Imagem da Capa:
DUCCIO di Buoninsegna.
Agony in the Garden
. Tempera on
wood, 51 x 76 cm. Museo dell'Opera del Duomo, Siena.
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T314
Revista Teopráxis, vol.1, n.1(1984-) / Instituto de Teologia e
Pastoral. Passo Fundo: ITEPA, 1984 -v. vol.37 - n°129, Jul.-Dez./
2020. Semestral.
ISSN:1677-860X versão impressa
ISSN:2763-5201 versão eletrônica
1.Teologia -Periódicos I. Instituto de Teologia e Pastoral-ITEPA
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SUMÁRIO
Editorial
..................................................................................7
Dr. Pe. Clair Favreto e Ms. Pe. Rene Zanandréa
Das diferentes crises à Pandemia da COVID 19
a Humanidade doente e o caminho de cura proposto
pelo Papa Francisco................................................................ 13
Ms. Pe. Ari Antônio dos Reis e Dr. Armando De Negri Filho
Como ser Corpo Místico e Assembleia Litúrgica na
pós pandemia
........................................................................ 35
Prof. Dr. Andrea Grillo
Eucaristia em tempos de pandemia
Considerações de um pastor................................................... 49
Dr. Dom Hernaldo Pinto Farias
Eucaristia: fonte e cume da vida cristã
Tomai e comei, fazei isto em memória de mim (Lc 22,19)... 61
Dr. Pe. Rogério L. Zanini e Pe. Claudir Meoti
Liturgia das Exéquias em tempos de pandemia
.............. 83
Dr. Pe. Clair Favreto
As orações do Missal Romano em tempos
de calamidades
...................................................................... 105
Ms. Dom Aloísio Alberto Dilli
O espaço da celebração em tempos de
isolamento social
...................................................................115
Ms. Ir. Penha Carpanedo
A oração em tempos de distanciamento social
................ 121
Ms. Pe. Rene Zanandréa
Canto e Música Litúrgica
como cultivar uma espiritualidade unificadora em meio
aos desafios da pandemia?.......................................................143
Ms. Eurivaldo S. Ferreira e Frei Telles Ramon, O. de M.
O digital e a vivência da fé
(re)descobertas em tempos de pandemia................................157
Dr. Moisés Sbardelotto
EDITORIAL
DOI: https://doi.org/10.52451/teopraxis.v37i129.5
A Sacrosanctum Concilium, documento do Concílio
Vaticano II que reflete sobre a liturgia, traz duas questões muito
importantes e que queremos recordar. A primeira delas retoma
a importância da liturgia para a Igreja: ...a Liturgia é o cimo
para o qual se dirige a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a
fonte donde emana toda a sua força... (SC 10). A vida da
Igreja, portanto, tem sua centralidade na liturgia. Dela emana a
força e ela se torna o ponto mais alto da Igreja. No mesmo
número encontra-se, também, o que os cristãos, isto é, os
batizados, devem fazer na liturgia: reúnam-se em assembleia,
louvem a Deus na Igreja, participem no sacrifício e comam a
Ceia do Senhor (SC 10).
A outra questão importante a encontramos mais adiante
quando o documento aprofunda sobre o Mistério da Eucaristia
e indica o modo como os cristãos devem se relacionar com Ele.
Esta tarefa é atribuída à Igreja: ...a Igreja procura, solícita e
cuidadosa, que os cristãos não assistam a este mistério de fé
como estranhos ou expectadores mudos, mas participem na
ação sagrada, consciente, piedosa e ativamente... (SC 48). O
mesmo parágrafo também indica como se dá esta participação.
Para isso é preciso que os cristãos sejam iniciados aos ritos e
orações, instruídos pela palavra de Deus, frequentem a mesa e
alimentem-se do corpo do Senhor, deem graças e ofereçam sua
vida a Deus (Cf. SC 48).
Os dois parágrafos resgatados e colocados em relação nos
ajudam a compreender a importância da liturgia para a vida
cristã, mas, ao mesmo tempo, indicam que a liturgia somente se
realiza de modo pleno e com participação ativa, quando há uma
assembleia reunida, iniciada e consciente dos ritos e orações.
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Em tempos de pandemia, e com a exigência de manter
distanciamento social, a liturgia foi a que mais sofreu
consequências. As lideranças político-sociais determinaram o
fechamento de tudo (ou quase tudo) para evitar aglomerações e
a consequente propagação do vírus; as lideranças religiosas,
conscientemente, acataram as decisões e orientaram os padres e
responsáveis para fecharem as igrejas e os lugares de culto;
consequentemente, os Sacramentos por um bom tempo não
foram realizados com as assembleias comunitárias reunidas e os
serviços religiosos e pastorais ficaram restritos aos
extremamente essenciais.
Diante desta situação nova, abrangente e de difícil
compreensão, e até contraditória, houve muita iniciativa e
criatividade em propor momentos celebrativos para que o povo
de Deus pudesse não se sentir longe de sua comunidade.
Algumas iniciativas, porém, não respeitaram os critérios e a
compreensão teológica do Concílio Vaticano II. Ao contrário,
houve um retorno, em muitas situações, da prática litúrgica
pré-conciliar.
A partir destas e de outras questões que foram surgindo, a
Revista Teopráxis propôs-se a dedicar um número especial para
aprofundar algumas temáticas que envolvem a
Liturgia em
tempos de pandemia
. Este número que chega até você leitor quer
trazer presente reflexões que envolvem as orações, os cantos, os
ritos, o simbólico, as terminologias definidas pelos padres
conciliares (Vaticano II), que envolvem as celebrações litúrgicas
e que foram afetadas pelo fechamento das Igrejas e pela não
participação presencial na liturgia.
Inicialmente temos o texto do padre Ari Antonio dos Reis e
do professor Armando De Negri Filho que faz uma relação
das
diferentes crises à pandemia da Covid 19: a Humanidade doente e o
caminho de cura proposto pelo Papa Francisco
. Com um viés
teológico-pastoral, o texto aborda algumas crises da
humanidade, principalmente aquelas provocadas pela Covid 19,
FAVRETO, Clair; ZANANDRÉA, Rene.
Editorial
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Revista Teopráxis, Passo Fundo, vol.37, n.129, Jul./Dez./2020, ISSN: 2763-5201
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e que influenciam a vida humana. Ao mesmo tempo, resgatam
as iniciativas de enfrentamento da pandemia, dentre as quais as
manifestações públicas do Papa Francisco e suas proposições.
Em seguida, o professor de teologia da liturgia e de
espiritualidade litúrgica, em várias faculdades da Itália, Andrea
Grillo, reflete
como ser Corpo Místico e Assembleia Litúrgica na
pós pandemia
. A partir da fundamentação de documentos
oficiais da Igreja o autor aprofunda o sentido dos termos e os
relaciona ao contexto que estamos vivendo, sobretudo o de
pandemia. De forma provocativa, Grillo resgata alguns
parágrafos da Instrução Geral do Missal Romano para mostrar
as contradições que iniciativas isoladas provocaram e propõe
algumas luzes para as celebrações litúrgicas no pós pandemia.
Trazendo presente algumas observações da experiência da
Igreja no Brasil, Dom Hernaldo Pinto Farias reflete sobre a
Eucaristia em tempos de pandemia: considerações de um pastor
. O
bispo de Bonfim (BA) questiona certas práticas realizadas em
algumas paróquias e catedrais, neste tempo de pandemia, que
manipularam a Eucaristia e que não condizem com as
orientações da Igreja, sobretudo as orientações mais recentes. E
propõe a Liturgia das Horas como forma privilegiada de
participação no mistério eucarístico.
Aprofundando a reflexão em torno da Eucaristia, os padres
Claudir Meotti e Rogério Zanini, aprofundam o tema
Eucaristia: fonte e cume da vida cristã
. No texto, os autores
recuperam o sentido das refeições de Jesus relacionando com a
refeição eucarística, Sacramento da memória dEle e da partilha
comunitária, banquete de vida. Ao mesmo tempo relacionam a
Eucaristia ao contexto provocado pela pandemia e recuperam a
centralidade dela para os que querem seguir Jesus e colocar sua
vida em missão.
O isolamento social provocado pela pandemia
comprometeu as celebrações de exéquias. Como provocação, o
padre Clair Favreto reflete sobre a
Liturgia das Exéquias em
10
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tempos de pandemia
. O texto aborda a terminologia da Igreja,
questiona o modo como a morte é banalizada ou
espetacularizada e aprofunda o sentido da morte para o cristão.
Pe. Favreto resgata os principais aspectos teológicos da
eclesialidade da liturgia exequial, tendo como referência o
Ritual das Exéquias, com sua instrução e orações, para
aprofundar o sentido da vida centrada naquela de Cristo e que a
morte, desta forma, se torna uma experiência pascal plena.
E as orações em tempos de crise, calamidade e pandemia?
Quem nos ajuda a aprofundar esta temática é Dom Aloísio
Dilli. O bispo de Santa Cruz do Sul resgata o sentido das
orações
que o Missal Romano traz para os tempos de calamidade
. E, como
membro da Comissão Episcopal para os Textos Litúrgicos
(Cetel) da CNBB, Dom Dilli também já nos adianta sobre a
nova redação destas orações que estarão na nova edição do
Missal Romano. Por fim, nos agracia com a elaboração de uma
oração para o contexto de pandemia.
O espaço da celebração em tempos de isolamento social
é o que a
Ir. Penha Carpanedo aprofunda em seu texto. Sua reflexão tem
como referência a casa, lugar seguro, sobretudo em tempos de
isolamento social, mas também espaço de eclesialidade, de
liturgia, de comunhão. A casa recorda a mesa como lugar
sagrado das refeições e, por isso, também lugar privilegiado para
se reunir em oração. Aprofundando este aspecto, o texto da Ir.
Penha apresenta algumas sugestões de como a liturgia pode ser
bem celebrada na casa tornando-se um verdadeiro espaço de
Igreja doméstica.
Esta temática tem continuidade com a reflexão do padre
Rene Zanandréa. Em seu texto
a oração em tempos de isolamento
social
, padre Zanandréa relata algumas experiências de oração
pessoal e familiar vividas em casa. O texto busca inspiração nas
orações de Jesus para dar indicativos da oração autêntica para a
Igreja, sobretudo da Igreja doméstica, e ligadas ao contexto em
que as pessoas vivem e iluminadas pela Palavra de Deus,
FAVRETO, Clair; ZANANDRÉA, Rene.
Editorial
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apresenta algumas inspirações para a oração cristã.
As orações inspiram o canto. Os músicos assessores da
CNBB Eurivaldo Ferreira e Frei Telles Ramon aprofundam a
temática
Canto e Música Litúrgica: como cultivar uma
espiritualidade unificadora em meio aos desafios da pandemia
?
Partindo de um resgate histórico da passagem do canto de
igreja para o canto litúrgico, os autores questionam como a
música litúrgica foi produzida e executada neste tempo de
pandemia e de celebrações virtuais. Ao mesmo tempo, nos
ajudam a perceber a força que a música litúrgica tem e o
importante papel e lugar que ela ocupa na ação litúrgica. Como
expressão da fé de uma comunidade, a música litúrgica ajuda a
vivenciar o Mistério Pascal quando a comunidade celebra
cantando.
Por fim, o professor e pesquisador de comunicação, Moisés
Sbardelotto, reflete sobre
o digital e a vivência da fé:
(re)descobertas em tempos de pandemia
. Para isso, Sbardelotto
resgata alguns pontos que demandam (re)significações no modo
de viver e celebrar a fé no ambiente digital. Dentre estes pontos
está a concepção das mediações litúrgicas e tecnológicas; a
comunicação e a relação que se estabelece por meio da liturgia;
a participação e presença de uma comunidade orante; e as
comunidade em rede. O texto também aponta alguns desafios
para a Igreja relacionados à comunicação, sobretudo à digital.
Os artigos deste número não querem dar respostas prontas,
mas nos provocar e nos desafiar a aprofundar as questões ligadas
à liturgia que este tempo de pandemia escancarou.
Dr. Pe. Clair Favreto
Ms. Pe. Rene Zanandréa
Organizadores
DAS DIFERENTES CRISES À PANDEMIA DA COVID 19
a Humanidade doente e o caminho de cura proposto
pelo Papa Francisco
Ms. Pe. Ari Antônio dos Reis*
Dr. Armando De Negri Filho**
DOI: https://doi.org/10.52451/teopraxis.v37i129.6
Recebido: 04 de dezembro de 2018 | Aprovado: 29 de março de 2019
Resumo:
O presente artigo apresenta uma reflexão sobre diferentes crises da
humanidade que, segundo o Papa Francisco, se constituem em uma única
crise de origem sócio ambiental e que explicitam a doença da humanidade.
Apresenta também a proposta do Pontífice, através de gestos, iniciativas e
escritos, com os possíveis caminhos de superação dessa grande crise, ou,
enfermidade, a partir de uma nova perspectiva de relacionamento social
tendo o ser humano como prioridade.
Palavras-chave:
Crises. Humanidade. Economia. Sociedade. Doença.
Integração. Cuidado. Meio ambiente. Educação. Vida.
Introdução
Neste artigo pretende-se fazer uma análise desta situação,
momentaneamente marcada pela pandemia da Covid 19 que,
* Presbítero da Arquidiocese de Passo Fundo/RS. Graduado em Filosofia pela
Universidade de Passo Fundo e Teologia pela Itepa Faculdades de Passo Fundo.
Mestre em Teologia Pastoral pela Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da
Assunção. Professor da Itepa Faculdades, nas áreas de Metodologia e Prática
Pastoral, Teologia da Revelação, Ecumenismo e Diálogo Inter religioso: E-mail:
reis.abt@gmail.com
** Graduado em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Mestrado em Epidemiologia pela Universidade Federal de Pelotas (1995).
Mestrado Profissional em Saúde Pública - Saúde Global e Diplomacia da Saúde
pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz). Master
em Gestão Clínica e Coordenação Médica pela Escuela Nacional de Sanidad /
Instituto Carlos III de Madrid Espanha e Universidad de Educación a la Distancia
da Espanha. E-mail: armandodenegri@yahoo.com
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por sua vez, mostrou a marca da desigualdade estrutural na
sociedade brasileira e pode ser lida como um estágio no
processo de enfermidade da humanidade. Este artigo tem um
viés teológico-pastoral. Certamente poder-se-ia enfocar a
temática adotando outras referências, mas intuiu-se por bem
fazer a abordagem teológica e pastoral com aportes em outras
áreas do conhecimento.
Serão abordadas, em um primeiro momento, algumas crises
que assolam a humanidade e sua influência na vida humana,
dentre elas a crise da Covid 19, assim como as iniciativas e
dificuldades no enfrentamento desta pandemia, sobretudo,
quando os processos de articulação mundial foram relativizados
em nome de posturas políticas fechadas e equivocadas. Como
referência teológico-pastoral apresentam-se as manifestações
públicas do Papa Francisco denunciando os condicionantes
sociopolíticos dessas crises e as proposições desse Eminente
Prelado na perspectiva de superação desse aflitivo contexto
humano-social.
1 As diferentes crises da humanidade
No documento conclusivo e gestado durante a V
Conferência do Episcopado Latino Americano e Caribenho
ocorrido na cidade de Aparecida SP, durante o ano de 2007,
ao abordar a realidade como desafio ao agir evangelizador da
Igreja no continente, o Colegiado Episcopal selou o termo
mudança de época. Segundo o documento, essa expressão
aponta para as grandes mudanças que afetam profundamente a
vida humana, têm alcance global e com diferenças e matizes
afetam o mundo inteiro (cf. DAp 34).
Na Assembleia dos Bispos do Brasil (2019) o termo foi
enfocado de uma forma mais precisa. O documento orientativo
para a atividade evangelizadora da Igreja previsto para o
quadriênio 2019-2023 afirma que os fundamentos últimos para
REIS, Ari Antônio dos; NEGRI FILHO, Armando de.
Das diferentes crises à Pandemia da COVID 19
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a compreensão da realidade se tornam frágeis a ponto de
suscitar perplexidade e insegurança (CNBB, 2019, p.43). As
duas leituras da realidade feitas num prazo de 12 anos revelam
um processo histórico de dificuldades da humanidade e das
diferentes instituições, dentre elas a Igreja Católica, de
compreenderem e abordarem o fenômeno. Certamente outras
igrejas cristãs e tradições religiosas percebem estas dificuldades
com alguma mudança de nuance. O Documento de Aparecida
explicitou as diferentes faces desta transição de mudanças tão
profundas
1
.
A reflexão sobre as mudanças se aprofundou e hoje se fala
em crises da humanidade. Dependendo da análise mencionam-
se diferentes crises. O Papa Francisco tem se manifestado
afirmando que estamos passando por uma única crise, a crise
sócio-ambiental, segundo o argumento que a abordagem
ecológica compreende também a abordagem social que deve
integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, ouvindo o
clamor da terra e o clamor dos pobres (cf. LS 49). Optamos por
tratar quatro crises como oportunidade de explicitarmos um
pouco melhor cada uma: econômica, social, democrática e
ambiental, acrescentando a crise da Covid 19 que interage com
as demais.
1.1 Crise econômica
As crises no capitalismo são cíclicas. Contudo não
significam o enfraquecimento do capitalismo, mas sua
reconfiguração em outros parâmetros e, em muitos casos,
gerando mais situações de pobreza e desigualdade social. A
partir de 2008, iniciando nos Estados Unidos, começou um
processo novo de crises que chegou aos países europeus. Não há
1 Para aprofundar: CELAM.
Documento de Aparecida
: Texto conclusivo da V
Conferência do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. Brasília: Ed. CNBB,
2007.
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como esquecer as constantes notícias sobre o grande
contingente de desempregados, sobretudo na Espanha e Grécia.
Cabe destacar as sucessivas tentativas de solução, preservando o
mercado, visto que os nomes escolhidos para chefia dos
governos serem pessoas do mercado e não escolha da
população.
No Brasil, a partir de 2014, ocorreu processo semelhante
com uma roupagem própria, especialmente pela falta de
disposição do Governo Dilma em garantir as exigências do
mercado financeiro. Esta crise culminou com o impedimento
da presidente e a ascensão de Temer, com a tarefa de acalmar
o mercado às custas do freio nos investimentos sociais e as
diferentes reformas para potencializar o projeto capitalista
financeiro.
Reitera-se que as crises contribuem, em muitos casos, para o
revigoramento do projeto capitalista e não existe um interesse
ético para salvar os que ficam no caminho. Eles não importam.
