os Evangelhos
são a carta magna da grande síntese das palavras-mandamento
de Jesus: fazei isto em memória de mim. Que memória se está
atualizando em cada celebração eucarística?
As narrativas bíblicas deixam entrever uma infinidade de
momentos em que Jesus se refere ao alimento. São uma gama
bem expressiva dos banquetes e refeições realizados na presença
de Jesus. Como se dirá a seguir, Jesus revela-se um homem da
mesa e colocará quase como necessidade imprescindível a
comensalidade para participar do Reino de Deus. As narrativas
das refeições, antes de celebrar a última ceia, são uma amostra
do reinado de Deus e, também, das dificuldades próprias de os
discípulos entenderem a novidade que Jesus traz à humanidade.
Quando se percorre as narrativas dos evangelhos, é perceptível
que houve uma sequência de outras refeições e banquetes na
presença de Jesus, anteriores à última ceia. Sem a preocupação
exaustiva de esgotar, retomam-se algumas refeições narradas
pelos Evangelhos.
Jesus como peregrino ia de casa em casa compartilhando da
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experiência da vida e acolhendo o que lhe ofereciam. É
convidado para fazer refeições e participa com alegria. Jesus
também aparece convidando-se para estar na casa das pessoas,
como mostra o exemplo de Zaqueu. Encontro que começa no
caminho e termina na casa, com a conversão e mudança de vida
de Zaqueu (Lc 19,1-10). Há situações inesperadas, em que o
banquete é preparado, mas os convidados não aparecem. Jesus
contorna aquela decepção, mandando convidar um público
marginalizado e excluído, segundo a visão daquela sociedade: os
pobres, os aleijados, os cegos e os mancos (Lc 14,15-24). A lição
é a possibilidade de autoexclusão em participar do Reino de
Deus, não por parte de Jesus, que não exclui ninguém, mas pelo
contrário. Ao assegurar que dos pobres é o Reino de Deus, Jesus
revela o desejo da universalidade do banquete. No entanto, a
participação no Reino não se dá de qualquer forma, é fruto das
escolhas, ou melhor, da resposta dada diante das exigências para
fazer parte do reinado de Deus.
Algumas refeições se tornam escolas catequéticas para
instruir os discípulos na responsabilidade e no compromisso
com a fome das pessoas. Exemplo típico é a multiplicação dos
pães que, apesar das diferenças, é narrada por todos os
evangelistas (Mt 14,13-21; Mc 6,30-40; Lc 9,10-17; Jo 6,1-13).
O que importa nesses textos é evidenciar pessoas com fome e o
ensinamento de Jesus. Jesus sonda a opinião dos discípulos sobre
o que fazer diante do povo faminto e os responsabiliza: dai-
lhes vós mesmos de comer.... Os discípulos só veem duas
saídas: uma, mandar o povo embora, ou seja, quem tem come e
quem não tem se vira como pode. Outra, a saída personalista,
com ares messiânicos, ou seja, alguém vai comprar pão para
todos. E surge o caminho aberto por Jesus: avaliar o que
possuem, organizar, partilhar, cuidar das sobras e evitar os
desperdícios. É a lição de outro modo de pensar como deve ser
a nova sociedade testemunhada pelos discípulos/cristãos,
seguidores de Jesus em todos os tempos.
ZANINI, Rogério L.; MEOTI, Claudir.
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O Papa Francisco traz presente esse texto, justamente ao se
referir e desejar uma Igreja em saída. Saiamos, saiamos para
oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Acrescenta: Prefiro
uma Igreja acidentada, ferida e enlameada, por ter saído pelas
estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade
de se agarrar às próprias seguranças. E revela seu maior medo:
Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de
nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção,
nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos
hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma
multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar: Dai-lhes vós
mesmos de comer (Mc 6,37) (EG 49).
O evangelista São João, ao narrar a multiplicação dos pães,
apresenta uma realidade bem curiosa. Para o que interessa aqui,
João da mesma forma fala da multiplicação dos pães, no
entanto, logo em seguida, Jesus percebe que o povo e os
discípulos o estão seguindo e, surpreendentemente, os adverte:
Em verdade, em verdade, vos digo: vós me procurais, não
porque vistes sinais, mas porque comestes dos pães e vos
saciastes (Jo 6,26). Na sequência, explicita abertamente o
caminho da cruz e o que significa comer seu corpo e beber seu
sangue. Isso as pessoas consideram duro demais e se colocam
em debandada: A partir daí, muitos dos seus discípulos
voltaram atrás e não andavam mais com ele (Jo 6,66). Ao que
Jesus interpela os doze: não quereis também vós partir? (v.