Não são significantes. Para o capitalismo financeiro os pobres
são descartáveis como denuncia o Papa Francisco:
Não se trata simplesmente do fenômeno da exploração e opressão,
mas de uma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria
raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas
favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os
excluídos não são explorados, mas resíduos, sobras (EG 53).
Na verdade, interessam ao mercado os que oferecem algo ou
os que se apresentam como consumidores. No Brasil, esta
lógica se arquiteta com formas escandalosas. No verso da
medalha, é um país extremamente avançado em alguns setores
e, deficitário em outros. Seu perfil flutua ao critério dos
interesses econômicos em jogo.
REIS, Ari Antônio dos; NEGRI FILHO, Armando de.
Das diferentes crises à Pandemia da COVID 19
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1.2 Crise social
Esta é uma crise permanente no Brasil inscrita, ainda hoje,
em sua estrutura histórica, injusta e desigual. Perdeu-se num
horizonte longínquo o projeto de nação, submerso pela
constituição de um Estado a serviço de uma minoria que foi
assumindo diferentes roupagens ao longo dos séculos. No
projeto Brasil a Casa Grande é o sujeito de direitos, cabendo os
deveres à Senzala. O histórico de pobreza e miséria permanente
no Brasil não tem sofrido transformações a partir de iniciativas
do Estado. Alguma mudança ocorrida decorreu da pressão
popular. Apresentaram-se alguns paliativos reformistas em
alguns momentos da história, contudo sem um abalo maior na
estrutura desigual. As diferentes representações do poder se
articulam pela sua manutenção, usufruindo dos bens produzidos
e apoiadas em um Estado erigido para proteger alguns e resistir
às reinvindicações da maioria. Neste modelo de relação o Brasil
continuará gerando empobrecidos e miseráveis e continuará
tratando esta parcela da população como ameaça às pessoas de
bem.
No momento em que a Senzala reivindica seus direitos a
pretensa ordem social fica abalada. Demanda desta relação a
ideia de que problema social é caso de polícia. Esta noção
equivocada permanece. As crises, sejam socioeconômicas ou
culturais não chegam a mexer nas estruturas societárias em seu
fundamento capitalista. Mais do que isso, é inegável que não
existe uma reta intencionalidade de subvertê-las. Basta ver a
aprovação do teto de gastos durante o governo Temer.
1.3 Crise democrática
As diferentes semanas sociais brasileiras, promovidas pela
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil desde 1991 têm
apontado para a insuficiência da democracia representativa no
Brasil. As reflexões da 5ª Semana Social insistiram de forma
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direta na necessidade de potencialização da democracia com
reais mecanismos de participação popular nas decisões quanto às
suas vidas.
Contudo no contexto atual este mesmo modelo, mesmo
insuficiente, está sendo rompido a partir das suas próprias
estruturas. No Brasil e no mundo, governantes eleitos
democraticamente tratam de romper a própria democracia. O
rompimento democrático acontece, portanto, nos parâmetros
da própria democracia. Não se desconhece o papel do
capitalismo financeiro na estruturação ou no abalo de estruturas
de governo. A via eleitoral deixa de ser democrática quando o
poder financeiro garante mandatos. Soma-se ao financiamento
de interesses antidemocráticos, a recente força das
fakenews
. A
possibilidade da população de refletir e decidir sobre temas
importantes a ela relacionados fica cada vez mais complexa e
distante.
1.4 Crise ambiental
Possivelmente esta crise seja tão antiga como as crises do
capitalismo, contudo tem se revelado com mais evidência nas
últimas décadas. Começou no momento em que a humanidade
se colocou em contraposição ao mundo criado
2
diante do qual
recebeu a tarefa do cultivo e guarda (cf. Gn 2,15).
A relação passou a ser de tentativa de domínio para se tirar o
que se considerava necessário, unicamente, para a sobrevivência
humana. O princípio antropocêntrico, colocou no centro da
relação o ser humano e suas necessidades. Demanda daí uma
grande crise, sobretudo porque a super exploração da natureza
potencializada na modernidade volta-se à satisfação dos
2 O conceito de mundo criado ou criação é extraído da tradição bíblica segundo o
texto do Gênesis, capítulos 1 e 2 que apresenta a narrativa da criação segundo a
cultura judaico cristã. Os diferentes povos africanos também falam da terra e da
humanidade como fruto do desejo criador da divindade.
REIS, Ari Antônio dos; NEGRI FILHO, Armando de.
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interesses de uma minoria. Mesmo que esta crise tenha sido
ainda negada, especialmente por alguns chefes de governo,
compreende-se o fenômeno das mudanças climáticas devido ao
aquecimento global como um alerta inequívoco do
esgotamento da Terra. Popularmente tem se dito que a Terra
está febril.
Na Encíclica Laudato Sí, publicada em maio de 2015, o
Papa Francisco critica a via única de pretenso desenvolvimento
humano e rápidos processos de mudanças que implicam na vida do
planeta. Os recursos naturais são esgotados em prazos muito curtos.
Embora a mudança faça parte da dinâmica dos sistemas
complexos, a velocidade que hoje lhes impõem as ações humanas,
contrasta com a lentidão natural da evolução biológica (LS 18).
Segundo ele é uma mudança que fragiliza e não fortalece porque a
mudança é algo desejável, mas torna-se preocupante quando se
transforma em deterioração do mundo e da qualidade de vida de
grande parte da humanidade (LS 18).
A Terra está esgotada em seus recursos, afetando seus
processos naturais. O mais grave, insiste-se que estes bens
naturais são destinados a uns poucos. Tudo é célere sem
preocupação com o amanhã.
1.5 A crise da Covid 19 e a crise das instituições
A pandemia da Covid 19 alastrou-se pelo mundo, atacando
a todos com maior ou menor intensidade. As mais diferentes
nações se envolveram em ações de prevenção. Chamou
atenção a forma como esta crise foi enfrentada pelos diferentes
governantes. Fez parte da orquestração política em torno da
crise, a relativização e até desautorização das orientações da
Organização Mundial de Saúde quanto às medidas para impedir
a rápida disseminação do vírus, como também as formas de
tratamento.
20
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No caso do Brasil a primeira reação foi de negação da
gravidade do problema e a forma como o governo federal
articulou o enfrentamento fez que a situação se agravasse.
Como a pandemia foi objeto de disputa ideológica formou-se
uma grande confusão de narrativas, deixando a população
desorientada. O fato de a pandemia ter interferido na economia
pela necessidade de reclusão e consequente influência nas trocas
econômicas, a atuação do governo brasileiro foi,
primeiramente, voltada para salvaguardar o mercado financeiro.
Apesar da relutância optou pelo auxílio emergencial para a
população que ficou sem acesso a uma renda mínima. Contudo,
mesmo com a pandemia ceifando vidas o projeto neoliberal
avançou na sua estruturação. Cito como exemplo a aprovação
da Lei de Privatização do Saneamento Básico. Paralelo a isso
cita-se a crescente destruição da Floresta Amazônica que
acontece de uma forma tão brutal ao ponto de gerar reações
inclusive dentro do mercado, visto que se faz necessário, ao
menos uma faceta de preocupação ambiental para ganhar a
simpatia dos consumidores. Uma necropolítica ganha corpo, na
medida que revela uma não preocupação do atual chefe
governo brasileiro que, reiteradamente, tem demostrado
indiferença em relação às vidas perdidas por causa da pandemia.
2 A desordem mundial e a penalização dos pobres
As crises acima descritas, mesmo que de forma sucinta, e
possivelmente já refletidas em outros momentos pelos leitores,
mostram que por trás de uma pretensa ordem mundial de
orientação neoliberal forjada pelas sequentes crises históricas,
sendo a mais recente iniciada em 2008, na verdade, é uma
grande desordem.
Contudo, nesta desordem, o capitalismo se refaz e se
revitaliza. Faz isso às custas da fragilização dos povos, morte da
população empobrecida e da destruição do mundo criado.
REIS, Ari Antônio dos; NEGRI FILHO, Armando de.
Das diferentes crises à Pandemia da COVID 19
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Invertem-se as prioridades. O mercado financeiro é colocado
acima da vida humana. Segundo este princípio equivocado é
necessário garantir a vitalidade do mercado, mesmo que se
percam vidas. Segue-se a lógica de que é o mercado que
importa, as vidas nem tanto. Esse processo de ampla
desigualdade foi criticado pelo Papa Paulo VI na Encíclica
Populorum Progressio, na época, também chamando a atenção
para a desigualdade entre os povos.
Dito e reconhecido isto, não resta dúvida alguma de que o
equipamento existente está longe de bastar para se opor à dura
realidade da economia moderna. Entregue a si mesmo, o seu
mecanismo arrasta o mundo, mais para a agravação do que para a
atenuação da disparidade dos níveis de vida: os povos ricos gozam
de um crescimento rápido, enquanto os pobres se desenvolvem
lentamente. O desequilíbrio aumenta: alguns produzem em excesso
gêneros alimentícios, que faltam cruelmente a outros, vendo estes
últimos tornarem-se incertas as suas exportações (PP 8).
Alguns teólogos que refletem o diálogo entre teologia e
economia, dentre os quais Hugo Assmann, Franz
Hinkelammert e Jung Mo Sung
3
, apontam a divinização do
mercado como fundamento das exigências de sacrifícios, no
caso dos humanos e da natureza. O mercado necessita deles para
permanecer em pé. É a idolatria que se mantém graças aos
sacríficos humanos e da natureza. Insistimos que a ordem do
mercado financeiro se faz às custas da desordem humana e do
mundo criado. Enquanto não for revista esta prioridade que
feita cultura, a inversão destruidora de vidas permanecerá. O
Papa Paulo VI já lembrava da necessidade de rever as
prioridades quanto à noção de desenvolvimento.
3 Para aprofundar: Hugo ASSMANN e Franz J. HINKELLAMMERT.
A idolatria
do mercado
: ensaio sobre economia e teologia, Petrópolis: Vozes 1989. Também a
obra de Jung Mo SUNG.
Teologia e economia
: repensando a teologia da libertação
e utopias. Petrópolis: Vozes, 1994.
22
Este artigo está licenciado com alicença: Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0 International License.
O desenvolvimento não se reduz a um simples crescimento
econômico. Para ser autêntico, deve ser integral, quer dizer,
promover todos os homens e o homem todo, como justa e
vincadamente sublinhou um eminente especialista: não aceitamos
que o econômico se separe do humano; nem o desenvolvimento,
das civilizações em que ele se incluiu. O que conta para nós, é o
homem, cada homem, cada grupo de homens, até se chegar à
humanidade inteira (PP 14).
No instante em que economia se divorcia da
responsabilidade pela manutenção da vida humana, que é a
razão da sua existência, ela perde o sentido ético e o significado
para a sociedade. Sobre este rompimento sublinha-se a
colocação do Papa Francisco na Exortação Evangelii Gaudium:
não é possível que morte por enregelamento de um idoso sem
abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos
na Bolsa (EG 53).
Este sinal de ordem-desordem se estrutura a partir da
inversão de valores visto que a economia não está a serviço da
humanidade, mas adquiriu um fim em si mesma. A proposição
de um encontro com jovens sobre a economia de Francisco e
Clara, tema abordado em seguida, processo que está
mobilizando grupos do mundo todo, visa contribuir nesta
reflexão necessária.
3 Pontificado de Francisco como um permanente alerta
profético sobre as crises
Os Papas foram líderes com papel significativo para além da
esfera cristã católica. Esta afirmação não significa flerte com a
cristandade, mas a compreensão do papel de um pontífice como
líder de uma coletividade que, a partir de suas posições,
influencia grandemente os destinos da humanidade, apesar dos
contrapontos próprios da diversidade sócio-política mundial.
Corroborando com esta afirmação faz-se memória do papel do
REIS, Ari Antônio dos; NEGRI FILHO, Armando de.
Das diferentes crises à Pandemia da COVID 19
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Papa João Paulo II no enfrentamento do socialismo real do leste
Europeu. O Papa Francisco, eleito em 2013, tem assumido este
papel de líder mundial com grande responsabilidade, sobretudo
em um contexto de carência de lideranças carismáticas para a
humanidade.
Foi eleito a partir da tensão e esgotamento de um modelo de
pontificado que forçava uma aparente coesão interna,
representado por João Paulo II e continuado por Bento XVI,
com algumas diferenciações. O fato da renúncia de Bento XVI,
gesto de extrema humildade, revelou a sua consciência de que
não teria forças para operar as mudanças necessárias à Igreja
naqueles períodos de grande turbulência. Seguiu-se a eleição do
Papa Francisco. Ao ser apresentado para a multidão reunida na
Praça São Pedro afirmou que foram buscar ele lá do fim do
mundo para ser Papa.
É possível interpretar esta afirmação na perspectiva de que se
procurou outro modelo de condução para a Igreja Católica e o
Cardeal Mario Jorge Bergoglio fora o escolhido. Foi novidade
também o nome escolhido, Francisco, com todo o significado
místico e de vida pobre que o santo de Assis inspirava. No
decorrer do seu pontificado Francisco tem mostrado que tem
uma proposta para a Igreja e para o mundo. Sugeriu uma Igreja
em saída e pobre para os pobres. E provocou a humanidade
superar a globalização da indiferença. Ressalta-se que o Papa
Francisco é herdeiro do projeto eclesiológico latino-americano
demarcado sobretudo através dos encontros do episcopado
desde 1968 com a Conferência de Medellín
4
.
Descreveremos brevemente algumas manifestações do Papa
voltadas à superação da desordem mundial e sua consequente
enfermidade.
4 Segunda Conferência do Episcopado Latino-americano ocorrida na cidade de
Medellín, Colômbia, após o Concílio Vaticano II.
24
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3.1 Ilha de Lampedusa: crítica à globalização da indiferença
A visita do Papa Francisco em julho de 2013 à Ilha de
Lampedusa, localidade no extremo sul da Itália, procurada por
migrantes do norte da África, teve um caráter simbólico
profundo. Afirma-se que este gesto foi uma encíclica não
escrita. Lá, o Papa condenou o descaso das autoridades
europeias diante do fenômeno das migrações, certamente, um
problema muito complexo.
Ao celebrar a eucaristia em um altar montado com restos de
embarcações naufragadas, Papa Francisco denunciou, com
veemência, a globalização da indiferença e a necessidade de um
compromisso de uns pelos outros. Disse:
A cultura do bem-estar, que nos leva a pensar em nós mesmos,
torna-nos insensíveis aos gritos dos outros, faz-nos viver como se
fôssemos bolhas de sabão: estas são bonitas, mas não são nada, são
pura ilusão do fútil, do provisório. Esta cultura do bem-estar leva à
indiferença a respeito dos outros; antes, leva à globalização da
indiferença. Neste mundo da globalização, caímos na globalização
da indiferença. Habituamo-nos ao sofrimento do outro, não nos
diz respeito, não nos interessa, não é responsabilidade nossa!
5
O desinteresse pelos sofredores se constitui uma cultura
marcada pelo isolamento social, porque o ser humano não vê o
outro como um irmão. Faz-se indiferente ao seu sofrimento. O
Pontífice propõe outro caminho, a solidariedade humana. Na
Exortação Evangelli Gaudium explicita o sentido da
solidariedade, nestes tempos, o antídoto contra a globalização
da indiferença:
Embora um pouco desgastada e, por vezes, até mal interpretada, a
palavra solidariedade significa muito mais do que alguns atos
esporádicos de generosidade; supõe a criação duma nova
5 http://www.ihu.unisinos.br/noticias/521786-qadao-onde-estas-caim-onde-esta-
o-teu-irmao-o-discurso-de-francisco-em-lampedusa
REIS, Ari Antônio dos; NEGRI FILHO, Armando de.
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mentalidade que pense em termos de comunidade, de
prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por
parte de alguns (EG 188).
Esta solidariedade vai se configurando e penetrando no dia a
dia dos povos e tem a finalidade de transformar as estruturas
sociais sustentadoras da indiferença:
Estas convicções e práticas de solidariedade, quando se fazem
carne, abrem caminho a outras transformações estruturais e
tornam-nas possíveis. Uma mudança nas estruturas, sem se gerar
novas convicções e atitudes, fará com que essas mesmas estruturas,
mais cedo ou mais tarde, se tornem corruptas, pesadas e ineficazes
(EG 189).
É necessário potencializar a solidariedade e descobrir o seu
sentido transformador mais profundo como caminho da
superação da omissão e da indiferença que matam. Também
redescobrir o seu sentido profético, porque como proposta
política é um sinal profético frente à economia do mercado,
embasada no individualismo e no egoísmo e a indiferença pelas
diferentes formas de vida.
3.2 Visita à Organização das Nações Unidas - ONU
Esta visita carrega a simbologia do diálogo da Igreja com o
mundo através das nações. O Papa é considerado um Chefe de
Estado, portanto com assento na ONU. Outros Papas também
já haviam visitado a sede em Nova York. A visita de Francisco
fez parte das comemorações dos setenta anos da ONU. Na
ocasião discursou na abertura da Cúpula do Desenvolvimento
Sustentável e reafirmou alguns princípios que marcam o seu
pontificado, com destaque ao combate à exclusão econômica e
à destruição do meio ambiente, segundo ele, enraizados na
ambição desmedida e na sede de poder. Disse:
26
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O abuso e a destruição do meio ambiente aparecem associados,
simultaneamente, com um processo ininterrupto de exclusão. Na
verdade, uma ambição egoísta e ilimitada de poder e bem-estar
material leva tanto a abusar dos meios materiais disponíveis como
a excluir os fracos e os menos hábeis, seja pelo facto de terem
habilidades diferentes (deficientes), seja porque lhes faltam
conhecimentos e instrumentos técnicos adequados ou possuem
uma capacidade insuficiente de decisão política. A exclusão
econômica e social é uma negação total da fraternidade humana e
um atentado gravíssimo aos direitos humanos e ao ambiente. Os
mais pobres são aqueles que mais sofrem esses ataques por um
triplo e grave motivo: são descartados pela sociedade, ao mesmo
tempo são obrigados a viver de desperdícios, e devem
injustamente sofrer as consequências do abuso do ambiente. Estes
fenômenos constituem, hoje, a cultura do descarte tão difundida e
inconscientemente consolidada
6
.