67). Simão Pedro, respondeu: Senhor, a quem iremos? Tens
palavras de vida eterna e nós cremos e reconhecemos que tu és
o Santo de Deus (Jo 6,68-69). É a pergunta cortante sobre a
disposição de seguimento de Jesus e sobre a consciência da
necessidade de arcar com o peso da cruz. Por que seguimos a
Jesus? As pessoas percebem sinais de amor, de renúncias, de
radicalidade na opção dos cristãos em vista da justiça, da casa
comum e no projeto do Reino de Deus?
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Retomando os evangelhos, outra realidade que se vislumbra
na prática de Jesus é a relativização dos bens em vista da vida.
Significa colocar os bens do mundo a serviço da vida. Cena
chamativa, neste sentido, acontece quando os discípulos colhem
espigas de trigo para saciar sua fome, em campos alheios, em dia
de sábado, como nos relata São Marcos (Mc 2,23-28). Segundo
os fariseus, é sábado e não é permitido, porque descumprem
uma das leis mais sagradas dos judeus. Não importa, nesse caso,
se está em jogo o problema da lei do sábado ou da colheita dos
bens alheios. A resposta de Jesus é profética: O sábado foi feito
para o homem, e não o homem para o sábado (v. 27)
1
. Em São
Mateus, o questionamento aparece depois que Jesus cura um
homem em dia de sábado. Na resposta, Jesus compara entre o
valor de uma ovelha resgatada de um buraco e o do ser
humano. O que se faz, se cair uma ovelha no buraco em dia de
sábado? Não irão socorrê-la? Portanto, se vale para o animal,
muito mais ao ser humano, fonte de dignidade absoluta (Mt
12,11-12).
O teólogo Maria José Castillo, depois de passar em revista os
textos eucarísticos do Novo Testamento, conclui com duas
ideias interligadas. Uma, a eucaristia é fato comunitário, isto é,
não existe nenhum texto no qual a eucaristia aparece como
gesto individual realizado por um indivíduo e para um
indivíduo, mas se trata sempre de algo partilhado por um
grupo. Outra, a Eucaristia é comida sempre partilhada.
Significa que não é coisa santa e sagrada, mas uma
ação
que,
logicamente, comporta determinado simbolismo
2
.
Outra característica destacada por Castillo é o fato de Jesus
instituir a Eucaristia em uma refeição (ceia de despedida). Fato
1 Cf. Ildo Bohn GASS,
Jesus sobrepõe às leis o direito à vida
. 28 de maio de 2018.
Disponível em: https://cebi.org.br/reflexao-do-evangelho/jesus-sobrepoe-as-leis-
o-direito-a-vida/. acesso em 01 de agosto de 2020.
2 Cf. José María CASTILLO, Eucaristia. In: C. F. SAMANES; José TAMAYO
ACOSTA (orgs.),
Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo
, p.252-253.
Grifo do autor.
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que remete a uma prática de Jesus e de sua comunidade, o que
considera algo expressivo. E, assim como se assinalou acima,
Castillo também chama a atenção para os contextos polêmicos
das refeições de Jesus. 1) Jesus e seus discípulos não se encaixam
às normas rituais e religiosas, que todo judeu observante levava
em consideração (Mc 7,2-5; Mt 12,21; Jo 18,28). 2)
Compartilham à mesa pessoas desacreditadas, como pecadores e
gente indesejável (Mc 2,16; Lc 15,2). 3) A comunidade de Jesus
não jejuava conforme as prescrições exigidas pela lei (Mc 2,17-
18). 4) Os inimigos de Jesus também o acusavam de ser comilão
e beberão (Mt 11,18-19). São elementos claros que revelam que
Jesus e sua comunidade rompem com a teologia estabelecida
por aquele sistema religioso. Porque: O verdadeiro sentido
teológico da comida partilhada, segundo o ensinamento
evangélico, consiste em compartilhar a vida e se solidarizar com
os pobres e desamparados deste mundo
3
.
Ora, essas passagens dos Evangelhos visualizam a percepção
da constância das refeições na vida de Jesus, bem como das
dificuldades das autoridades, das classes abastadas e dos próprios
discípulos de aceitarem a mesa como símbolo da comunhão, da
fé, da justiça e do amor como doação total (Jo 13,1).
2 Banquete de despedida: Fazei isto em memória de mim
O fato de Jesus realizar uma ceia para se despedir na véspera
de sua morte aparece, por um lado, sem surpresa na vida dos
discípulos e, por outro, está em continuidade com o pilar
fundamental de sua vida. Quer dizer, uma refeição estava
totalmente em ordinário com a prática de Jesus, ou seja,
despede-se da mesma forma como viveu. O antes, o durante e o
depois estão em sintonia e comunhão profunda em Jesus de
Nazaré. Jesus é aquele que passou pelo mundo fazendo o bem,
3 José María CASTILLO, Eucaristia. In: C. F. SAMANES; José TAMAYO
ACOSTA (orgs.),
Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo
, p.253.
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como recorda São Pedro (At 10,38), se despede dos seus com
uma refeição. É o testamento autorizado e missionário para que
os discípulos não duvidem da necessidade de continuar fazendo
isto
em memória de Jesus.
Com esse pano de fundo, fica mais fácil entender o apóstolo
Paulo, quando reclama da falta de fraternidade entre os
membros da comunidade. Porque uns comem do que têm e
antes dos outros, e os demais permanecem com fome. Desta
forma, comem da própria condenação. Eis porque todo aquele
que comer do pão ou beber do cálice do Senhor indignamente
será réu do Corpo e do Sangue do Senhor (1Cor 11,29). E, às
duras penas, Paulo consegue ajudar a comunidade a manter o
critério fundamental: não se esquecer dos pobres (Gl 2,10) e a
necessidade de superar todas as divisões, porque não há mais
judeus ou gregos, escravos ou livres, homens ou mulheres (Gl
3,28). A fraternidade é a identidade cristã: amai-vos uns aos
outros (Jo 15,17). O testamento repetido em todas as
celebrações: o amor de Cristo nos uniu.
Assim se entende, a relação intrínseca entre banquete
eucarístico e amor ao próximo. Essa foi a grande missão das
primeiras comunidades cristãs para manter-se na fidelidade à
memória de Jesus e no desejo de se constituir em um só coração
e uma só alma. Ainda, a luta para vencer a tentação da
propriedade privada, colocando tudo em comum (At 2-4),
projeto evangélico audacioso que peregrinou na história, não
sem dificuldade, conforme o relato do casal, Ananias e Safira,
que desviam o dinheiro de uma propriedade (At 5,1-11).
Atitude designada como pecado contra o Espírito Santo.
É nessa matriz bíblica que está fundamentada a vida cristã, e
fazer memória é atualizar esse ensinamento sempre pertinente
na história do cristianismo. Então, ao dizer sim ao batismo, os
cristãos estão assumindo esse compromisso de morrer para uma
determinada forma de vida e mergulhar no estilo de Jesus. Um
mergulho por inteiro na missão de ser uma nova criatura, um
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novo nascimento, como Jesus exigiu de Nicodemos (Jo 3,1-36).
Nascer de novo é colocar-se a caminho dessa meta e deixar-se
converter pelas águas do Cristo crucificado-ressuscitado, a fim
de ser instrumento de Deus no mundo.
As diferentes refeições e a ceia de despedida, com a presença,
inclusive, de Judas apontam para as tensões e os conflitos diante
do seguimento. Judas expressa a decisão, o não compromisso
com Jesus. Jesus e os discípulos
suportam
Judas durante todo o
tempo da missão, esperando sua conversão. No entanto, Judas
se mostra sempre mais fora da
memória
de Jesus para assumir a
memória
do mundo, das autoridades, das classes políticas. A
noite do mundo, Nicodemos conseguiu superar, mas Judas não.
A saída de Judas não é rejeição do grupo dos discípulos. Sua
adesão decisiva ao grupo dos guardas, das autoridades e dos
sumos sacerdotes do Templo fez de Judas um infiel ao projeto
do Reino de Deus. Quem não faz aliança com o grupo de Jesus
faz aliança com seus opositores. Quem não participa do
banquete de Jesus, participa de outro banquete. Não há
neutralidade: ou se escolhe a vida ou, a morte (Dt 30,15-20).
Judas tem nas mãos a vida e a morte e escolhe a morte,
rompendo a Aliança. Na verdade, é à mesa que Judas confirma
não ter tido comunhão com Jesus e com seu grupo, durante o
ministério e durante os ensinamentos
4
.