Assumiu a responsabilidade de colaborar na construção de
outras formas de relação entre os homens e com o mundo
criado, dentre estas a agenda para o desenvolvimento
sustentável:
O caráter dramático de toda esta situação de exclusão e
desigualdade, com as suas consequências claras, leva-me,
juntamente com todo o povo cristão e muitos outros, a tomar
consciência também da minha grave responsabilidade a este
respeito, pelo que levanto a minha voz, em conjunto com a de
todos aqueles que aspiram por soluções urgentes e eficazes
7
.
Não deixou de destacar que, mais do que acordos de cúpulas
e ações burocráticas, as mudanças devem chegar aos homens e
mulheres necessitados:
6 http://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/september/documents/
papa-francesco_20150925_onu-visita.html
7 http://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/september/documents/
papa-francesco_20150925_onu-visita.html
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É preciso não perder de vista, em momento algum, que a ação
política e econômica só é eficaz quando é concebida como uma
atividade prudencial, guiada por um conceito perene de justiça e
que tem sempre presente que, antes e para além de planos e
programas, existem mulheres e homens concretos, iguais aos
governantes, que vivem, lutam e sofrem e que muitas vezes se
vêem obrigados a viver miseravelmente, privados de qualquer
direito
8
.
Estes deverão ser protagonistas dos seus destinos e jamais
serem vítimas da imposição de algum projeto:
o desenvolvimento humano integral e o pleno exercício da
dignidade humana não podem ser impostos; devem ser
construídos e realizados por cada um, por cada família, em
comunhão com os outros seres humanos e num relacionamento
correto com todos os ambientes onde se desenvolve a sociabilidade
humana amigos, comunidades, aldeias e vilas, escolas, empresas e
sindicatos, províncias, países, etc
9
.
3.3 Encíclica Laudato Sí: sobre o cuidado com a casa
comum
O alerta sobre a crise ambiental e a necessidade da mudança
das nossas relações com o planeta foi descrito de uma forma
precisa com a Encíclica Laudato Sí. Propõe o diálogo a partir de
uma causa que deveria ser comum a toda a humanidade, o
planeta Terra, ou a mãe-irmã terra, como ele mesmo descreve
(LS 1). Parte de uma constatação: esta irmã clama contra o mal
que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso
dos bens que Deus nela colocou (LS 2). Faz um apelo a toda
humanidade: o urgente desafio de proteger a nossa casa comum
inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de
8 http://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/september/documents/
papa-francesco_20150925_onu-visita.html
9 http://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/september/documents/
papa-francesco_20150925_onu-visita.html
28
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um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as
coisas podem mudar (LS 13).
Apresenta uma proposta como caminho de superação do
mal causado à casa comum, ameaçando inclusive o futuro das
próximas gerações. Propõe a ecologia integral, ou seja, um
outro estilo de vida em vista do bem comum e que inclua
claramente as dimensões humanas e sociais, porque uma
verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma
abordagem social que deve integrar a justiça nos debates sobre
o meio ambiente para ouvir tanto o clamor da terra como o
clamor dos pobres (LS 49).
Sugere superação do paradigma tecnocrático devido a sua
limitação e sustentação de uma economia que não constrói, mas
que destrói a casa comum e destrói a vida humana. Sobre isso
afirma:
Podemos afirmar que, na origem de muitas dificuldades do mundo
atual, está principalmente a tendência sempre consciente, de
elaborar metodologia e os objetivos da tecnociência segundo um
paradigma de compreensão que condiciona a vida das pessoas e o
funcionamento da sociedade. Os efeitos da aplicação deste modelo a
toda a realidade, humana e social, constatam-se na degradação do
meio ambiente, mas isso é apenas um sinal do reducionismo que
afeta a vida humana e a sociedade em todas as dimensões (LS 107).
Este desvio será superado através da opção pela ecologia
integral, como uma forma de conjugar as questões humanas,
ambientais e econômicas tendo como horizonte a busca do bem
comum.
3.4 A denúncia da enfermidade humana
No dia 27 de março, quando a Itália e demais países da
Europa enfrentavam o sofrimento pela pandemia, o Papa
Francisco se manifestou ao mundo. Chamou atenção o cenário
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desta manifestação. Era final de tarde e caia uma garoa fina. O
Papa subiu sozinho ao parlatório tendo diante de si a Praça vazia.
Aquele cenário e a homilia do Papa foram marcantes. Ali ele
explicitou que a humanidade já estava doente e que a Covid 19
era a explicitação cabal desta enfermidade. Naquele final de
tarde disse o Papa diante da constatação da grande fragilidade
humana:
A tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a
descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos
os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e
prioridades. Mostra-nos como deixamos adormecido e
abandonado aquilo que nutre, sustenta e dá força à nossa vida e à
nossa comunidade
10
.
Chamou a atenção aos equívocos cometidos pela
humanidade:
Na nossa avidez de lucro, deixamo-nos absorver pelas coisas e
transtornar pela pressa. Não nos detivemos perante os teus apelos,
não despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não
ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente
enfermo. Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos
sempre saudáveis num mundo doente. Agora nós, sentindo-nos
em mar agitado, imploramos-Te: Acorda, Senhor!
11
É possível superar a enfermidade da humanidade. Como?
10 Vaticannews.va/pt/papa/news/2020-03/papa-francisco-homilia-oracao-bencao-
urbe-et-orbi-27-marco.html
11 Vaticannews.va/pt/papa/news/2020-03/papa-francisco-homilia-oracao-bencao-
urbe-et-orbi-27-marco.html
30
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4 Os possíveis caminhos para superar a crise a partir do
viés teológico-pastoral
As críticas sugerem caminhos. Os tantos documentos
publicados pelo Papa Francisco sugerem caminhos para a
superação da enfermidade humana. Nem sempre o
enfrentamento é um processo fácil. Sem dúvida alguma a
Exortação Evangelii Gaudium, sobre a evangelização e a
Encíclica Laudato Sí sobre a questão ambiental apontam
caminhos. Estas manifestações se reforçam com outras
proposições que tem a grave missão de contribuir para a
superação das enfermidades da humanidade.
Em dois encontros de representantes do Movimento
Popular com o Papa Francisco, primeiramente em Roma (2014)
e depois em Santa Cruz de la Sierra (Bolívia-2015), foram
tratados temas fundamentais voltados à sobrevivência dos
homens e mulheres empobrecidos: terra, teto e trabalho. Terra
para cultivar, no caso dos agricultores; casa para que as famílias
sejam abrigadas com dignidade; trabalho que permita ao ser
humano, pelo esforço próprio e criativo, realizar-se como
pessoa. São realidades estruturantes da vida humana, dimensões
da vida que não podem ficar submissas às forças do capital,
justamente pelo fato deste colocar o lucro acima de tudo.
Segundo o Papa Francisco são direitos sagrados que enfocam a
centralidade da pessoa em plena consonância com a Doutrina
Social da Igreja
12
.
Em uma interpretação da potência desses três Ts, projetados
na Sexta Semana Social Brasileira da CNBB, argumentamos seu
sentido ao considerar:
a Terra como Bem Comum e balizador de um Cuidado com
Nossa Casa Comum, mas também da construção de uma
Economia Social e Solidária a serviço do conjunto da Sociedade;
12 Os discursos do Papa Francisco nos dois encontros foram publicados pelas
Edições CNBB. Coleção Sendas. Brasília: Edições CNBB, 2015.
REIS, Ari Antônio dos; NEGRI FILHO, Armando de.
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de um Teto capaz de representar todo o Sistema de
Proteções Sociais e Econômicas que devem caracterizar uma
verdadeira Democracia, desconstruindo o discurso que
naturaliza e legaliza a Pobreza, na realidade o
empobrecimento das pessoas e dos povos;
de um Trabalho que reconheça o protagonismo humano
sem discriminações na construção e usufruto do Bem
Comum e que distribua a riqueza produzida em uma
dinâmica equilibrada com os Direitos Humanos e os
Direitos da Natureza, opondo-se ao predomínio do capital
sobre o trabalho humano.
Em maio de 2019 Francisco convidou os jovens para
discutir a economia, encontro primeiramente agendado para
março de 2020. Segundo ele um evento que:
Permita encontrar-me com quantos estão a formar-se e começam
a estudar e a pôr em prática uma economia diferente, que faz viver
e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida
da criação e não a devasta. Um acontecimento que nos ajude a
estar unidos, a conhecer-nos uns aos outros, e que nos leve a
estabelecer um pacto para mudar a economia atual e atribuir
uma alma à economia de amanhã
13
.
O Papa está preocupado com a economia. Quer refletir
sobre o tema junto com pessoas com capacidade de imprimir
novos horizontes para a economia porque a forma como está
sendo gerida não gera vida, mas morte. É uma economia que
mata (EG 53). Para Francisco desponta a necessidade de
exercitar um modelo econômico novo, fruto de uma cultura da
comunhão, baseado na fraternidade e na equidade.
Em sintonia com a reflexão sobre a economia propõe-se a
reflexão sobre a educação. Ao pronunciar-se no encontro
Educação: O Pacto Global, promovido pela Pontifícia
13 https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2020-02/editorial-economia-
francisco-construir-novos-caminhos-assis.html
32
Este artigo está licenciado com alicença: Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0 International License.
Academia das Ciências Sociais em fevereiro deste ano, afirmou
que é necessário unir esforços para alcançar uma aliança
educacional ampla a fim de formar pessoas maduras, capazes de
reconstruir o tecido relacional e criar uma humanidade mais
fraterna. A proposição de debates no âmbito da economia e da
educação estão na esteira das outras proposições do Papa.
É importante que se compreenda as falas de Francisco como
o convite para se discutir os rumos da humanidade que precisa
ser curada. O fermento foi lançado e está levedando a massa.
Concluindo
Este texto resultou da opção de refletir sobre as tantas crises
que tem marcado a trajetória humana, marcadamente as mais
recentes. Na perspectiva do mercado financeiro a crise não
abala, mas o revitaliza e reforça mesmo que gerando destruição
e mortes. O processo de crise se agravou com a pandemia da
Covid 19. Esta pandemia em si é muito grave, pelo inusitado da
sua disseminação e pelas dificuldades no enfrentamento, além
de explicitar de forma mais grave as nossas carências.
Tem sido um alento para a humanidade as atitudes do Papa
Francisco. Ele não tem hesitado em propor um caminho para a
Igreja e para o mundo através dos gestos e escritos. Que nos
ajude a construir um novo caminho.
Referências Bibliográficas
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:
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CELAM.
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FRANCISCO, PAPA.
Exortação Apostólica Evangelii Gaudium
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anúncio do evangelho no mundo atual. Brasília: Ed. CNBB, 2014
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SUNG Jung Mo.
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utopias. Petrópolis: Vozes, 1994.
COMO SER CORPO MÍSTICO E
ASSEMBLEIA LITÚRGICA NA PÓS PANDEMIA
1
Prof. Dr. Andrea Grillo*
DOI: https://doi.org/10.52451/teopraxis.v37i129.7
Recebido: 12 de janeiro de 2019 | Aprovado: 26 de junho de 2019
Resumo:
O presente texto quer refletir sobre o enunciado no título que me
foi proposto, isto é, quero colocar em relação ou em contraposição os termos
corpo místico e assembleia litúrgica, bem como assembleia celebrante,
que muito tem criado confusão, argumentação sem plausibilidade e até
confrontos em modos diferentes de pensar. Com a fundamentação de
documentos oficiais da Igreja vamos procurar refletir sobre estes termos,
relacionados ao contexto que estamos vivendo, sobretudo o da pandemia,
provocando o isolamento social e, desta forma, o fechamento de muitas
atividades, inclusive as da Igreja, sobretudo àquelas relacionadas às
celebrações litúrgicas.
Palavras-chave:
Corpo Místico. Assembleia Litúrgica. Igreja. Assembleia
celebrante. Pandemia.
Introdução
O título, com a sua bela formulação, nos motiva a uma
reflexão em três níveis, que se torna importante justamente
porque coloca em correlação mundos que, vistos de outras
formas, os teríamos precisamente separados: isto significa que
devemos refletir sobre a tradição da Igreja, que se auto-
1 Texto original em italiano. Tradução do Pe. Clair Favreto, doutor em Liturgia
Pastoral pelo Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua.
É professor de Liturgia e Sacramentos na Itepa Faculdades.
* É filósofo e teólogo italiano, leigo, especialista em liturgia e pastoral. Doutor em
teologia pelo Instituto de Liturgia Pastoral, de Pádua. Professor do Pontifício
Ateneu Santo Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de
Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina, de Pádua.
Também é membro da Associação Teológica Italiana e da Associação dos
Professores de Liturgia da Itália. Enail: grilloreba@gmail.com
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36
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interpreta como
corpo místico
, em relação à outra definição, e
até diferente, definida como
assembleia litúrgica
, para
considerar que ela é mais do que um simples
ornamento
cerimonial
; e tudo isto devemos pensar nas condições de pós-
pandemia, ou seja, depois de uma passagem impressionante
que, do ponto de vista humano e teológico, é exigente e que
forçou a todos nós, por razões extra-eclesiais e extra-litúrgicas,
a uma reflexão radical sobre a identidade humana e cristã e,
portanto, também sobre a liturgia e o culto cristão.
Confrontam-se aqui três linguagens, que pertencem a
diferentes experiências e formas expressivas, o que não é fácil de
intregrá-las e harmonizá-las. Gostaria de mostrar brevemente a
complexidade deste entrelaçamento, que a condição de
pandemia de alguma forma acentuou. E, justamente por esse
motivo, nos forçou a repensá-las com profundidade, a buscar
sua raiz primeira e a nos reconciliar com a nossa história e a
nossa tradição. Por isso, gostaria, antes de tudo, analisar as três
palavras-chave do título para, depois, procurar integrá-las
numa visão unitária, que nos apontará uma mudança de rumo,
uma revisão das expressões, para obter uma experiência
eclesiástica mais profunda e autêntica, mesmo fazendo memória
de textos fundamentais, que frequentemente parecem ter sido
esquecidos.
1 Três expressões/palavras
As três terminologias relacionadas nascem de perspectivas e
preocupações parcialmente sobrepostas. Vamos analisar,
brevemente, cada uma:
a) A Igreja como Corpo Místico
Antes de Pio XII dedicar uma encíclica completa ao tema
Corpo Místico, em 1943, o termo já havia se tornado assunto há
GRILLO, Andrea.
Como ser Corpo Místico e Assembleia Litúrgica na pós pandemia
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Revista Teopráxis, Passo Fundo, vol.37, n.129, Jul./Dez./2020, ISSN: 2763-5201
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algumas dezenas de anos, a partir de um significado político
muito potente. Como lemos na
Vehementer Nos
2
(VN), com a
qual Pio X em 1906 comenta de maneira dolorosa as leis
francesas de separação entre Igreja e Estado, o termo é usado de
forma decididamente política:
A Sagrada Escritura nos ensina, e a tradição dos Padres nos
confirma, que a Igreja é o Corpo Místico de Jesus Cristo, um
Corpo regido por Pastores e Doutores; ou seja, uma sociedade de
homens no seio da qual há lideranças que tem plenos e perfeitos
poderes para governar, para ensinar e para julgar (Matt.
XXVIII,
18-20; XVI, 18-19; XVIII, 18
; Tit.
II, 15
; II Cor.
X, 6; XIII, 10
).
Daí resulta que a Igreja é, por sua natureza, uma sociedade
desigual, isto é, uma sociedade formada por duas categorias de
pessoas: os Pastores e o Rebanho, os que ocupam uma posição
entre os diferentes graus da hierarquia, e a multidão dos fiéis. E
essas categorias são tão distintas entre si, que apenas no corpo
pastoral residem a lei e a autoridade necessária para promover e
dirigir todos os membros para as finalidades sociais; e que a
multidão não tem outro dever a não ser de se deixar conduzir e,
como rebanho dócil, de seguir os seus Pastores (VN 22).
A expressão corpo místico se imbuiu de sentido político
quando assumiu a tarefa de decidir a relação entre Igreja,
mundo e história de forma radical. Neste sentido, usa o termo
absolutidez e não democracia, usa o termo autoridade e não
liberdade, pensa no povo de Deus como rebanho e a Igreja
como sociedade sem igual.
A retomada, em 1943, por parte de Pio XII, em um
contexto mais amplo e dramático, acrescenta outros temas, mas
não perde esse núcleo institucional da definição. Corpo
místico é, ao mesmo tempo, uma definição teológica e
sociológica da Igreja: indica nele a referência soberana da
autoridade, em relação à qual é difícil conceber uma
2 Carta Encíclica
VEHEMENTER NOS
- sobre as relações entre a Igreja e o
Estado, de Pio X, publicada em 11.02.1906.
38
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autonomia das realidades seculares. Assim, no termo corpo
místico, ao mesmo tempo em que acrescenta a dimensão
sacramental, tende a prevalecer um perfil institucional que
durante a pandemia procurou fazer uma leitura do contágio,
do confinamento, da distância, como uma perda de poder. E,
às vezes, tanto fora como dentro da Igreja, houve reações de
modo desproporcionado, inclusive a respeito do próprio texto
da Igreja.
b) A Igreja como assembleia litúrgica
Diferente é a linguagem da assembleia litúrgica, do povo
de Deus, da redescoberta da centralidade da celebração
litúrgica. A origem dessa expressão é ao mesmo tempo mais
antiga (do ponto de vista bíblico) e mais moderna, pois é um
dos frutos do Movimento Litúrgico e do Concílio Vaticano II
(1962-1965). Neste caso, a pandemia não coloca em questão a
autoridade da Igreja e sua soberania, mas a sua linguagem
mais delicada e primitiva, mais elementar e mais profunda. A
impossibilidade de reunir a assembleia litúrgica se torna, a este
respeito, um grave limite para a experiência de comunhão
eclesial. Assembleias impossibilitadas, ou limitadas nos gestos,
movimentos, cantos, alteraram o âmago eclesial e a
possibilidade de presença nas realidades humanas e sociais. Por
essa razão, uma reflexão sobre o impacto da pandemia para a
Igreja tomou esse perfil cultual e litúrgico de modo central.
Muitas vezes, porém, a autoridade da Igreja foi identificada
com a possibilidade de propor atos de culto, sem considerar
minimamente que a Igreja nem tanto se designa a si mesma
no seu ato de culto, mas, sobretudo, se revela à ação da graça
de Deus. De fato, ao celebrar, a Igreja nem tanto ganha poder,
mas perde poder. Ao invés, esta passagem do senhorio para a
liturgia, muitas vezes pareceu, como veremos, muito rápida e
imediata. Pouco meditada.
GRILLO, Andrea.