Outrossim, a atitude de Judas expressa a total contradição de
comungar do pão e não do projeto de Jesus. O banquete
eucarístico desponta, portanto, como elemento de
discernimento na vida dos cristãos. Alimento de Jesus, também,
para os fracos, excluídos, rejeitados e não prêmio para os bons,
como assegurou o Papa Francisco: A Eucaristia não é um
prêmio para os bons, mas remédio para os fracos. E declara que
o Reino de Deus é uma festa: Por isto peçamos que dê de
comer a todos nós. Dar de comer aquele alimento espiritual que
4 Cf. Isidoro MAZZAROLO,
Lucas em João
, p.91.
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nos fortifica, à mesa na Eucaristia, mas também dar de comer a
todos, neste mundo onde o reino da fome é tão cruel
5
.
Atualmente, presenciamos cristãos clamando: Queremos
Eucaristia...; Estou com saudade de comungar...; Tenho
direito a Eucaristia .... O que esses
gritos
estão revelando? Uma
experiência eucarística, como memorial da vida em abundância
levado a cabo por Jesus até a cruz, ou a experiência de um
alimento espiritual, sem implicância religiosa, social e política
no mundo? Jesus, ao se despedir dos discípulos, garante a
unidade dEle com o Pai: Eu e o Pai somos Um (Jo 10,30). Os
cristãos, ao participarem do banquete eucarístico, se tornam
outro Cristo? Quem vê os cristãos comungarem, entrarem na
filha da Eucaristia todos os domingos, como imagina sua
atuação moral, ética, social e política ... durante a semana?
A Eucaristia é o desejo trinitário de um mundo de
fraternidade e de justiça. Segundo Gustavo Gutiérrez, a unidade
profunda das diferentes significações que o termo
koinonia
tem
no Novo Testamento poderia se resumir em três realidades. Em
primeiro lugar, a partilha dos bens necessários à existência
terrestre. Não deixeis de fazer o bem e compartilhar os bens,
por que esses são os sacrifícios que agradam a Deus (Hb 13,16;
At 2,44; 4,32). É assim um gesto concreto de caridade fraterna.
Por isso, Paulo utiliza esta palavra para se referir à coleta em
favor dos cristãos de Jerusalém. Esses glorificam a Deus pela
generosidade de sua comunhão com eles e com todos (2Cor
9,13; 2Cor 8,3-4; Rm 15,26-27). Em segundo lugar, a
koinonia
designa também a união dos fiéis com Cristo, por meio da
Eucaristia: O cálice da bênção que abençoamos, não é a
comunhão com o sangue de Cristo? E o pão que partimos não é
comunhão com o Corpo de Cristo? (1Cor 10,16).
Koinonia
significa, finalmente, a união dos cristãos com o
Pai
: Se
5 Disponível em: https://noticias.cancaonova.com/especiais/pontificado/francisco/
eucaristia-nao-e-premio-para-os-bons-e-remedio-para-os-fracos-diz-papa/.
Acesso em 14 de maio de 2020.
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dizemos que estamos em comunhão com Ele e caminhamos nas
trevas, mentimos e não procedemos conforme a verdade ((1Jo
1,3.6); com o
Filho
: Pois fiel é Deus, por quem fomos
chamados à comunhão com seu Filho (1Cor 1,9; 1Jo 1,3); e
com o
Espírito
: A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de
Deus e a comunhão do Espírito Santo esteja com todos vós
(2Cor 13,13; Fl 2,1)
6
.
A fraternidade humana, portanto, tem seu fundamento na
plena comunhão com as Pessoas Trinitárias. O laço que une a
realidade divina com a humana é recordado e anunciado
eficazmente na Eucaristia. Significa que, sem um real
compromisso contra os mecanismos de opressão e de
alienação, e, portanto, a favor de uma sociedade igualitária e
justa, a celebração eucarística é um ato vazio. Fazer memória
de Cristo é mais que realizar um ato cultual; é aceitar viver sob
a perigosa profecia da cruz e da esperança da ressurreição. É
aceitar o sentido de uma vida que chegou até a morte,
dAquele que passou pelo mundo fazendo o bem e foi
reconhecido pelo centurião romano, como realmente Filho de
Deus (Mc 15,39).
Um texto de São Mateus é claro a respeito da relação entre
culto e fraternidade humana. Portanto, se estiveres para trazer a
tua oferta ao altar e ali te lembrares de que o teu irmão tem
alguma coisa contra ti, deixa a tua oferta ali diante do altar e vai
primeiro reconciliar-te com o teu irmão; e depois virás
apresentar a tua oferta (Mt 5,23-24). Não se trata do problema
de uma consciência escrupulosa e sim de viver segundo as
exigências do amor. Significa que ser causa de queda da
fraternidade humana desqualifica para participar da celebração
do Senhor. Porque a celebração com o Senhor é a mais pura
manifestação do amor da família humana e cósmica. Por isso, o
Evangelho de Mateus insiste na necessidade do perdão infinito
6 Cf. Gustavo GUTIÉRREZ,
Teologia da libertação
, p.325.
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(70 vezes 7), porque com as relações humanas quebradas não há
verdadeiramente banquete eucarístico (Mt 18,21-22).
A comunidade cristã não pode oferecer de maneira autêntica
o sacrifício de Cristo se antes não realizar de modo efetivo, o
preceito do amor ao próximo. Desligar esse sacrifício do amor
ao próximo é a razão das duras críticas dos profetas e do próprio
Jesus. Ora, se o serviço ao próximo estivesse ausente, neste caso,
a oração e toda a liturgia, como também o falar de Deus, não
passariam de falsidade e hipocrisia. Assim entendia São Paulo,
por isso, antes de relatar a instituição da Eucaristia, assinala a
condição necessária para fazer parte do banquete. É o que
critica na comunidade dos coríntios, quando de suas reuniões
para celebrar a ceia do Senhor (1Cor 11,17-34; Tg 2,1-4)
7
.
Da mesma forma, o biblista Isidoro Mazzarolo realça que a
Eucaristia é uma festa, uma reunião e uma refeição. Na sua
etimologia é uma ação de graças. Ela não pode suportar a
contradição, nem ser uma simples memória do passado, mas a
historicização do compromisso, da aliança com outro e com o
mundo na dinâmica de Cristo. A dimensão escatológica da
Eucaristia como banquete perfeito não se separa jamais na mesa
do mundo. É aqui na história de nossos dias, no tempo presente,
na criação que geme e sofre em dores do parto (Rm 8,22) que a
salvação acontece. É o compromisso na história que constrói a
libertação. Ela exige uma comunhão com os pobres do mundo
(Lc 6,20-23)
8
.
3 Banquete da vida: Tomai e comei
É na refeição que Jesus se despede antes de enfrentar o
sacrifício do Calvário e da Cruz. Sua despedida não foi uma
negação de sua vida, mas a entrega total dela para que os sinais
do Reino de Deus possam estar presentes na realidade histórica.
7 Cf. Gustavo GUTIÉRREZ,
Teologia da libertação
, p.323.
8 Cf. Isidoro MAZZAROLO,
Lucas em João
, p.94.
ZANINI, Rogério L.; MEOTI, Claudir.
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A sua ausência física não será sinal de distanciamento ou de
abandono, pelo contrário, será sinal de proximidade e de
aconchego. Alias, Ele permanece vivo entre nós nas espécies do
pão e do vinho que, quando transubstanciados pela ação do
Espírito Santo, se tornam seu próprio Corpo e Sangue. A
transformação do pão e do vinho no Corpo e Sangue do
Senhor não é um fim em si mesma, mas tem por finalidade
fazer a Igreja, isto é, transformá-la no corpo místico
9
. Quer
dizer, o corpo sacramental está orientado à nossa
transformação em um só corpo, o corpo eclesial
10
.
É no banquete da vida que, pela atuação do presbítero
in
persona Christi
, acontece essa ação do Espírito Santo sobre os
dons do pão e do vinho. Mais especificamente, é em virtude da
prece eucarística pronunciada sobre eles, que os elementos da
ceia se transformam substancialmente, de forma que como
declara solenemente Justino não são mais um pão comum,
nem uma bebida comum, mas a carne e o sangue daquele Jesus
que se encarnou
11
.
É fundamental perceber que a ação do Espírito Santo não se
dá só sobre os dons do pão e do vinho, mas também, sobre os
fiéis que participam da celebração Eucarística.
Enquanto a epiclese sobre as oblatas pede a Deus Pai que mande o
Espírito Santo para que transforme o pão e o vinho no corpo e no
sangue do Senhor Jesus, a epiclese sobre os comungantes pede,
para quem se prepara para fazer a comunhão, a transformação em
um só corpo. Os dois pedidos não são independentes, mas
constituem, de fato, uma única e mesma súplica
12
.
Assim, ao dizer aos apóstolos
tomai e comei
, Jesus está lhes
confiando o alimento salutar que os manterá fiéis na
9 Cesare GIRAUDO,
Redescobrindo a Eucaristia
, p.8.
10 Cesare GIRAUDO,
Redescobrindo a Eucaristia
, p.11.
11 Cesare GIRAUDO,
Redescobrindo a Eucaristia
, p.22.