Como ser Corpo Místico e Assembleia Litúrgica na pós pandemia
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c) A Igreja na circunstância da pandemia
De grande interesse é o fato de que, durante a pandemia, as
duas perspectivas que indicamos - ou seja, a natureza de corpo
místico e a de assembleia litúrgica - foram usadas numa
relação complexa, frequentemente problemática ou até mesmo
competitiva. O que quero dizer com esta observação? Que
diante da confusão causada pela epidemia tão incerta e tão
potente, que levou à tomada de medidas de isolamento e de
cuidado muito drásticas na esfera civil, a Igreja experimentou
uma forte crise de identidade, uma vez que viu suas funções
litúrgicas reduzidas ou até mesmo impedidas. Para sair desta
restrição, não é comum, mas foram usados argumentos muito
redutivos e perigosos para um desenvolvimento integral e
equilibrado da parte prática (pastoral). Por um lado, de fato,
havia a tentação de incumbir-se numa visão de corpo
místico garantido exclusivamente pela hierarquia. Parece que a
hierarquia ganhou uma margem de operatividade ritual -
mesmo ao custo de celebrar apenas de forma privativa - a Igreja
pode ser salva! Por outro lado - e este é o outro extremo das
reações - houve um total desejo de identificar a Igreja com as
próprias ações rituais a ponto de sentir como que uma
afronta violenta em cada tentativa de justificar a limitação dos
contatos, dos espaços, dos movimentos. Talvez tudo isso tenha
sido possível desde que fosse esquecido o rico e complexo
caminho que nos levou a essas novas evidências. Vamos tentar
recordar brevemente este recente caminho histórico.
2 O caminho de crescimento após o Concílio Vaticano II
As difíceis relações com a história, que sempre
caracterizaram a vida da Igreja, permitiram desenvolver
categorias de mediação através das quais a Igreja interpretou sua
identidade em relação a Deus e ao mundo. Os termos corpo
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místico e assembleia litúrgica foram usados para o mesmo
fim, mas com intenção e referências muito diferentes. Mesmo
diante da pandemia, era comum que a ênfase mais acentuada se
voltasse para a instância do corpo místico, na qual se presume
uma visão de Igreja e de mundo que o Concílio Vaticano II
queria explicitamente superar.
A pandemia, desta forma, - usando a metáfora das
máscaras em nossos rostos - deixou cair muitas destas
máscaras. As mesmas máscaras com as quais buscamos
principalmente uma identidade perene do corpo da Igreja e
que, muitas vezes, a identificamos com as imagens do século
XVIII, isto é, de forma intransigente, infalível, como sociedade
sem igual.
A Igreja deve preservar sua própria diferença. Ai se não a
fizer! Mas as categorias com as quais ela guia a esse propósito na
história, nem sempre foram as mesmas. Diante da crise da
pandemia, uma prova de responsabilidade e de colaboração
com as autoridades civis, por parte da Igreja, não é em si uma
indicação de uma perda de relevância. Uma estilização de
ritos - temporânea e até dolorosa - pode ser a passagem
obrigatória para uma Igreja que realmente quer ser o corpo de
Cristo, místico e real. A tentação de identificar corpo místico
e rito tridentino ainda permanece forte, e provém também
dos ambientes que nunca pensamos que ainda poderiam ser
assim tão atrasados, não apenas teologicamente, mas também
pastoralmente, isto é, também na maneira de celebrar.
3 O desafio para o futuro
O que podemos esperar para o nosso futuro? Eu diria,
claramente, pelo menos três aspectos:
a) Estávamos todos despreparados e reagimos como
podíamos. Onde os Estados foram solícitos pelo bem comum,
mesmo tomando medidas drásticas para restringir a livre
GRILLO, Andrea.
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circulação de pessoas, permitiram salvar vidas. Não se deve
esquecer que isso só é possível com base num certo nível de
estado social. Até mesmo o fechamento das Igrejas pode
ocorrer por meio de uma solicitação social, e até de forma
intensa, encontrando, inclusive, meios à sua disposição para
fazê-lo. Seria grave se a Igreja olhasse apenas para a própria
liberdade e negligenciasse o bem comum.
b) A suspensão das celebrações ou até mesmo a sua limitação
constituem, no entanto, uma ferida à ação normal da Igreja. A
ferida não é devida a alguém, não é um erro que alguém faz à
Igreja, mas é o resultado de decisões pensadas que podem e
devem ser aceitas. Mesmo assim, elas fazem sofrer o corpo da
Igreja que, para viver, precisa da palavra celebrada e do
sacramento compartilhado.
c) Precisamente esta condição de minoria pode abrir
espaços incríveis de recuperação no pós-covid. Se e quando
for, poderemos e deveremos voltar às nossas ações rituais com
toda a riqueza de um desejo não realizado - de linguagem
verbal e não verbal - que finalmente tomará forma, figura,
estrutura e força. Poderá ser útil lembrar que somente sendo
plenamente assembleia celebrante, daremos forma ao corpo
de Cristo, ao corpo do Ressuscitado que é o corpo místico.
4 Algumas verdades esquecidas que precisam ser
redescobertas
A diferença entre o estado de exceção relacionado à
persistência de estilos tridentinos e ao projeto do Concílio
Vaticano II nos permitirá, um belo dia, dizer que o estado de
exceção acabou. Podemos e deveremos voltar à lógica
conciliar. Portanto, o isolamento social - com todo o
sofrimento humano e comunitário que provoca faz surgir
duas lógicas opostas e antitéticas. Colabora para uma igreja
exclusivamente de padres (e de padres exclusivos) e também
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remete à iniciativa dos fiéis não clérigos e não masculinos. Em
particular, emerge, ao mesmo tempo:
a tentativa de apoiar uma igreja de emergência de apenas
padres celebrantes, que se baseia em documentos e cânones
do início da modernidade e pré-conciliares;
a tentativa de justificar o papel da assembleia, de uma
ministerialidade ampliada e do papel das mulheres, que
implica a retomada de discursos profundos e decisivos sobre
essas questões.
Tudo isso requer uma desclericalização radical e urgente,
que possa dizer três questões decisivas, não de fato novas, mas
que é urgente dizer de um modo novo.
a) Que a assembleia celebrante é o Corpo de Cristo
ressuscitado (e, portanto, não pode ser de algum modo pensada
ou considerada apenas acessória);
b) Que a assembleia precisa de múltiplos ministérios, não
apenas a presidência do presbítero;
c) Que as mulheres possam exercer funções de autoridade,
porque podem e devem ser reconhecidas como titulares de um
ministério num sentido íntegro e pleno, de um ministério
verdadeiro e não apenas de enfeite. Nas mulheres está implicado
e expressado o anúncio apostólico, do qual depende a mesma
tradição eclesiástica na sua verdade plena.
Esse caminho, pois, é difícil e, teologicamente, também é
muito exigente. Poderá colocar definitivamente no sótão
aqueles discursinhos clericais, bem selados em tristes auto-
indicativos, onde ficam radiantes em citar as frases de homens
certamente geniais, mas que viveram na época das invasões
bárbaras ou do feudalismo, e ficam negociando e
compartilhando acordos institucionais sem os terem escolhido,
mas como se fossem evangelho ou, ainda pior, como se fossem
de direito divino.
São as artimanhas típicas de uma igreja que não existe mais e
GRILLO, Andrea.
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que fica bem apenas a portas fechadas. Porque há uma Igreja
que sempre esteve de portas fechadas mesmo quando as portas
estavam bem abertas. Uma Igreja que ficou fechada em
condutas antigas, em palavras antigas, em fórmulas antigas. E
justamente agora ela se vê melhor porque realiza, plenamente, a
si mesma, graças à epidemia. E também realiza isso com uma
ingenuidade simples e, às vezes, com uma arrogância sem
pudor.
Mas não há só isso. Há, também, e bem viva, uma Igreja que
precisa urgentemente recuperar os grandes discursos, que a
oficialidade eclesial teve a força de fazer abertamente e
solenemente há 60 anos atrás e que hoje parece tão confusa
quando tem que repeti-los de forma credível. Há, porém,
aqueles que o sabem fazer. E se encontra justamente naquele
ponto alto da pirâmide que está de forma invertida
3
.
Precisamente por causa dessa condição invertida, muito antes da
atual pandemia que desertifica o mundo, mesmo quando o Papa
Franciso ainda saía no meio da multidão festiva, numa Praça de
São Pedro aberta, ele já havia aparecido gigantemente sozinho,
buscando viver numa igreja de portas abertas, mesmo que ela
preferisse continuar de portas fechadas. É aquela mesma Igreja
que se revitaliza hoje, que se permite fazer sem o povo, se
permite o substituir em tudo, por meio de um carimbaço ou de
um decreto. Se tivermos a paciência para ler os discursos
escritos nas últimas semanas por muitos dos que estão em
contatos próximos com esta cúpula da pirâmide de forma
3 Segundo o teólogo Andrea Grillo, a forma invertida quer significar que quanto
maior e mais alto grau é o ministério, tanto mais na base deve estar. Ele entende
que todo o ministério deve ser colocado a serviço. O verdadeiro ministério,
principalmente o do alto da pirâmide, deve estar embaixo, na base. Por isso usa a
expressão pirâmide invertida (rovesciata), literalmente virada, de cabeça para
baixo. É uma inspiração do Papa Francisco que insistentemente pede uma Igreja
de comunhão, do serviço, da sinodalidade. De cabeça para baixo significa que o
vértice se encontra abaixo da base e desta obtém a sua autoridade, uma autoridade
que se coloca a serviço.
44
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invertida, não é difícil reconhecer que essa condição paradoxal
de afastamento dobrou: o fechamento civil, duplicado pelo
fechamento da Igreja. As portas fechadas da Igreja, porém,
abrem uma
dupla responsabilidade
, extraordinariamente
complexa:
aqueles que podem estar na igreja, procurem estar de
forma diferente. Aqueles que na Igreja não podem estar, que saibam
ser igreja em outro lugar e de forma diferenciada.
a) O mínimo episcopal de teologia eucarística
Para ambas as categorias de sujeitos, não doi nada fazer um
retorno a uma das fontes decisivas do entendimento eucarístico
comum. O uso dos termos mais apropriados é, muitas vezes, o
primeiro sinal de um estilo eclesial e de um método confiável.
O texto normativo oficial, ao descrever a experiência de
celebração eucarística, nunca usa o termo missa sem povo.
O esquema usado pela
Instrução Geral do Missal Romano
(IGMR) 3ª edição, para falar das diferentes formas de
celebração eucarística, é o seguinte:
Missa com o povo;
Missa concelebrada;
Missa com a presença de apenas um ministro.
Isso acontece porque a IGMR sabe que a missa não pode ser
celebrada privativamente, mesmo que seja o Papa. A missa é,
antropológica e eclesialmente, um
evento plural e comunitário
.
Humanamente, nunca inicia de 1, isto é, de uma pessoa
somente, mas pelo menos de 2, de uma elementar
comunidade. Esta é a mesma sabedoria que permanece escrita
também no Código de Direito Canônico, quando no cânone
906 se encontra o seguinte: O sacerdote não celebre o
Sacrifício Eucarístico sem a participação de pelo menos alguns
fiéis, se não por justa e razoável causa.
Quando são feitas essas afirmações com tanta precisão, é
colocado acima de tudo o valor da celebração comunitária e
GRILLO, Andrea.
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se usa o termo caso de necessidade apenas como uma exceção,
mesmo sendo dolorosa e difícil. A sabedoria teológica se
encontra justamente em perceber e comunicar essas diferenças,
tão sutis quanto um fio de cabelo, mas tão decisivas para a
vitalidade da Igreja.
b) A Missa não é o joguinho da torre
4
A compreensão profunda de um necessário sentido
litúrgico e pastoral pode ser lida nos números 91-96 da
IGMR
5
. Vejamos o primeiro número:
A Celebração eucarística constitui uma ação de Cristo e da Igreja, que
é o sacramento da unidade, isto é, do povo santo, unido e ordenado
sob a direção do Bispo. Por isso, pertence a todo o Corpo da Igreja, e o
manifesta e afeta; mas atinge a cada um dos seus membros de modo
diferente, conforme a diversidade de ordens, ofícios e participação atual.
Dessa forma, o povo cristão, geração escolhida, sacerdócio real, gente
santa, povo de conquista, manifesta sua organização coerente e
hierárquica. Todos, portanto, quer ministros ordenados, quer fiéis leigos,
exercendo suas funções e ministérios, façam tudo e só aquilo que lhes
compete
(IGMR 91).
Dizer que a missa pertence a todo o Corpo da Igreja é a
visão mais profunda, sem qualquer competição entre os
sujeitos, o que inverteria o próprio sentido da eucaristia. Cada
um é sujeito. A lógica nunca é aquela que distingue entre livre
e submisso. Seria um erro no uso das categorias. É como se
fosse aceitar a lógica do joguinho da torre, jogo clássico e
perverso: na missa, quem é jogado da torre? o padre ou a
assembleia?
4 É uma brincadeira em que as crianças montam uma torre feita de cubos de
madeira ou de plástico com tamanhos diferentes, às vezes enumerados. O jogo
consiste em derrubar da torre os cubos sem deixá-la cair. Por fim cai também a
torre.
5 Na
Instrução Geral sobre o Missal Romano
para o Brasil, n.58-62.
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A mesma lógica inclusiva a encontramos na referência
dedicada ao presbítero (IGMR 93), na qual a autoridade de
presidência está relacionada ao serviço a Deus e ao povo. Não se
usa as categorias de objetivo/subjetivo, mas aquelas de serviço a
Deus e ao povo. Este serviço não pode ser separado, no sentido
que assim, como não se pode servir o povo sem servir a Deus,
também não se pode servir a Deus, sem servir o povo: a oferta
do sacrifício se torna presente no presidir o povo reunido.
c) Temos vergonha, talvez, de dizer assembleia
celebrante?
A resposta pode ser encontrada na brilhante e articulada
definição da função do ministro da assembleia. Aqui seria
interessante e oportuno recuperar, por parte de todos os fiéis e
ministros da Igreja, a força desses textos, sem se distrair com
documentos gravemente enganosos que tinham a ousadia de
pedir cautela no uso da categoria de assembleia celebrante.
Às vezes, de forma imprudente, essas lógicas apologéticas de
combate aos abusos, impedem de pensar com ternura a
respeito das dinâmicas da Igreja. Os bispos e os presbíteros
devem ter isso bem claro, pois presidem uma assembleia que
celebra. O ato de celebrar é constitutivamente plural e
comunitário. Para isso, retomamos o que nos diz a IGMR 95-96:
Na celebração da Missa os fiéis constituem o povo santo, o povo
adquirido e o sacerdócio régio, para dar graças a Deus e oferecer o
sacrifício perfeito, não apenas pelas mãos do sacerdote, mas também
juntamente com ele, e aprender a oferecer-se a si próprios. Esforcem-se,
pois, por manifestar isto através de um profundo senso religioso e da
caridade para com os irmãos que participam da mesma celebração. Por
isso, evitem qualquer tipo de individualismo ou divisão, considerando
sempre que todos tem um único Pai nos céus e, por este motivo, são
todos irmãos entre si
(IGMR 95)
6
.
6 Na versão português Brasil, n.62.
GRILLO, Andrea.
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Formem um único corpo, seja ouvindo a Palavra de Deus, seja
tomando parte nas orações e no canto ou, sobretudo, na oblação comum
do sacrifício e na comum participação da mesa do Senhor. Tal unidade
se manifesta muito bem quando todos os fieis realizam em comum os
mesmos gestos e assumem as mesmas atitudes externas
(IGMR 96)
7
.
Estes parágrafos evidenciam o espírito da Igreja desta
arejada apresentação da experiência eucarística. Neste horizonte
de oferta comum do sacrifício e da participação comum à mesa
do Senhor, em comunhão com a palavra e o sacramento, a
experiência da Igreja toma corpo. Desta forma, ela não se deixa
fechar numa prática de funcionários assediados, o que trairia
não apenas o
munus
episcopal, mas o próprio sentido do
ministério ordenado. Permanecer orientados por aquilo que
propõe a IGMR - para enfrentar o desafio de um tempo tão
surpreendente e desconcertante - parece-me a única maneira de
realmente ter presente, seja uma mínima unidade de ternura
eclesiástica, seja um mínimo episcopal de competência
eucarística. Depois da pandemia procuremos, pelo menos, não
nos distanciar do que diz a IGMR, isto é, de pelo menos não
dispensar da referência que ela nos propõe. E de recomeçar
tudo a partir daí.
Referências Bibliográficas
CNBB.
As introduções gerais dos livros litúrgicos
. São Paulo: Paulus, 2003.
MISSAL ROMANO
. São Paulo: Paulinas, 1992, 2ª ed.
PIO X, Papa.
Carta Encíclica Vehementer Nos
. Roma: Libreria Editrice
Vaticana, 1906.
7 Na versão português Brasil, n.62.
EUCARISTIA EM TEMPOS DE PANDEMIA
Considerações de um pastor
Dr. Dom Hernaldo Pinto Farias*
DOI: https://doi.org/10.52451/teopraxis.v37i129.8
Recebido: 10 de dezembro de 2018 | Aprovado: 02 de abril de 2019
Resumo:
O presente artigo quer aprofundar as celebrações litúrgicas, mais
precisamente as celebrações eucarísticas, e fazer algumas provocações a partir
de práticas realizadas neste tempo de pandemia, nem sempre condizentes
com aquilo que a Igreja orienta. Ao mesmo tempo quer lançar luzes sobre o
contexto que estamos vivendo a partir do Sacramento da Eucaristia.
Palavras-chave:
Eucaristia. Missa. Liturgia das Horas. Igreja. Oportunidade.
Introdução
A pandemia da Covid-19 pegou todo o mundo de surpresa,
atingindo não apenas os sistemas de saúde municipais, a
economia das nações, mas também a vida da Igreja e, em
particular, sua liturgia. Não tem sido fácil compreender e
acolher toda essa realidade. E mais: para nós, não é possível
acolhê-la sem a profunda vivência da fé no Cristo morto e
ressuscitado. Durante esses meses que já se passaram, para
muitos presbíteros alimentar a fé pessoal e também a fé da
porção do rebanho a ele confiado e, por consequência, orientar
a vida celebrativa de ambos tem sido um grande desafio.