12 Cesare GIRAUDO,
Redescobrindo a Eucaristia
, p.47.
74
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continuidade da sua missão de anunciar o Reino de Deus. Da
mesma forma, continua a dizer aos que participam da ceia
eucarística que a Eucaristia é o
sinal
por excelência daqueles que
fazem o bem, nutridos do projeto vivido por Jesus, que tem a
defesa da vida sempre em primeiro lugar. Portanto,
tomai e
comei
é comprometer-se em ser no mundo um discípulo fiel de
Jesus, tendo os mesmos sentimentos de Cristo Jesus (Fl 2,5).
Porque, pela Eucaristia, Ele habita em nosso ser para sermos no
mundo um com Ele.
Jesus é Deus-por-nós, Deus-conosco, Deus-em-nós. Jesus é Deus
dando-se completamente, vertendo-se por nós sem qualquer
reserva. Jesus não se apega a suas próprias posses. Ele dá tudo que
existe para dar. Comei, bebei, este é o meu corpo, este é meu
sangue... este sou eu para vós!
13
.
É o gesto tão simples e cotidiano de reunir-se em torno da
mesa para a refeição que Jesus transforma em baquete da vida.
Ao tomar o pão e o vinho e dizer que esses serão sinais eternos
de sua presença viva entre nós, Jesus torna célebre um ato
comum, mas que revela a essência do existir. A Eucaristia é um
gesto humano que se tornou divino pela ação de Jesus, mas que
deseja humanizar ainda mais as relações entre as pessoas que, ao
participar deste banquete, se comprometem a fortalecer a
comunidade, a amizade, a paz, o amor, a justiça, a esperança.
Enfim, o desejo de um mundo novo, em que realmente Deus
seja tudo em todos (1Cor 15,28c).
É no ato de dar-se de Jesus que o pão e o vinho se
transformam pela ação do Espírito Santo em Corpo e Sangue.
Isso é Eucaristia. Assim se entende melhor que o sacrifício é
parte integrante da ação de Jesus para a edificação do Reino de
Deus e a salvação da humanidade. É nesse sentido que a
participação na Eucaristia só se torna plena se a vida se tornar
13 Henri J. M. NOUWEN,
Com o coração em chamas
, p.54.
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Eucaristia: comunhão com Deus e comunhão com os irmãos.
Esta comunhão, pode-se dizer que está no mais íntimo
desejo de Deus. No entanto, Deus respeita a liberdade e o
tempo de cada ser humano. Ninguém é forçado! É verdade que
Deus vai aos extremos do amor para tocar o coração humano.
Comunhão é o que Deus quer e o que nós queremos. É o
clamor mais profundo de Deus e de nosso coração, porque
fomos feitos com um coração que só pode ser satisfeito por
quem o fez. Deus criou em nosso coração um desejo por
comunhão que ninguém além de Deus pode e quer realizar.
Deus sabe disso. Nós, raramente
14
.
A Eucaristia é a comunhão com Deus por excelência. Por
ela se pertence ao Reino de Deus: Quem comer deste pão
viverá eternamente (Jo 6,51b). Mas ela não é fim em si mesma,
pois remete à missão de continuar a obra de Deus, a qual só será
completa no fim dos tempos. A cada ação em defesa da vida se
realiza mais comunhão com Deus e mais concorpóreos de
Cristo nos tornamos. Revela-se, desta forma, que é Ele que está
agindo no ser humano levando a pleno efeito a participação da
humanidade no banquete da vida.
A presença real não nos foi dada só para que possamos adorar a
Cristo sob as espécies eucarísticas; a comunhão não nos foi dada
principalmente para que possamos encontrar e receber no coração
o amigo Jesus, a quem fazemos, por alguns instantes, uma
fervorosa e afetuosa companhia. O Senhor não instituiu a
eucaristia em função de nossos olhos que a contemplam. Ele a
instituiu em função de nossas bocas que se nutrem dela: instituiu-a
para que a comêssemos
15
.
É em torno da mesa do altar que se estabelece comunhão
com Deus e através da comensalidade do Corpo e do Sangue de
Cristo, que Ele vai assumindo a vida de quem se deixa contagiar
14 Henri J. M. NOUWEN,
Com o coração em chamas
, p.57-58.
15 Cesare GIRAUDO,
Redescobrindo a Eucaristia
, p.49.