O presente artigo foi solicitado pelo Superior Geral da
Congregação do Santíssimo Sacramento, Padre Eugênio
Barbosa Martins, SSS, para que os especialistas das mais diversas
* Bispo da Diocese de Bonfim (BA). Possui Mestrado em Teologia Dogmática pela
PUC/SP; Mestrado e Doutorado em Sagrada Liturgia pelo Pontifício Ateneu
Santo Anselmo de Roma/IT. Foi assessor da Comissão Episcopal para a Liturgia
da CNBB e Membro do Centro de Liturgia Dom Clemente Isnard. Email:
hepifari@gmail.com
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áreas do saber pudessem lançar luzes sobre essa realidade a partir
da Eucaristia, como expressão do carisma eymardiano
1
, pois,
segundo a Regra de Vida da Congregação, Procuramos
compreender toda a realidade humana à luz da Eucaristia, ápice
e fonte da Igreja (nº 34).
Impedidos de celebrar principalmente a Eucaristia com a
presença indispensável dos fiéis discussão que deve ser feita
em outro momento , muitos clérigos têm recorrido aos atuais
meios de comunicação com transmissões de celebrações
on-line
,
além daquelas já transmitidas pelas redes de televisão. A princípio,
não isso é ruim, pois a Igreja, desde o Concílio Vaticano II,
tem-se preocupado com a comunicação social, chegando a
publicar diretórios para tal fim, aprovados em diversas
Conferências Episcopais
2
. A questão é que, além de, na maioria das
vezes, tais transmissões não primarem pela discrição e decoro,
perfeição e eficácia (SC 20; IM 14), por causa das improvisações e
amadorismos, elas têm veiculado teologias e formas litúrgicas
personalistas, revelando vícios que antes eram mantidos no recôndito
de suas paróquias e, o mais preocupante, escancarando ao mundo a
baixa preparação teológica e litúrgica de muitos. Num mundo
globalizado, a Igreja globalizou também suas fraquezas litúrgicas.
Limitamo-nos a citar apenas algumas dessas transmissões,
para não nos alongarmos e para adentrarmos no conteúdo que
nos propusemos partilhar.
1 Eucaristia manipulada
No domingo de Ramos da Paixão do Senhor, um presbítero,
após um breve canto, começou a Eucaristia persignando-se e
dizendo: Em nome do Pai, do Filho, da Mãe e do Espírito
Santo. Essa fórmula ritual, além de ser bizarra pela falta da
1 São Pedro Julião Eymard, fundador da Congregação do Santíssimo Sacramento.
2 Cf. CNBB.
Diretório de comunicação da Igreja no Brasil
(Documentos da CNBB
99). Brasília: Ed. CNBB, 2014.
FARIAS, Hernaldo Pinto.
Eucaristia em tempos de pandemia
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necessária conjunção e o acréscimo de uma quarta pessoa (?) da
Santíssima Trindade, nos leva a questionar o antiquíssimo axioma
lex orandi lex credendi
(Próspero de Aquitânia após 455), pois
Deus uno e trino, fonte e princípio de toda a fé professada pela
Igreja em sua liturgia, que é a
theologia prima
, deixa de ser
experimentado pela comunidade celebrativa como obra de
salvação querida pelo Pai, operada por Cristo e continuada na
liturgia, pela condução do Espírito Santo (SC 5-6). Transmitir
conteúdos contrários à liturgia da Igreja é levar as pessoas a uma
errônea e distorcida experiência da fé, submetendo-a a conceitos
pessoais daqueles que deveriam ser guardiões e mestres da mesma
(SC 14), pois a norma do orar determina a norma do crer. Fé que é
eclesial e não subjetivista, e o presbítero presidente da celebração
deve estar lembrado de que ele é servidor da sagrada Liturgia e de
que não lhe é permitido, por própria conta, acrescentar, tirar ou
mesmo mudar qualquer coisa na celebração da Missa (IGMR 24).
No mesmo domingo de Ramos, um bispo, além de outros
presbíteros que também utilizaram a grande ideia, fixou nos
bancos da igreja fotos impressas de fiéis de sua diocese. Para
completar essa estranha cena, o prelado entrou com um
presbítero assistente, nave adentro, munido de báculo, como
pastor de seu
rebanho de papel
. A participação ativa, consciente e
frutuosa dos fiéis por sua presença atuante na liturgia não é uma
brincadeira de papel, como canta certa música brasileira sobre
Papai Noel. Ela é a expressão da força do Espírito que age na
ritualidade da Igreja, precisamente, através de seus ritos e preces
(SC 48), o que também nos levaria a questionar o conceito e a
orientação de participação espiritual, quando se fala de liturgia
hoje. Além do mais, o báculo pastoral é uma das insígnias
daquele que fora constituído pastor de seu rebanho reunido em
torno ao presbitério e não, fictício. É o sinal de seu múnus
pastoral, a exemplo do Cristo, Bom Pastor e, por isso mesmo,
deve ser usado, sobretudo, em seu próprio território
3
.
3 Cf. CNBB,
Cerimonial dos Bispos (Cerimonial da Igreja)
, n.59.
52
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Durante a Missa Vespertina da Ceia do Senhor, as
criatividades selvagens foram até maiores: o lava-pés, já
orientado pela Santa Sé para que fosse omitido (cf. Decreto
Em
tempo de Covid-19 II
), foi feito por presbíteros que lavaram
desenhos de pés, outro que lavou os pés das imagens dos santos
de sua igreja, ou outro ainda, que lavou os pés de bonecos,
somente para citar alguns exemplos. Ora, o chamado lava-pés,
que já é um rito opcional nesta celebração de abertura do
grande Tríduo Pascal para nossa participação nos mistérios do
Senhor, não é uma mera encenação. Por ele, ritualizamos
evocando a força teológica do serviço maior prestado por Cristo
ao entregar sua vida ao mundo, porque muito amou. Teologia
joanina muito cara à Igreja. Este gesto ritual é, portanto, a
expressão de um amor incondicional que, celebrado na e pela
Eucaristia da Igreja, deve ser imitado por todos aqueles que
professam a fé em Jesus Cristo, a tal ponto de tornar-se a
marca-opção de vida de seus discípulos e discípulas (cf. Jo
13,14.35).
Padres adotaram a prática de, após
sua
Missa, distribuir a
comunhão eucarística a fiéis que fazem filas à porta das igrejas,
mesmo que, segundo os pastores, estejam tomando os
cuidados higiênicos e sanitários exigidos pelas autoridades.
Houve também a prática do
Drive-through
ou, popularmente,
drive-thru através do carro
. Este é um método usado no
mundo do consumismo capitalista para vender produtos a
clientes que, confortavelmente, os adquirem sem sair de seus
veículos. A comunhão eucarística tem sido tratada quase como
um verdadeiro
fast-food
(comida rápida), fabricada e preparada
para não fazer o cliente esperar, e para recebê-la no conforto
de seus carros por causa da frenética correria da vida, mas
agora também por causa do cuidado com a possibilidade de
contágio do novo coronavírus. Aqui, não só a ritualidade da
Igreja é vilipendiada, mas, sobretudo, a Eucaristia é destituída
de sua força de Ceia do Senhor, como alimento da vida eterna.
FARIAS, Hernaldo Pinto.
Eucaristia em tempos de pandemia
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Não questionamos o fato da distribuição da sagrada
comunhão em si, porque a Igreja normatiza tal prática
4
, mas
a forma e o objetivo com que está sendo distribuída: como se
comungar fosse o antídoto para a proteção viral ou porque o
que importa ao fiel é somente a comunhão eucarística, sem
qualquer ritualidade ou disposição interior de participação
no Mistério do Senhor em sua íntima relação com a
Celebração Eucarística (Cf. SCCEFM 13-15 e 25). E o clero
se vê na obrigação de atender aos distorcidos desejos de
grupos ou indivíduos.
E o que dizer de quando a Eucaristia é trasladada em um
carro (quase alegórico, próprio dos carnavais), como se fosse um
objeto para afastar o vírus das portas daqueles que a ela se
voltam, devotamente? Sem falar nos desfiles de paramentos
medievais de gostos duvidosos. A exposição da Eucaristia foi
finalmente regulada pelo Ritual promulgado em 1973 e exige
cuidados por parte dos pastores que, às vezes, a fazem tão
somente para dar a bênção, o que tem acontecido com
frequência nesses dias. Não é demasiado recordar que, desde
1967, com a Instrução
Eucharisticum Mysterium
, nº 66, a Igreja
proibiu a exposição da Santíssima Eucaristia unicamente para
dar a bênção (SCCEFM 89). Trata-se de sabedoria e prudência
da Igreja para não facilitar as manipulações e, quem sabe,
magias no trato com a Eucaristia.
E assim, tantas outras práticas nos têm preocupado e
provocado muitas reflexões e questionamentos. Fiquemos,
porém, apenas com as citadas acima.
4 Cf. SAGRADA CONGRAGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO,
A sagrada
comunhão e o culto do mistério eucarístico fora da missa
, n.16. De agora em diante
citado como SCCEFM.
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2 Perdemos oportunidade única?
Desde o início desta pandemia, aqui no Brasil com o
primeiro caso divulgado no dia 26 de fevereiro do corrente ano,
pesquisadores de várias áreas do saber humano e também
teólogos, entre eles liturgistas, têm feito reflexões com o
objetivo de iluminar essa realidade, que já se apresentava de
forma quase anacrônica. Entre as várias reflexões houve uma
que nos chamou a atenção: este é o momento propício para
repensarmos e revalorizarmos a liturgia da Igreja doméstica.
Não faltaram sugestões como a recuperação da prática da
bênção dos alimentos, perdida nos últimos tempos; a oração
antes de dormir, com a importante bênção dos pais a seus filhos;
a leitura orante da Bíblia, como forma de deixar-se orientar pela
Palavra de Deus, entre outras.
Uma forma orante de alimentar a fé nos parece mais
apropriada para esta reflexão: a prática da Liturgia das Horas
(LH) na Igreja doméstica e na vida dos presbíteros ou religiosos.
A Igreja tem sua forma de oração, prioritariamente
comunitária
5
, que é a Liturgia das Horas, abandonada por
muitos, sobretudo por leigos e leigas que, apesar da recuperação
aos mesmos pelo Concílio (SC 100), não foram iniciados nos
mistérios e, por isso, buscam às apalpadelas se manterem de pé
às custas de práticas devocionistas. Será que não perdemos a
oportunidade dessa recuperação na vida da Igreja, nestes tempos
de pandemia? Em vez de transmitir práticas litúrgicas duvidosas,
no intuito de manter a vida orante dos fiéis, ou de manipular a
Eucaristia de diversas formas, como se fosse a única forma
celebrativa da Igreja, apesar de ser a mais sublime, não seria o
caso de incentivarmos os leigos a que alimentem sua fé através
da oração da Liturgia das Horas? Os próprios presbíteros, não
5 Cf. Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas, In.
As introduções gerais dos livros
litúrgicos
, São Paulo: Paulus, 2003, n.9, p.288. De agora em diante citado como
IGLH.
FARIAS, Hernaldo Pinto.
Eucaristia em tempos de pandemia
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perdemos nós a oportunidade de reavivar nosso compromisso
sacramental de rezar as horas do Senhor? Não seria também
uma forma de solidariedade do clero com os milhares de leigos
e leigas que, raramente, podem participar de uma Celebração
Eucarística (como em tantos lugares do Brasil, onde
comunidades passam um ou mais meses sem este Sacramento
central da vida da Igreja), na certeza eclesial de que também nos
unimos aos mistérios do Cristo quando celebramos a LH,
meditando e cantando a Palavra de Deus?
Quem sabe o excesso de zelo pastoral nos tenha impedido de
experimentar a simplicidade de nossa vida celebrativa, como se
a Liturgia das Horas fosse apenas uma oração e, como fuga,
fomos buscar o espetáculo eucarístico, quase transformando a
Eucaristia em simples objeto devocional.
3 Liturgia das Horas forma privilegiada de participação
no mistério eucarístico
Ao rezar a LH, a Igreja santifica o dia e toda a atividade
humana (IGLH 11), pois esta oração é fonte de piedade e da
multiforme graça divina e [serve] também de alimento à oração
pessoal (IGLH 19). Por isso mesmo, a LH é cume e fonte da
atividade pastoral (IGLH 18), recomendada pela Igreja para
que os pastores, por meio dela, encontrem [não só] uma fonte
de piedade e alimento de sua oração pessoal, mas [também]
nutram e incentivem, através de intensa contemplação, sua
atividade pastoral e missionária para proveito de toda a Igreja de
Deus (IGLH 28).
Santificar a hora, o dia, as atividades, significa que pela Liturgia
das Horas a Igreja revela sua genuína natureza de participante dos
mistérios de Cristo pela oração (Cf. IGLH 22) a cada hora do dia,
durante a semana e em cada tempo do ano litúrgico.
Aquele que faz uso da LH, portanto, experimenta os
mistérios de Cristo a cada hora, pascalizando, assim, sua vida e
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todas suas atividades. Tudo é lido, interpretado e vivido a partir
da força da Páscoa de Cristo, que revitaliza os membros de seu
Corpo, a Igreja. Das trevas à luz, da noite ao dia, da morte à
vida. Noite e dia são transformados em experiência pascal
cotidiana porque o Cristo mesmo, presente na ação orante
salmódica da Igreja (SC 7), canta ao Pai seus mistérios (Cf.
IGLH 13), tornando-a participante dos mesmos.
Limitando-nos apenas às horas do dia, tomando como
referência a primeira semana, com as Vésperas, canta-se o
mistério da morte do Cristo que salmodia a tentativa de
domínio das trevas sobre o mundo, sobre ele. Este canto,
porém, é pleno de confiança na bondade, misericórdia e ação de
um Deus que não abandonou seu Filho na região dos mortos, e
a morte não teve sua vitória. E Cristo canta:
O Senhor é minha
luz e salvação; de quem eu terei medo? O Senhor é a proteção de
minha vida; perante quem eu temerei?
(Sl 26 quarta-feira). É
por isso mesmo que a Esposa glorifica aquele que é sua
Cabeça..., o princípio, o Primogênito entre os mortos (Cl
1,18 quarta-feira) e suplica a Deus pelos irmãos e irmãs
falecidos, para quem espera a vida eterna. No novo dia que
surge, com as Laudes, a esperança da vitória do Cristo sobre o
pecado, as trevas e sobre a morte se faz realidade, quando se
canta a ressurreição: Vós sois grande, Senhor, para sempre...
Porque vós castigais e salvais, fazeis descer aos abismos da terra
e de lá nos trazeis novamente (Ct. Tb 13,2 terça-feira). Nas
Horas Médias, proclamando os mistérios de seus sofrimentos e
crucifixão, o justo lamenta o abandono e, confiante em Deus,
canta: Até quando, ó Senhor, me esquecereis? Até quando
escondereis vossa face? Até quando estará triste minha alma? e o
coração angustiado cada dia? Até quando o inimigo se
erguerá? (Sl 12,2-3 terça-feira). Sem citar o Ofício dos fiéis
defuntos, com o qual a Igreja canta o mistério da morte de
Cristo na morte dos irmãos e irmãs, reafirma que não é a
tristeza e o choro que devem prevalecer, mas a esperança
FARIAS, Hernaldo Pinto.
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naquele que é o vencedor da morte, pois ele há de conduzir a
sua companhia todos os que morreram na fé, em seu Filho Jesus
Cristo.
Ora, nestes angustiantes dias de pandemia, quando a dor e a
morte buscam seu domínio, quando o desespero parece querer
ser a voz mais forte, quando o mundo não suporta mais as
infindáveis trevas, ressoam os salmos da Igreja que canta com
seu Senhor: Guardei minha fé, mesmo dizendo: É demais o
sofrimento em minha vida! Confiei, quando dizia na aflição:
Todo homem é mentiroso! Todo homem (Sl 115,10-11
Comum dos Apóstolos, São Matias). Pela oração, a Igreja
pascaliza a vida, interpretando-a à luz dos mistérios de Cristo
que vive e age nela. Ela, dessa forma, como mãe, se solidariza
com toda a humanidade e, no sofrimento de seus filhos e filhas,
continua a acreditar na força da vida que venceu a morte.
Tudo isso nos remete à Eucaristia, sacramento por
excelência da celebração e participação da Igreja nos mistérios
da Páscoa de Cristo. A Liturgia das Horas, por sua vez, está tão
intimamente ligada à Celebração Eucarística que alarga aos
diferentes momentos do dia o louvor e a ação de graças, a
memória dos mistérios da salvação, as súplicas, o antegozo da
glória celeste, contidos no mistério eucarístico... (IGLH 12).
Por essa unidade com a Eucaristia, torna-se para a Igreja seu
sacrifício vespertino (Sl 140,2), evocando o próprio sacrifício
do Senhor quando, no cenáculo, confiou os santos mistérios a
seus apóstolos e o realizou logo depois, na cruz (Cf. IGLH 39).
Esta é a forma com a qual se pode falar de sacrifício espiritual,
participação espiritual ou sacrifício de louvor: como fruto dos
lábios que glorificam o nome do Senhor (Cf. Hb 13,15; IGLH 15).
Mais ainda: para a Igreja, a própria celebração eucarística
tem na Liturgia das Horas sua melhor preparação, porque esta
suscita e nutre da melhor maneira as disposições necessárias para
uma frutuosa celebração da Eucaristia, quais são a fé, a esperança,
a caridade, a devoção, o espírito de sacrifício (IGLH 12).
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A LH encontra tamanha importância por parte da Igreja
que, por causa dos mistérios do Cristo que são estendidos no
decurso do dia e do tempo, uma das horas pode ser usada como
rito para o culto eucarístico fora da Missa (exposição da
Santíssima Eucaristia), sobretudo uma das horas principais
(Laudes ou Vésperas). Na verdade, por ela os louvores e as
ações de graças tributados a Deus na celebração da Eucaristia
estendem-se às diversas horas do dia e as preces da Igreja se
dirigem a Cristo e por Cristo ao Pai em nome de toda a
humanidade (SCCEFM 96). De fato, pela adoração a Igreja
prolonga a Eucaristia celebrada, contemplando no Pão
Eucaristizado os mistérios daquele que nos deu a salvação.
A Liturgia das Horas é, de fato, uma forma privilegiada de
participação nos mistérios eucarísticos da Igreja e pode ser
incentivada e melhor experimentada por todos, em particular
pelas famílias nesses difíceis tempos de isolamento social que
vive a humanidade.
À guisa de conclusão
É curioso, e quase paradoxal, que a forma de compreender a
realidade humana à luz da Eucaristia aqui proposta seja
justamente, sem ela. Ou melhor, através de outro rito que não o
da Celebração Eucarística. Assim foi feito para, justamente,
preservar a Eucaristia de seu sublime e mais digno lugar e
condição na vida da Igreja. Foi para que não seja feito o que
tem acontecido em vários lugares do mundo, banalizando a
Eucaristia como se fosse possuidora de qualidades mágicas,
através de práticas que desconsideram seu sentido e
desrespeitam toda e qualquer norma do rito litúrgico.
Em vez disso, somos chamados a reafirmar e revalorizar a
liturgia doméstica, cuja vida pode e deve ser alimentada através
da oração dos mistérios de Cristo cantados nos Salmos,
utilizando-se da força e sabedoria das Sagradas Escrituras. Esta é
FARIAS, Hernaldo Pinto.
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uma boa oportunidade para promover cada vez mais na Igreja a
Oração das Horas, pascalizando por ela o cotidiano para ajudar
a ler a realidade à luz da Eucaristia, Páscoa de Cristo Jesus, nosso
Senhor e redentor.
Referências Bibliográficas
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. Tradução oficial da CNBB. Brasília: Ed. CNBB, 2018.
CNBB.
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SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO.
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. São Paulo: Paulus, 2000.
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____.
Liturgia das Horas
. São Paulo: Paulinas, 1995.
____.
Missal Romano
. São Paulo: Paulinas, 1992, 2ªed.
EUCARISTIA: FONTE E CUME DA VIDA CRISTÃ
Tomai e comei, fazei isto em memória de mim (Lc 22,19)
Dr. Pe. Rogério L. Zanini*
Pe. Claudir Meoti**
DOI: https://doi.org/10.52451/teopraxis.v37i129.9
Recebido: 15 de novembro de 2018 | Aprovado: 01 de março de 2019
Resumo:
Para viver uma espiritualidade libertadora, talvez o mais delicado e
exigente seja a relação dos católicos com a Eucaristia. Infelizmente, a
Eucaristia, o mais precioso tesouro da fé e da vida espiritual, ainda se
encontra aprisionada e envolta de estruturas rígidas que nem sempre
permitem às pessoas se deliciarem com o mistério. Urge como desafio
refazer a centralidade da ceia de Jesus para que ela possa novamente se tornar
o alimento comunitário, ligada com a vida e às lutas cotidianas, como
sacramento da partilha e do amor de Cristo levado até o extremo (Jo 13,1). A
realidade da pandemia com o fechamento das Igrejas/Templos fez perceber
os desafios da evangelização em relação à Eucaristia, bem como seus avanços
na compreensão da ceia como banquete de solidariedade com os pobres e
excluídos. Por isso, a reflexão que segue busca, primeiro, discorrer de forma
narrativa sobre os Evangelhos com o objetivo de perceber a centralidade das
refeições na vida de Jesus. Em segundo lugar, compreender o sentido do
mandamento, deixado por Jesus:
fazei isto em memória de mim
. E, por fim,
em terceiro lugar, o
tomai e comei
como banquete da vida, rechaçando
qualquer perspectiva individualista e farisaica em relação à Eucaristia.
Palavras-chave:
Jesus. Eucaristia. Evangelização. Vida.
Introdução
A pandemia, como não poderia ser diferente, afeta a vida da
Igreja. No livro do Apocalipse encontra-se uma passagem, na
* Padre da Diocese de Chapecó. Doutor em teologia pela PUCRS. Professor e
Diretor da Itepa Faculdades - Passo Fundo. Email: zaninipastoral@hotmail.com
** Padre da Diocese de Chapecó. Pároco da Paróquia Senhor Bom Jesus da Coluna,
Xanxerê SC. Formado em filosofia e teologia e pós-graduado em Liturgia e em
Iniciação à Vida Cristã Catequese. Email: claudirmeoti@yahoo.com.br
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qual o autor afirma, referindo-se às comunidades: quem tem
ouvidos, ouça o que o Espírito diz às Igrejas (Ap 2,7). Se o
Espírito é o agente primeiro da evangelização: como nesta
realidade obscura, provocada pela pandemia, se revela e atua a
força do Espírito nos processos de evangelização? Que
diagnóstico eclesial é possível verificar diante do cenário da
pandemia? Alguns já se perguntam como será depois da
pandemia. Questão importante se estiver embasada numa
reflexão correta do cenário deixado por ela. Senão, há o sério
perigo de propor respostas a questões inexistentes. Daí a
importância de perguntar-se especificamente pela realidade da
Eucaristia, fonte e cume da vida cristã, e suas consequências
para os processos de evangelização.
Diante das orientações da Organização Mundial da Saúde
(OMS) para
controlar
a contaminação pelo coronavírus, uma das
medidas é o distanciamento social. Essa orientação necessária e
eficaz transtornou a caminhada de evangelização,
principalmente quando foi preciso
coibir
a participação física dos
fiéis na celebração eucarística. Surge o grande questionamento:
vamos ficar sem comungar? A pergunta é interessante e sobre o
que tentamos discorrer neste texto é o verdadeiro sentido do
comungar do Corpo e Sangue de Cristo para a vida daqueles
que desejam seguir a proposta do Evangelho.
A reflexão que segue aborda, em primeiro lugar e de forma
narrativa, os Evangelhos com o objetivo de perceber a
centralidade das refeições na vida de Jesus. Em segundo lugar,
em conexão com as narrativas das refeições, busca compreender
o sentido do mandamento deixado por Jesus: fazei isto em
memória de mim. E, por fim, em terceiro lugar, o
tomai e
comei
como banquete da vida, rechaçando qualquer perspectiva
individualista e farisaica em relação à Eucaristia. Ao refletir esses
três pontos, desejamos firmar que a Eucaristia é, sim, central e
alimento indispensável aos que seguem a Jesus. Ela é o sustento
essencial para a missão de anunciar o Reino de Deus.
ZANINI, Rogério L.; MEOTI, Claudir.
Eucaristia: fonte e cume da vida cristã
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1 Jesus e as refeições
Quando se analisa a vida de fé da Igreja católica, fica
evidente a importância teórica e prática da Eucaristia. A
tradição é longa e muito fecunda historicamente. Desde o
início do cristianismo, a Eucaristia se tornou o núcleo por
excelência da experiência cristã. Central na vida de Jesus, a
Igreja entendeu a Eucaristia, na expressão Concílio Vaticano II
(1965), como fonte e cume da vida cristã. Pela participação no
sacrifício eucarístico de Cristo, fonte e centro [cume] de toda a
vida cristã (LG 10; QA 84), a Igreja se torna o que ela de fato
é: comunhão.
Para compreender o processo da configuração da Eucaristia
como expressão da realidade comunal da Igreja, é importante
voltar às primeiras narrativas dos Evangelhos. Os Evangelhos
são a carta magna da grande síntese das palavras-mandamento
de Jesus: fazei isto em memória de mim. Que memória se está
atualizando em cada celebração eucarística?
As narrativas bíblicas deixam entrever uma infinidade de
momentos em que Jesus se refere ao alimento. São uma gama
bem expressiva dos banquetes e refeições realizados na presença
de Jesus. Como se dirá a seguir, Jesus revela-se um homem da
mesa e colocará quase como necessidade imprescindível a
comensalidade para participar do Reino de Deus. As narrativas
das refeições, antes de celebrar a última ceia, são uma amostra
do reinado de Deus e, também, das dificuldades próprias de os
discípulos entenderem a novidade que Jesus traz à humanidade.
Quando se percorre as narrativas dos evangelhos, é perceptível
que houve uma sequência de outras refeições e banquetes na
presença de Jesus, anteriores à última ceia. Sem a preocupação
exaustiva de esgotar, retomam-se algumas refeições narradas
pelos Evangelhos.
Jesus como peregrino ia de casa em casa compartilhando da
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experiência da vida e acolhendo o que lhe ofereciam. É
convidado para fazer refeições e participa com alegria. Jesus
também aparece convidando-se para estar na casa das pessoas,
como mostra o exemplo de Zaqueu. Encontro que começa no
caminho e termina na casa, com a conversão e mudança de vida
de Zaqueu (Lc 19,1-10). Há situações inesperadas, em que o
banquete é preparado, mas os convidados não aparecem. Jesus
contorna aquela decepção, mandando convidar um público
marginalizado e excluído, segundo a visão daquela sociedade: os
pobres, os aleijados, os cegos e os mancos (Lc 14,15-24). A lição
é a possibilidade de autoexclusão em participar do Reino de
Deus, não por parte de Jesus, que não exclui ninguém, mas pelo
contrário. Ao assegurar que dos pobres é o Reino de Deus, Jesus
revela o desejo da universalidade do banquete. No entanto, a
participação no Reino não se dá de qualquer forma, é fruto das
escolhas, ou melhor, da resposta dada diante das exigências para
fazer parte do reinado de Deus.
Algumas refeições se tornam escolas catequéticas para
instruir os discípulos na responsabilidade e no compromisso
com a fome das pessoas. Exemplo típico é a multiplicação dos
pães que, apesar das diferenças, é narrada por todos os
evangelistas (Mt 14,13-21; Mc 6,30-40; Lc 9,10-17; Jo 6,1-13).
O que importa nesses textos é evidenciar pessoas com fome e o
ensinamento de Jesus. Jesus sonda a opinião dos discípulos sobre
o que fazer diante do povo faminto e os responsabiliza: dai-
lhes vós mesmos de comer.... Os discípulos só veem duas
saídas: uma, mandar o povo embora, ou seja, quem tem come e
quem não tem se vira como pode. Outra, a saída personalista,
com ares messiânicos, ou seja, alguém vai comprar pão para
todos. E surge o caminho aberto por Jesus: avaliar o que
possuem, organizar, partilhar, cuidar das sobras e evitar os
desperdícios. É a lição de outro modo de pensar como deve ser
a nova sociedade testemunhada pelos discípulos/cristãos,
seguidores de Jesus em todos os tempos.
ZANINI, Rogério L.; MEOTI, Claudir.
Eucaristia: fonte e cume da vida cristã
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O Papa Francisco traz presente esse texto, justamente ao se
referir e desejar uma Igreja em saída. Saiamos, saiamos para
oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Acrescenta: Prefiro
uma Igreja acidentada, ferida e enlameada, por ter saído pelas
estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade
de se agarrar às próprias seguranças. E revela seu maior medo:
Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de
nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção,
nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos
hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma
multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar: Dai-lhes vós
mesmos de comer (Mc 6,37) (EG 49).
O evangelista São João, ao narrar a multiplicação dos pães,
apresenta uma realidade bem curiosa. Para o que interessa aqui,
João da mesma forma fala da multiplicação dos pães, no
entanto, logo em seguida, Jesus percebe que o povo e os
discípulos o estão seguindo e, surpreendentemente, os adverte:
Em verdade, em verdade, vos digo: vós me procurais, não
porque vistes sinais, mas porque comestes dos pães e vos
saciastes (Jo 6,26). Na sequência, explicita abertamente o
caminho da cruz e o que significa comer seu corpo e beber seu
sangue. Isso as pessoas consideram duro demais e se colocam
em debandada: A partir daí, muitos dos seus discípulos
voltaram atrás e não andavam mais com ele (Jo 6,66). Ao que
Jesus interpela os doze: não quereis também vós partir? (v.
67). Simão Pedro, respondeu: Senhor, a quem iremos? Tens
palavras de vida eterna e nós cremos e reconhecemos que tu és
o Santo de Deus (Jo 6,68-69). É a pergunta cortante sobre a
disposição de seguimento de Jesus e sobre a consciência da
necessidade de arcar com o peso da cruz. Por que seguimos a
Jesus? As pessoas percebem sinais de amor, de renúncias, de
radicalidade na opção dos cristãos em vista da justiça, da casa
comum e no projeto do Reino de Deus?
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Retomando os evangelhos, outra realidade que se vislumbra
na prática de Jesus é a relativização dos bens em vista da vida.
Significa colocar os bens do mundo a serviço da vida. Cena
chamativa, neste sentido, acontece quando os discípulos colhem
espigas de trigo para saciar sua fome, em campos alheios, em dia
de sábado, como nos relata São Marcos (Mc 2,23-28). Segundo
os fariseus, é sábado e não é permitido, porque descumprem
uma das leis mais sagradas dos judeus. Não importa, nesse caso,
se está em jogo o problema da lei do sábado ou da colheita dos
bens alheios. A resposta de Jesus é profética: O sábado foi feito
para o homem, e não o homem para o sábado (v. 27)
1
. Em São
Mateus, o questionamento aparece depois que Jesus cura um
homem em dia de sábado. Na resposta, Jesus compara entre o
valor de uma ovelha resgatada de um buraco e o do ser
humano. O que se faz, se cair uma ovelha no buraco em dia de
sábado? Não irão socorrê-la? Portanto, se vale para o animal,
muito mais ao ser humano, fonte de dignidade absoluta (Mt
12,11-12).
O teólogo Maria José Castillo, depois de passar em revista os
textos eucarísticos do Novo Testamento, conclui com duas
ideias interligadas. Uma, a eucaristia é fato comunitário, isto é,
não existe nenhum texto no qual a eucaristia aparece como
gesto individual realizado por um indivíduo e para um
indivíduo, mas se trata sempre de algo partilhado por um
grupo. Outra, a Eucaristia é comida sempre partilhada.
Significa que não é coisa santa e sagrada, mas uma
ação
que,
logicamente, comporta determinado simbolismo
2
.
Outra característica destacada por Castillo é o fato de Jesus
instituir a Eucaristia em uma refeição (ceia de despedida). Fato
1 Cf. Ildo Bohn GASS,
Jesus sobrepõe às leis o direito à vida
. 28 de maio de 2018.
Disponível em: https://cebi.org.br/reflexao-do-evangelho/jesus-sobrepoe-as-leis-
o-direito-a-vida/. acesso em 01 de agosto de 2020.
2 Cf. José María CASTILLO, Eucaristia. In: C. F. SAMANES; José TAMAYO
ACOSTA (orgs.),
Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo
, p.252-253.
Grifo do autor.
ZANINI, Rogério L.; MEOTI, Claudir.
Eucaristia: fonte e cume da vida cristã
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que remete a uma prática de Jesus e de sua comunidade, o que
considera algo expressivo. E, assim como se assinalou acima,
Castillo também chama a atenção para os contextos polêmicos
das refeições de Jesus. 1) Jesus e seus discípulos não se encaixam
às normas rituais e religiosas, que todo judeu observante levava
em consideração (Mc 7,2-5; Mt 12,21; Jo 18,28). 2)
Compartilham à mesa pessoas desacreditadas, como pecadores e
gente indesejável (Mc 2,16; Lc 15,2). 3) A comunidade de Jesus
não jejuava conforme as prescrições exigidas pela lei (Mc 2,17-
18). 4) Os inimigos de Jesus também o acusavam de ser comilão
e beberão (Mt 11,18-19). São elementos claros que revelam que
Jesus e sua comunidade rompem com a teologia estabelecida
por aquele sistema religioso. Porque: O verdadeiro sentido
teológico da comida partilhada, segundo o ensinamento
evangélico, consiste em compartilhar a vida e se solidarizar com
os pobres e desamparados deste mundo
3
.
Ora, essas passagens dos Evangelhos visualizam a percepção
da constância das refeições na vida de Jesus, bem como das
dificuldades das autoridades, das classes abastadas e dos próprios
discípulos de aceitarem a mesa como símbolo da comunhão, da
fé, da justiça e do amor como doação total (Jo 13,1).
2 Banquete de despedida: Fazei isto em memória de mim
O fato de Jesus realizar uma ceia para se despedir na véspera
de sua morte aparece, por um lado, sem surpresa na vida dos
discípulos e, por outro, está em continuidade com o pilar
fundamental de sua vida. Quer dizer, uma refeição estava
totalmente em ordinário com a prática de Jesus, ou seja,
despede-se da mesma forma como viveu. O antes, o durante e o
depois estão em sintonia e comunhão profunda em Jesus de
Nazaré. Jesus é aquele que passou pelo mundo fazendo o bem,
3 José María CASTILLO, Eucaristia. In: C. F. SAMANES; José TAMAYO
ACOSTA (orgs.),
Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo
, p.253.
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como recorda São Pedro (At 10,38), se despede dos seus com
uma refeição. É o testamento autorizado e missionário para que
os discípulos não duvidem da necessidade de continuar fazendo
isto
em memória de Jesus.
Com esse pano de fundo, fica mais fácil entender o apóstolo
Paulo, quando reclama da falta de fraternidade entre os
membros da comunidade. Porque uns comem do que têm e
antes dos outros, e os demais permanecem com fome. Desta
forma, comem da própria condenação. Eis porque todo aquele
que comer do pão ou beber do cálice do Senhor indignamente
será réu do Corpo e do Sangue do Senhor (1Cor 11,29). E, às
duras penas, Paulo consegue ajudar a comunidade a manter o
critério fundamental: não se esquecer dos pobres (Gl 2,10) e a
necessidade de superar todas as divisões, porque não há mais
judeus ou gregos, escravos ou livres, homens ou mulheres (Gl
3,28). A fraternidade é a identidade cristã: amai-vos uns aos
outros (Jo 15,17). O testamento repetido em todas as
celebrações: o amor de Cristo nos uniu.
Assim se entende, a relação intrínseca entre banquete
eucarístico e amor ao próximo. Essa foi a grande missão das
primeiras comunidades cristãs para manter-se na fidelidade à
memória de Jesus e no desejo de se constituir em um só coração
e uma só alma. Ainda, a luta para vencer a tentação da
propriedade privada, colocando tudo em comum (At 2-4),
projeto evangélico audacioso que peregrinou na história, não
sem dificuldade, conforme o relato do casal, Ananias e Safira,
que desviam o dinheiro de uma propriedade (At 5,1-11).
Atitude designada como pecado contra o Espírito Santo.
É nessa matriz bíblica que está fundamentada a vida cristã, e
fazer memória é atualizar esse ensinamento sempre pertinente
na história do cristianismo. Então, ao dizer sim ao batismo, os
cristãos estão assumindo esse compromisso de morrer para uma
determinada forma de vida e mergulhar no estilo de Jesus. Um
mergulho por inteiro na missão de ser uma nova criatura, um
ZANINI, Rogério L.; MEOTI, Claudir.
Eucaristia: fonte e cume da vida cristã
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novo nascimento, como Jesus exigiu de Nicodemos (Jo 3,1-36).
Nascer de novo é colocar-se a caminho dessa meta e deixar-se
converter pelas águas do Cristo crucificado-ressuscitado, a fim
de ser instrumento de Deus no mundo.