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por seu ensinamento. Então, no dizer de São Paulo, já não sou
eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim (Gl 2,20). De tal
maneira que as ações dos comungantes devem estar em
continuidade com as ações de Cristo, especialmente nos gestos
de partilha e de defesa da vida. Essa é a verdadeira comunhão
com Jesus: sermos como Ele, Bom Pastor, samaritano,
misericordioso, humilde, justo, coerente, ético...
As primeiras comunidades cristãs (séculos I e II) tinham bem
claro esse sentido do ser cristão e de viver a Eucaristia. Isso nos
é confirmado pelo testemunho de Justino (martirizado em 165).
Depois, os que estão na abundância e querem dar, dão por livre
escolha o que cada um deseja, e o que é recolhido, é depositado
aos pés de quem preside; e ele mesmo socorre os órfãos e as viúvas
e os que são negligenciados por enfermidade ou por outra causa e
os que estão no cárcere e os que estão de passagem como
forasteiros; numa palavra, faz-se protetor de todos os que estão em
necessidade
16
.
É a partir da experiência vivida pelas primeiras comunidades
cristãs que São Basílio chama a atenção sobre a relação entre a
liturgia e o compromisso ético, a oração e a ação, já que são
dois modos complementares e interdependentes de se viver a fé:
sem liturgia é difícil que se dê verdadeiro compromisso ético;
sem compromisso ético é impossível que haja verdadeira
liturgia. A partir dessa compreensão, a Eucaristia, que tem em
sua essência a transformação
num só corpo
, é vertical e horizontal
ao mesmo tempo. A dimensão vertical, nosso direcionamento
e atenção a Deus, encontra sua verificação natural na dimensão
horizontal, em nosso direcionamento e atenção àqueles de
quem devemos fazer-nos próximos
17
.
No dizer de Cesare Giraudo: uma Eucaristia sem a vontade
de assumir compromissos éticos sobretudo com o próximo
16 JUSTINO,
Apologia
67,6-7.
17 Cf. Cesare GIRAUDO,
Redescobrindo a Eucaristia
, p.57.
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é, para quem dela participa, uma eucaristia nula. Sem
compromissos operosos, o culto se torna um passatempo
cômodo, um culto vazio, uma aparência de culto
18
, semelhante
aos cultos criticados pelo profeta Isaías (Is 1,14) e pelo profeta
Amós (Am 5,21-23).
Tomai e comei é permitir e contribuir para que a ação de
Deus na história continue a partir de mulheres e homens
comprometidos com o testemunho dos valores do Evangelho.
A humanidade não pode ser espectadora da história! Deus conta
conosco, por isso Ele nos deu olhos para ver, ouvidos para
ouvir, mãos para atuar. Nossos olhos devem ser os olhos com
que Deus vê as necessidades, nossos ouvidos, os ouvidos com
que Deus escuta os lamentos, nossas mãos, as mãos de que Deus
se serve para vir em socorro
19
. Assim, nossas eucaristias
atingem sua plenitude porque conduzem os fiéis à ação diante
da realidade, vivendo uma profunda experiência de pertencer
ao Senhor.
Por isso, é preciso redescobrir a Eucaristia como fonte e
ápice da vida cristã, no sentido de transformar os seguidores de
Cristo em pessoas apaixonadas pelo projeto do Reino de Deus.
Desta forma, o amém confessado publicamente ao entrar na fila
da comunhão vence a perspectiva individualista, e empurra os
cristãos a assumirem decididamente o estilo de vida de Jesus
crucificado-ressuscitado.
Conclusão
A Eucaristia, como fonte e cume da vida cristã, foi acolhida
maravilhosamente pelo Concílio Vaticano II (LG 11). Depois
de séculos de história, que cristalizou o banquete de Jesus em
uma refeição quase mágica e distante da realidade do povo, o
Concílio resgatou a centralidade do memorial eucarístico de
18 Cf. Cesare GIRAUDO,
Redescobrindo a Eucaristia
, p.57.
19 Cesare GIRAUDO,
Redescobrindo a Eucaristia
, p.57-58.
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Cristo. O resgate da Eucaristia como banquete do amor de
Cristo é, em consequência, o alimento missionário para os
cristãos
eucaristizar
o mundo. Conforme o Papa Francisco:
Na Eucaristia vemos que, no apogeu do mistério da Encarnação, o
Senhor quer chegar ao nosso íntimo através dum pedaço de matéria.
() [Ela] une o céu e a terra, abraça e penetra toda a criação. Por
isso, a Eucaristia pode ser fonte de luz e motivação para as nossas
preocupações pelo meio ambiente, e leva-nos a ser guardiões da
criação inteira. Assim, não fugimos do mundo, nem negamos a
natureza, quando queremos encontrar-nos com Deus (QA 82).