As diferentes refeições e a ceia de despedida, com a presença,
inclusive, de Judas apontam para as tensões e os conflitos diante
do seguimento. Judas expressa a decisão, o não compromisso
com Jesus. Jesus e os discípulos
suportam
Judas durante todo o
tempo da missão, esperando sua conversão. No entanto, Judas
se mostra sempre mais fora da
memória
de Jesus para assumir a
memória
do mundo, das autoridades, das classes políticas. A
noite do mundo, Nicodemos conseguiu superar, mas Judas não.
A saída de Judas não é rejeição do grupo dos discípulos. Sua
adesão decisiva ao grupo dos guardas, das autoridades e dos
sumos sacerdotes do Templo fez de Judas um infiel ao projeto
do Reino de Deus. Quem não faz aliança com o grupo de Jesus
faz aliança com seus opositores. Quem não participa do
banquete de Jesus, participa de outro banquete. Não há
neutralidade: ou se escolhe a vida ou, a morte (Dt 30,15-20).
Judas tem nas mãos a vida e a morte e escolhe a morte,
rompendo a Aliança. Na verdade, é à mesa que Judas confirma
não ter tido comunhão com Jesus e com seu grupo, durante o
ministério e durante os ensinamentos
4
.
Outrossim, a atitude de Judas expressa a total contradição de
comungar do pão e não do projeto de Jesus. O banquete
eucarístico desponta, portanto, como elemento de
discernimento na vida dos cristãos. Alimento de Jesus, também,
para os fracos, excluídos, rejeitados e não prêmio para os bons,
como assegurou o Papa Francisco: A Eucaristia não é um
prêmio para os bons, mas remédio para os fracos. E declara que
o Reino de Deus é uma festa: Por isto peçamos que dê de
comer a todos nós. Dar de comer aquele alimento espiritual que
4 Cf. Isidoro MAZZAROLO,
Lucas em João
, p.91.
70
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nos fortifica, à mesa na Eucaristia, mas também dar de comer a
todos, neste mundo onde o reino da fome é tão cruel
5
.
Atualmente, presenciamos cristãos clamando: Queremos
Eucaristia...; Estou com saudade de comungar...; Tenho
direito a Eucaristia .... O que esses
gritos
estão revelando? Uma
experiência eucarística, como memorial da vida em abundância
levado a cabo por Jesus até a cruz, ou a experiência de um
alimento espiritual, sem implicância religiosa, social e política
no mundo? Jesus, ao se despedir dos discípulos, garante a
unidade dEle com o Pai: Eu e o Pai somos Um (Jo 10,30). Os
cristãos, ao participarem do banquete eucarístico, se tornam
outro Cristo? Quem vê os cristãos comungarem, entrarem na
filha da Eucaristia todos os domingos, como imagina sua
atuação moral, ética, social e política ... durante a semana?
A Eucaristia é o desejo trinitário de um mundo de
fraternidade e de justiça. Segundo Gustavo Gutiérrez, a unidade
profunda das diferentes significações que o termo
koinonia
tem
no Novo Testamento poderia se resumir em três realidades. Em
primeiro lugar, a partilha dos bens necessários à existência
terrestre. Não deixeis de fazer o bem e compartilhar os bens,
por que esses são os sacrifícios que agradam a Deus (Hb 13,16;
At 2,44; 4,32). É assim um gesto concreto de caridade fraterna.
Por isso, Paulo utiliza esta palavra para se referir à coleta em
favor dos cristãos de Jerusalém. Esses glorificam a Deus pela
generosidade de sua comunhão com eles e com todos (2Cor
9,13; 2Cor 8,3-4; Rm 15,26-27). Em segundo lugar, a
koinonia
designa também a união dos fiéis com Cristo, por meio da
Eucaristia: O cálice da bênção que abençoamos, não é a
comunhão com o sangue de Cristo? E o pão que partimos não é
comunhão com o Corpo de Cristo? (1Cor 10,16).
Koinonia
significa, finalmente, a união dos cristãos com o
Pai
: Se
5 Disponível em: https://noticias.cancaonova.com/especiais/pontificado/francisco/
eucaristia-nao-e-premio-para-os-bons-e-remedio-para-os-fracos-diz-papa/.
Acesso em 14 de maio de 2020.
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dizemos que estamos em comunhão com Ele e caminhamos nas
trevas, mentimos e não procedemos conforme a verdade ((1Jo
1,3.6); com o
Filho
: Pois fiel é Deus, por quem fomos
chamados à comunhão com seu Filho (1Cor 1,9; 1Jo 1,3); e
com o
Espírito
: A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de
Deus e a comunhão do Espírito Santo esteja com todos vós
(2Cor 13,13; Fl 2,1)
6
.
A fraternidade humana, portanto, tem seu fundamento na
plena comunhão com as Pessoas Trinitárias. O laço que une a
realidade divina com a humana é recordado e anunciado
eficazmente na Eucaristia. Significa que, sem um real
compromisso contra os mecanismos de opressão e de
alienação, e, portanto, a favor de uma sociedade igualitária e
justa, a celebração eucarística é um ato vazio. Fazer memória
de Cristo é mais que realizar um ato cultual; é aceitar viver sob
a perigosa profecia da cruz e da esperança da ressurreição. É
aceitar o sentido de uma vida que chegou até a morte,
dAquele que passou pelo mundo fazendo o bem e foi
reconhecido pelo centurião romano, como realmente Filho de
Deus (Mc 15,39).
Um texto de São Mateus é claro a respeito da relação entre
culto e fraternidade humana. Portanto, se estiveres para trazer a
tua oferta ao altar e ali te lembrares de que o teu irmão tem
alguma coisa contra ti, deixa a tua oferta ali diante do altar e vai
primeiro reconciliar-te com o teu irmão; e depois virás
apresentar a tua oferta (Mt 5,23-24). Não se trata do problema
de uma consciência escrupulosa e sim de viver segundo as
exigências do amor. Significa que ser causa de queda da
fraternidade humana desqualifica para participar da celebração
do Senhor. Porque a celebração com o Senhor é a mais pura
manifestação do amor da família humana e cósmica. Por isso, o
Evangelho de Mateus insiste na necessidade do perdão infinito
6 Cf. Gustavo GUTIÉRREZ,
Teologia da libertação
, p.325.
72
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(70 vezes 7), porque com as relações humanas quebradas não há
verdadeiramente banquete eucarístico (Mt 18,21-22).
A comunidade cristã não pode oferecer de maneira autêntica
o sacrifício de Cristo se antes não realizar de modo efetivo, o
preceito do amor ao próximo. Desligar esse sacrifício do amor
ao próximo é a razão das duras críticas dos profetas e do próprio
Jesus. Ora, se o serviço ao próximo estivesse ausente, neste caso,
a oração e toda a liturgia, como também o falar de Deus, não
passariam de falsidade e hipocrisia. Assim entendia São Paulo,
por isso, antes de relatar a instituição da Eucaristia, assinala a
condição necessária para fazer parte do banquete. É o que
critica na comunidade dos coríntios, quando de suas reuniões
para celebrar a ceia do Senhor (1Cor 11,17-34; Tg 2,1-4)
7
.
Da mesma forma, o biblista Isidoro Mazzarolo realça que a
Eucaristia é uma festa, uma reunião e uma refeição. Na sua
etimologia é uma ação de graças. Ela não pode suportar a
contradição, nem ser uma simples memória do passado, mas a
historicização do compromisso, da aliança com outro e com o
mundo na dinâmica de Cristo. A dimensão escatológica da
Eucaristia como banquete perfeito não se separa jamais na mesa
do mundo. É aqui na história de nossos dias, no tempo presente,
na criação que geme e sofre em dores do parto (Rm 8,22) que a
salvação acontece. É o compromisso na história que constrói a
libertação. Ela exige uma comunhão com os pobres do mundo
(Lc 6,20-23)
8
.
3 Banquete da vida: Tomai e comei
É na refeição que Jesus se despede antes de enfrentar o
sacrifício do Calvário e da Cruz. Sua despedida não foi uma
negação de sua vida, mas a entrega total dela para que os sinais
do Reino de Deus possam estar presentes na realidade histórica.
7 Cf. Gustavo GUTIÉRREZ,
Teologia da libertação
, p.323.
8 Cf. Isidoro MAZZAROLO,
Lucas em João
, p.94.
ZANINI, Rogério L.; MEOTI, Claudir.
Eucaristia: fonte e cume da vida cristã
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A sua ausência física não será sinal de distanciamento ou de
abandono, pelo contrário, será sinal de proximidade e de
aconchego. Alias, Ele permanece vivo entre nós nas espécies do
pão e do vinho que, quando transubstanciados pela ação do
Espírito Santo, se tornam seu próprio Corpo e Sangue. A
transformação do pão e do vinho no Corpo e Sangue do
Senhor não é um fim em si mesma, mas tem por finalidade
fazer a Igreja, isto é, transformá-la no corpo místico
9
. Quer
dizer, o corpo sacramental está orientado à nossa
transformação em um só corpo, o corpo eclesial
10
.
É no banquete da vida que, pela atuação do presbítero
in
persona Christi
, acontece essa ação do Espírito Santo sobre os
dons do pão e do vinho. Mais especificamente, é em virtude da
prece eucarística pronunciada sobre eles, que os elementos da
ceia se transformam substancialmente, de forma que como
declara solenemente Justino não são mais um pão comum,
nem uma bebida comum, mas a carne e o sangue daquele Jesus
que se encarnou
11
.
É fundamental perceber que a ação do Espírito Santo não se
dá só sobre os dons do pão e do vinho, mas também, sobre os
fiéis que participam da celebração Eucarística.
Enquanto a epiclese sobre as oblatas pede a Deus Pai que mande o
Espírito Santo para que transforme o pão e o vinho no corpo e no
sangue do Senhor Jesus, a epiclese sobre os comungantes pede,
para quem se prepara para fazer a comunhão, a transformação em
um só corpo. Os dois pedidos não são independentes, mas
constituem, de fato, uma única e mesma súplica
12
.
Assim, ao dizer aos apóstolos
tomai e comei
, Jesus está lhes
confiando o alimento salutar que os manterá fiéis na
9 Cesare GIRAUDO,
Redescobrindo a Eucaristia
, p.8.
10 Cesare GIRAUDO,
Redescobrindo a Eucaristia
, p.11.
11 Cesare GIRAUDO,
Redescobrindo a Eucaristia
, p.22.
12 Cesare GIRAUDO,
Redescobrindo a Eucaristia
, p.47.
74
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continuidade da sua missão de anunciar o Reino de Deus. Da
mesma forma, continua a dizer aos que participam da ceia
eucarística que a Eucaristia é o
sinal
por excelência daqueles que
fazem o bem, nutridos do projeto vivido por Jesus, que tem a
defesa da vida sempre em primeiro lugar. Portanto,
tomai e
comei
é comprometer-se em ser no mundo um discípulo fiel de
Jesus, tendo os mesmos sentimentos de Cristo Jesus (Fl 2,5).
Porque, pela Eucaristia, Ele habita em nosso ser para sermos no
mundo um com Ele.
Jesus é Deus-por-nós, Deus-conosco, Deus-em-nós. Jesus é Deus
dando-se completamente, vertendo-se por nós sem qualquer
reserva. Jesus não se apega a suas próprias posses. Ele dá tudo que
existe para dar. Comei, bebei, este é o meu corpo, este é meu
sangue... este sou eu para vós!
13
.
É o gesto tão simples e cotidiano de reunir-se em torno da
mesa para a refeição que Jesus transforma em baquete da vida.
Ao tomar o pão e o vinho e dizer que esses serão sinais eternos
de sua presença viva entre nós, Jesus torna célebre um ato
comum, mas que revela a essência do existir. A Eucaristia é um
gesto humano que se tornou divino pela ação de Jesus, mas que
deseja humanizar ainda mais as relações entre as pessoas que, ao
participar deste banquete, se comprometem a fortalecer a
comunidade, a amizade, a paz, o amor, a justiça, a esperança.
Enfim, o desejo de um mundo novo, em que realmente Deus
seja tudo em todos (1Cor 15,28c).
É no ato de dar-se de Jesus que o pão e o vinho se
transformam pela ação do Espírito Santo em Corpo e Sangue.
Isso é Eucaristia. Assim se entende melhor que o sacrifício é
parte integrante da ação de Jesus para a edificação do Reino de
Deus e a salvação da humanidade. É nesse sentido que a
participação na Eucaristia só se torna plena se a vida se tornar
13 Henri J. M. NOUWEN,
Com o coração em chamas
, p.54.
ZANINI, Rogério L.; MEOTI, Claudir.
Eucaristia: fonte e cume da vida cristã
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Eucaristia: comunhão com Deus e comunhão com os irmãos.
Esta comunhão, pode-se dizer que está no mais íntimo
desejo de Deus. No entanto, Deus respeita a liberdade e o
tempo de cada ser humano. Ninguém é forçado! É verdade que
Deus vai aos extremos do amor para tocar o coração humano.
Comunhão é o que Deus quer e o que nós queremos. É o
clamor mais profundo de Deus e de nosso coração, porque
fomos feitos com um coração que só pode ser satisfeito por
quem o fez. Deus criou em nosso coração um desejo por
comunhão que ninguém além de Deus pode e quer realizar.
Deus sabe disso. Nós, raramente
14
.
A Eucaristia é a comunhão com Deus por excelência. Por
ela se pertence ao Reino de Deus: Quem comer deste pão
viverá eternamente (Jo 6,51b). Mas ela não é fim em si mesma,
pois remete à missão de continuar a obra de Deus, a qual só será
completa no fim dos tempos. A cada ação em defesa da vida se
realiza mais comunhão com Deus e mais concorpóreos de
Cristo nos tornamos. Revela-se, desta forma, que é Ele que está
agindo no ser humano levando a pleno efeito a participação da
humanidade no banquete da vida.
A presença real não nos foi dada só para que possamos adorar a
Cristo sob as espécies eucarísticas; a comunhão não nos foi dada
principalmente para que possamos encontrar e receber no coração
o amigo Jesus, a quem fazemos, por alguns instantes, uma
fervorosa e afetuosa companhia. O Senhor não instituiu a
eucaristia em função de nossos olhos que a contemplam. Ele a
instituiu em função de nossas bocas que se nutrem dela: instituiu-a
para que a comêssemos
15
.
É em torno da mesa do altar que se estabelece comunhão
com Deus e através da comensalidade do Corpo e do Sangue de
Cristo, que Ele vai assumindo a vida de quem se deixa contagiar
14 Henri J. M. NOUWEN,
Com o coração em chamas
, p.57-58.
15 Cesare GIRAUDO,
Redescobrindo a Eucaristia
, p.49.
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por seu ensinamento. Então, no dizer de São Paulo, já não sou
eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim (Gl 2,20). De tal
maneira que as ações dos comungantes devem estar em
continuidade com as ações de Cristo, especialmente nos gestos
de partilha e de defesa da vida. Essa é a verdadeira comunhão
com Jesus: sermos como Ele, Bom Pastor, samaritano,
misericordioso, humilde, justo, coerente, ético...
As primeiras comunidades cristãs (séculos I e II) tinham bem
claro esse sentido do ser cristão e de viver a Eucaristia. Isso nos
é confirmado pelo testemunho de Justino (martirizado em 165).
Depois, os que estão na abundância e querem dar, dão por livre
escolha o que cada um deseja, e o que é recolhido, é depositado
aos pés de quem preside; e ele mesmo socorre os órfãos e as viúvas
e os que são negligenciados por enfermidade ou por outra causa e
os que estão no cárcere e os que estão de passagem como
forasteiros; numa palavra, faz-se protetor de todos os que estão em
necessidade
16
.
É a partir da experiência vivida pelas primeiras comunidades
cristãs que São Basílio chama a atenção sobre a relação entre a
liturgia e o compromisso ético, a oração e a ação, já que são
dois modos complementares e interdependentes de se viver a fé:
sem liturgia é difícil que se dê verdadeiro compromisso ético;
sem compromisso ético é impossível que haja verdadeira
liturgia. A partir dessa compreensão, a Eucaristia, que tem em
sua essência a transformação
num só corpo
, é vertical e horizontal
ao mesmo tempo. A dimensão vertical, nosso direcionamento
e atenção a Deus, encontra sua verificação natural na dimensão
horizontal, em nosso direcionamento e atenção àqueles de
quem devemos fazer-nos próximos
17
.
No dizer de Cesare Giraudo: uma Eucaristia sem a vontade
de assumir compromissos éticos sobretudo com o próximo
16 JUSTINO,
Apologia
67,6-7.
17 Cf. Cesare GIRAUDO,
Redescobrindo a Eucaristia
, p.57.
ZANINI, Rogério L.; MEOTI, Claudir.
Eucaristia: fonte e cume da vida cristã
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é, para quem dela participa, uma eucaristia nula. Sem
compromissos operosos, o culto se torna um passatempo
cômodo, um culto vazio, uma aparência de culto
18
, semelhante
aos cultos criticados pelo profeta Isaías (Is 1,14) e pelo profeta
Amós (Am 5,21-23).
Tomai e comei é permitir e contribuir para que a ação de
Deus na história continue a partir de mulheres e homens
comprometidos com o testemunho dos valores do Evangelho.
A humanidade não pode ser espectadora da história! Deus conta
conosco, por isso Ele nos deu olhos para ver, ouvidos para
ouvir, mãos para atuar. Nossos olhos devem ser os olhos com
que Deus vê as necessidades, nossos ouvidos, os ouvidos com
que Deus escuta os lamentos, nossas mãos, as mãos de que Deus
se serve para vir em socorro
19
. Assim, nossas eucaristias
atingem sua plenitude porque conduzem os fiéis à ação diante
da realidade, vivendo uma profunda experiência de pertencer
ao Senhor.
Por isso, é preciso redescobrir a Eucaristia como fonte e
ápice da vida cristã, no sentido de transformar os seguidores de
Cristo em pessoas apaixonadas pelo projeto do Reino de Deus.
Desta forma, o amém confessado publicamente ao entrar na fila
da comunhão vence a perspectiva individualista, e empurra os
cristãos a assumirem decididamente o estilo de vida de Jesus
crucificado-ressuscitado.
Conclusão
A Eucaristia, como fonte e cume da vida cristã, foi acolhida
maravilhosamente pelo Concílio Vaticano II (LG 11). Depois
de séculos de história, que cristalizou o banquete de Jesus em
uma refeição quase mágica e distante da realidade do povo, o
Concílio resgatou a centralidade do memorial eucarístico de
18 Cf. Cesare GIRAUDO,
Redescobrindo a Eucaristia
, p.57.