Este alimento, no entanto, não produz apenas uma
transformação da pessoa, mas, como sacramento da unidade,
Cristo nos uniu - aprofunda as relações de fraternidade entre
os cristãos e sua relação com o mundo. O empenho em
participar dignamente deste sacramento se atualiza no
relacionamento com as pessoas. No trabalho diário se continua
o sacrifício do altar, o qual se prolonga, desse modo, na vida.
Frequentemente, é mais difícil realizar o sacrifício de oferta no
cotidiano, dos conflitos, diante das dificuldades, do que celebrá-
lo dentro de uma Igreja.
A reflexão fez perceber a centralidade das refeições na
prática de Jesus. Urge como desafio voltar às narrativas bíblicas
para redescobrir sempre de novo o frescor da prática de Jesus na
vida cristã. Caminho que faz compreender a Eucaristia dentro
da dinâmica geradora de vida, porque traz imbuída a reconciliação,
a fraternidade, a justiça e o desejo de vida plena. A pandemia
parece ter possibilitado a redescoberta da oração familiar, seja
em torno da mesa antes das refeições, seja à noite. Perspectiva
que vem ao encontro dos desafios levantados e impulsionados
pelas novas diretrizes da ação evangelizadora do Brasil.
A Eucaristia é alimento processual do caminhante que se
deixou transformar pela Palavra de Deus. Basta recordar a
narrativa dos discípulos de Emaús para perceber o processo de
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evangelização realizado por Jesus antes de celebrar a refeição
(Lc 24,13-35). Caminhou em silêncio, fez perguntas, ouviu
atentamente as decepções, dialogou, falou a partir das
Escrituras, fez memória histórica... Não foi esse
gastar tempo
determinante para que os discípulos compreendessem o projeto
de Jesus e o convidassem a ficar com eles? Nesse caso, a refeição
não foi a porta de entrada, utilizada por Jesus para evangelizar,
mas um momento especial preparado no caminho. Por isso,
com razão dizem os bispos nas Diretrizes Gerais da Ação
Evangelizadora da Igreja no Brasil: a pedagogia do processo
mais do que um recurso metodológico, é uma mística
profundamente enraizada na espiritualidade cristã
20
.
Essa consideração dos bispos vem validar a necessidade de
gastar tempo nos processos de evangelização, como também,
vem insistindo o Papa Francisco: Dar prioridade ao tempo é
ocupar-se
mais
com
iniciar processos do que possuir espaços
(EG 223 grifos do Papa). Nos processos, os evangelizadores
contraem assim o cheiro das ovelhas, e estas escutam a sua voz.
Em seguida, a comunidade evangelizadora dispõe-se a
acompanhar (EG 24). Mais uma proposta pós-pandemia: fazer
processo de evangelização, gastar tempo na missão.
Por isso, a Eucaristia, enquanto fonte e ápice da vida e
missão da Igreja, deve traduzir-se em espiritualidade, em vida
segundo o Espírito (Rm 8,4s; Gl 5,16.25). E nesse viver
segundo o Espírito se fundamenta a missão da Igreja no seio da
história: Uma Igreja autenticamente eucarística é uma Igreja
missionária
21
. É no seio desta experiência eclesial que se
compreende que durante a pandemia, apesar das portas da
Igreja/templos fechados houve muito envolvimento de vivência
20 CNBB:
Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2019-2022
, n.204.
21 BENTO XVI.
Exortação apostólica pós-sinodal
. Sacramentum Caritatis.
Disponível em: http://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/apost_exhortations/
documents/hf_ben-xvi_exh_20070222_sacramentum-caritatis.html. Acesso em
15 de maio de 2020, n.84.
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eucarística. Haja visto as diferentes iniciativas nos gestos de
doação, solidariedade e distribuição de alimentos, roupas e
outros auxílios para imigrantes, desempregados e necessitados
em geral. São testemunhos que cimentam a relação intrínseca
entre Eucaristia e vivência de amor ao próximo. Talvez esse seja
um grande apelo pós-pandemia!
A Eucaristia, reforçamos, é a fonte e o ápice da vida da
Igreja. Sem ela não formamos a Igreja de Cristo, mas também,
se não formos pessoas eucaristizadas, ela não se plenifica em nós
e corremos o risco de ser apenas alguém que comunga, mas não
vive a comunhão. Outro desafio recorrente: eucaristizar o
mundo!
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