19 Cesare GIRAUDO,
Redescobrindo a Eucaristia
, p.57-58.
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Cristo. O resgate da Eucaristia como banquete do amor de
Cristo é, em consequência, o alimento missionário para os
cristãos
eucaristizar
o mundo. Conforme o Papa Francisco:
Na Eucaristia vemos que, no apogeu do mistério da Encarnação, o
Senhor quer chegar ao nosso íntimo através dum pedaço de matéria.
() [Ela] une o céu e a terra, abraça e penetra toda a criação. Por
isso, a Eucaristia pode ser fonte de luz e motivação para as nossas
preocupações pelo meio ambiente, e leva-nos a ser guardiões da
criação inteira. Assim, não fugimos do mundo, nem negamos a
natureza, quando queremos encontrar-nos com Deus (QA 82).
Este alimento, no entanto, não produz apenas uma
transformação da pessoa, mas, como sacramento da unidade,
Cristo nos uniu - aprofunda as relações de fraternidade entre
os cristãos e sua relação com o mundo. O empenho em
participar dignamente deste sacramento se atualiza no
relacionamento com as pessoas. No trabalho diário se continua
o sacrifício do altar, o qual se prolonga, desse modo, na vida.
Frequentemente, é mais difícil realizar o sacrifício de oferta no
cotidiano, dos conflitos, diante das dificuldades, do que celebrá-
lo dentro de uma Igreja.
A reflexão fez perceber a centralidade das refeições na
prática de Jesus. Urge como desafio voltar às narrativas bíblicas
para redescobrir sempre de novo o frescor da prática de Jesus na
vida cristã. Caminho que faz compreender a Eucaristia dentro
da dinâmica geradora de vida, porque traz imbuída a reconciliação,
a fraternidade, a justiça e o desejo de vida plena. A pandemia
parece ter possibilitado a redescoberta da oração familiar, seja
em torno da mesa antes das refeições, seja à noite. Perspectiva
que vem ao encontro dos desafios levantados e impulsionados
pelas novas diretrizes da ação evangelizadora do Brasil.
A Eucaristia é alimento processual do caminhante que se
deixou transformar pela Palavra de Deus. Basta recordar a
narrativa dos discípulos de Emaús para perceber o processo de
ZANINI, Rogério L.; MEOTI, Claudir.
Eucaristia: fonte e cume da vida cristã
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evangelização realizado por Jesus antes de celebrar a refeição
(Lc 24,13-35). Caminhou em silêncio, fez perguntas, ouviu
atentamente as decepções, dialogou, falou a partir das
Escrituras, fez memória histórica... Não foi esse
gastar tempo
determinante para que os discípulos compreendessem o projeto
de Jesus e o convidassem a ficar com eles? Nesse caso, a refeição
não foi a porta de entrada, utilizada por Jesus para evangelizar,
mas um momento especial preparado no caminho. Por isso,
com razão dizem os bispos nas Diretrizes Gerais da Ação
Evangelizadora da Igreja no Brasil: a pedagogia do processo
mais do que um recurso metodológico, é uma mística
profundamente enraizada na espiritualidade cristã
20
.
Essa consideração dos bispos vem validar a necessidade de
gastar tempo nos processos de evangelização, como também,
vem insistindo o Papa Francisco: Dar prioridade ao tempo é
ocupar-se
mais
com
iniciar processos do que possuir espaços
(EG 223 grifos do Papa). Nos processos, os evangelizadores
contraem assim o cheiro das ovelhas, e estas escutam a sua voz.
Em seguida, a comunidade evangelizadora dispõe-se a
acompanhar (EG 24). Mais uma proposta pós-pandemia: fazer
processo de evangelização, gastar tempo na missão.
Por isso, a Eucaristia, enquanto fonte e ápice da vida e
missão da Igreja, deve traduzir-se em espiritualidade, em vida
segundo o Espírito (Rm 8,4s; Gl 5,16.25). E nesse viver
segundo o Espírito se fundamenta a missão da Igreja no seio da
história: Uma Igreja autenticamente eucarística é uma Igreja
missionária
21
. É no seio desta experiência eclesial que se
compreende que durante a pandemia, apesar das portas da
Igreja/templos fechados houve muito envolvimento de vivência
20 CNBB:
Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2019-2022
, n.204.
21 BENTO XVI.
Exortação apostólica pós-sinodal
. Sacramentum Caritatis.
Disponível em: http://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/apost_exhortations/
documents/hf_ben-xvi_exh_20070222_sacramentum-caritatis.html. Acesso em
15 de maio de 2020, n.84.
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eucarística. Haja visto as diferentes iniciativas nos gestos de
doação, solidariedade e distribuição de alimentos, roupas e
outros auxílios para imigrantes, desempregados e necessitados
em geral. São testemunhos que cimentam a relação intrínseca
entre Eucaristia e vivência de amor ao próximo. Talvez esse seja
um grande apelo pós-pandemia!
A Eucaristia, reforçamos, é a fonte e o ápice da vida da
Igreja. Sem ela não formamos a Igreja de Cristo, mas também,
se não formos pessoas eucaristizadas, ela não se plenifica em nós
e corremos o risco de ser apenas alguém que comunga, mas não
vive a comunhão. Outro desafio recorrente: eucaristizar o
mundo!
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LITURGIA DAS EXÉQUIAS
EM TEMPOS DE PANDEMIA
Dr. Pe. Clair Favreto*
DOI: https://doi.org/10.52451/teopraxis.v37i129.10
Recebido: 06 de janeiro de 2019 | Aprovado: 04 de maio de 2019
Resumo:
O presente artigo faz uma relação entre o significado da Liturgia,
mais precisamente da Liturgia das exéquias, com seus ritos e, ao mesmo
tempo, em relação a este tempo particular que a humanidade está vivendo,
que é um tempo de pandemia. Serão resgatados os principais elementos do
ritual das exéquias e de sua importância para acompanhar o irmão falecido,
mas que foram dificultados pelo isolamento social provocados pela
pandemia. O artigo também reflete algumas questões ligadas à morte
iluminadas por alguns documentos da Igreja que trazem presente a teologia
na vida eterna.
Palavras-chave:
Liturgia. Exéquias. Páscoa. Morte. Igreja.
Acompanhamento. Pandemia.
Introdução
No primeiro parágrafo da Instrução Geral do Ritual das
Exéquias (IGRE), também chamada de Introdução Geral,
Instrução Geral ou
Preanotanda
, encontramos a seguinte
afirmação: A Igreja celebra com profunda esperança o Mistério
Pascal de Cristo nas exéquias de seus filhos, para que eles,
incorporados pelo Batismo a Cristo morto e ressuscitado,
passem com Ele da morte à vida (IGRE 1).
Esta afirmação teológica presente na
Preanotanda
nos ajuda a
entender e alimentar a nossa fé de que a vida é sempre voltada
para o eterno. Celebrar as exéquias, portanto, é viver
* Padre da Diocese de Erexim. Professor da Itepa Faculdades nas disciplinas de Liturgia
e Sacramentos. Reitor do Seminário São José Passo Fundo. Doutor em Liturgia
pelo Instituto de Liturgia Pastoral Pádua/Itália. Email: clairfavreto@hotmail.com
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profundamente esta verdade afirmada pela Igreja: a morte nos
faz mergulhar definitivamente no Mistério Pascal de Cristo.
Esta ideia vai ser pano de fundo deste artigo que, ao mesmo
tempo, quer relacionar ao contexto de epidemia pela qual
estamos passando.
Num primeiro momento é importante resgatar a origem das
palavras do enunciado. Em seguida, será feita uma relação
paralelo entre o significado do acompanhamento que nos
propõe o atual Ritual das Exéquias e a situação de isolamento
que a pandemia tem provocado. Por fim, trazendo presente
algumas questões ligadas à morte, o artigo procura resgatar a
teologia da Igreja presente na instrução e nas orações do atual
Ritual das Exéquias.
1 Recuperando o sentido etimológico do enunciado
O título enunciado é
Liturgia das Exéquias em tempos de
pandemia
. Antes de tudo, convém fazer um rápido resgate do
sentido etimológico das palavras que compõem o enunciado
para, posteriormente, fazer referência ao que elas implicam para
o contexto da atual pandemia.
a) Liturgia
O termo Liturgia tem sua origem na língua grega
λειτουργία
(Leitourghía) e é formado por outros dois termos:
λαός
(
leitos
) = povo (público) e
εργoυ (ergon - érghein) = ação
(obra) ou (erg-ia) (sufixo) = trabalho
. É desta combinação que
surge o substantivo
leitourghía
, que significa
ação
ou
serviço
prestado em favor de um povo, um serviço prestado para o bem de
um povo
. Do substantivo
leitourghía
podemos chegar ao verbo
leitourghein
, que significa
exercer função pública
ou exercer um
serviço público.
FAVRETO, Clair.
Liturgia das Exéquias em tempos de pandemia
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b) Exéquias
Já o termo
exéquias
vem do latim =
ex-sequi
,
ex-sequiae
e
significa seguir,
acompanhar
, estar presente...
Exéquias
, portanto,
é uma série de
ritos e orações
pelas quais a comunidade cristã
acompanha
os seus defuntos e os
encomenda
à bondade de Deus.
Em todas as épocas da história e da cultura é possível
perceber que todos os povos, através de ritos dos mais variados e
expressivos,
acompanhavam
seus entes queridos até os locais de
suas sepulturas. Nas diversas culturas e religiões faz-se com
orações e ritos, com os quais se quer exprimir o apreço pelo
defunto, a recordação que dele se vai continuar a ter, a petição à
divindade para que o tenha na sua paz ou, inclusive, a ajuda que
se lhe quer dar na sua viagem para a eternidade
1
. A maioria dos
povos também realiza rituais de recordação e de veneração de
seus antepassados mortos, principalmente em datas importantes.
Em algumas culturas ou países, o termo usado para as
cerimônias de sepultura é chamado de funeral (do latim
funus
,
funeris
) que significa a cerimônia ou o ofício religioso realizado
em torno dos defuntos ou para os defuntos. É dali que se
originam os termos
fúnebre
(diz respeito ao óbito);
funerária
(empresa, equipe ou organização que realiza os atos fúnebres);
aviso fúnebre
(anúncio da morte de alguém).
Outro termo usado e que se aproxima dos rituais de
exéquias é
sufrágio
. Este termo, vem do latim
suffragium
,
suffragari
e daí a raiz verbal
frangere
que significa partir, romper.
Neste sentido, o termo
sufrágio
quer significar os atos litúrgicos
que se realizam em favor dos defuntos.
Os cristãos, desde o início, também faziam seus rituais
fúnebres pelos seus irmãos e irmãs falecidos. O primeiro relato,
o encontramos no sepultamento de Estevão: Algumas pessoas
piedosas sepultaram Estêvão e guardaram luto solene por ele
(At 8,2). Os cristãos praticavam estes rituais de sepultamento
1 José ALDAZÁVAL,
Vocabulário básico de Liturgia
, p.126.
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porque tinham a firme esperança na ressurreição dos mortos,
isto é, eram convictos de uma
esperança pascal
. Irmãos, não
queremos deixar-vos na ignorância quanto aos que
adormeceram, pra que não fiqueis tristes como os outros, que
não tem esperança. Com efeito, se cremos que Jesus morreu e
ressuscitou, cremos igualmente que Deus, por meio de Jesus,
reunirá consigo os que adormeceram (1Ts 4,13-14).
O Concílio Vaticano II (1962-1965), fazendo uma releitura
das fontes primeiras da Igreja, assim se exprime: A Igreja dos
viandantes, desde os primeiros tempos do cristianismo, venerou
com grande piedade a memória dos defuntos e ofereceu
sufrágios
por eles (LG 50). E o novo ritual da Exéquias, que
também é fruto da Reforma Litúrgica da Igreja do Vaticano II,
afirma: A Igreja oferece pelos defuntos o Sacrifício Eucarístico,
memorial da Páscoa de Cristo, eleva orações e faz
sufrágios
por
eles, para que, pela comunhão de todos os membros de Cristo,
todos aproveitem os frutos da liturgia: auxílio espiritual para os
defuntos, consolação e esperança para os que choram a morte
(IGRE 1).
Como podemos perceber, a Igreja, desde o início e ao longo
de toda a sua história, através da celebração do rito com o corpo
presente,
acompanha
os seus filhos até o fim e realiza a entrega
destes seus filhos a Deus.
c) Pandemia
O termo pandemia é bastante novo para a maioria de todos
nós. De origem grega, o termo
πανδήµιος
deriva de
pan
(todo,
tudo) e
demos
(povo). Neste sentido, pandemia significa
todo o
povo
. Outros significados que se aproximam: Doença
infecciosa e contagiosa que se espalha muito rapidamente e
acaba por atingir uma região inteira, um país, um continente, o
universo; é o aumento anormal do número de pessoas
contaminadas por uma doença, numa região determinada, num
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país e no mundo; é uma epidemia que se espalhou
geograficamente, saindo do seu lugar de origem, especialmente
falando de doenças contagiosas que assolam praticamente o
mundo inteiro: pandemia de Covid-19
2
. Uma pandemia
(
πανδήµιος = de todo o povo
) é uma epidemia de doença
infecciosa que se espalha entre a população localizada numa
grande região geográfica como, por exemplo, um continente,
ou mesmo por todo o planeta Terra
3
.
Uma síntese bem interessante para entender a pandemia foi-
me apresentada pelo amigo Luciano Mello, médico, professor,
consultor e gestor hospitalar. A pandemia, o Dr. Mello a define
como uma epidemia (termo já de domínio geral) que se
estenda geograficamente por grandes regiões, ignorando
fronteiras, e, em especial, que atinja os cinco continentes com a
ocorrência, em todos eles, de novos casos cuja origem não se
possa detectar fora da região. Assim, é importante entender-se
que toda pandemia é uma epidemia, mas nem toda epidemia é
pandêmica.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS),
uma pandemia pode começar quando se reúnem estas três
condições: a) O aparecimento de uma nova doença na
população; b) O agente infecta humanos, causando uma doença
séria; c) O agente espalha-se fácil e sustentavelmente entre
humanos
4
.
2 Acompanhamento x isolamento
No resgate etimológico das palavras Liturgia e Exéquias fica
claro o que a
Liturgia das Exéquias
é o rito que a Igreja realiza
para
acompanhar
o seu filho até o seu sepultamento. O
Catecismo da Igreja Católica também ressalta este aspecto
2 https://www.dicio.com.br/pandemia/ Acesso em 8/7/2020.
3 https://pt.wikipedia.org/wiki/Pandemia Acesso em 8/7/2020.
4 https://pt.wikipedia.org/wiki/Pandemia Acesso em 8/7/2020.
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importante do
acompanhamento
; A Igreja, que, como mãe,
trouxe sacramentalmente em seu seio o cristão durante sua
peregrinação terrena,
acompanha-o
ao final de sua caminhada
para entregá-lo às mãos do Pai. Ela oferece ao Pai, em Cristo,
o filho de sua graça e deposita na terra, na esperança, o germe
do corpo que ressuscitará na glória. Esta oferenda é plenamente
celebrada pelo Sacrifício Eucarístico... (CIC 1683).
O Novo
Ordo Exsequiarum
(Novo Rito das Exéquias),
promulgado em 1971, resgata alguns elementos importantes
dos pontos de vista teológico e litúrgico que podem ser
encontrados na eucologia (estudo das orações), nas rubricas, na
simbologia, nos diversos ambientes das exéquias (casa, igreja,
cemitério) e que servem para este ato de
acompanhar
o irmão da
comunidade até a deposição de seu corpo.
a) Um verdadeiro ato de acompanhar
O ritual das Exéquias da Igreja Católica propõe o ato de
acompanhar
em duas direções: a primeira, está voltada ao defunto,
isto é, ao filho que partiu e que a Igreja quer
acompanhar
a fim de
entregá-lo a Deus; a segunda, volta-se aos mais próximos dele,
ou seja, a Igreja dirige uma palavra de conforto aos presentes no
funeral, através de todo o rito que vai acontecendo.
O novo ritual propõe três esquemas. O primeiro envolve
três lugares: a casa do defunto, a igreja e o cemitério. Destes três
lugares podemos resgatar os seguintes aspectos que mostram a
presença da Igreja numa atitude de
acompanhamento
do defunto
e de sua família.
Ao ver o familiar partir, lá está a presença da Igreja através
de um ministro (ordenado ou não) ou de algum cristão que
marca presença e
acompanha
(consola) a família;
O velório é
acompanhado
da récita do rosário, de orações, de
cantos e de celebrações da Palavra...;
Em algumas comunidades, as famílias se revezam para
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acompanhar
os familiares enlutados durante o velório, mesmo
passando noites inteiras e frias junto a eles que velam o seu
ente querido;
Durante o fechamento do caixão e seu translado até o templo
(Igreja), lá está a presença da Igreja que
acompanha
e ora;
Na celebração pública e comunitária, a Igreja celebra a
Liturgia da Palavra onde encontra a luz de Deus para a dor,
para o sofrimento e para a morte, e a Liturgia Eucarística
onde oferece o Sacrifício em sufrágio do irmão que partiu; a
celebração eucarística manifesta a vinculação da morte do
cristão com o mistério pascal de Jesus Cristo
5
;
No cortejo até o cemitério, a Igreja
acompanha
o cristão com
sua dor e oração;
Junto à sepultura lá está a Igreja através de seus ministros e
da comunidade para abençoar o lugar que abrigará o corpo
do falecido.
Desde sua partida, passando pela celebração de corpo
presente até o seu sepultamento, a Igreja
acompanha
os seus
filhos. O que o ritual propõe vai além de uma simples
cerimônia de encomendação de defuntos durante o velório. É
toda uma
dinâmica pascal de acompanhamento
para que o irmão
falecido seja acolhido à morada definitiva junto de Deus. O
novo ritual também expressa que a celebração das exéquias é
um direito do cristão e um dever dos ministros da Igreja e da
comunidade eclesial para com os irmãos falecidos.
Neste primeiro esquema, a Igreja procurou manter uma
prática existente já há muito tempo e que acontece ainda hoje,
5 Segundo o Ritual das Exéquias, a Missa exequial é proibida no Tríduo Pascal, nas
solenidades de preceito e nos domingos do Advento, da Quaresma e da Páscoa.
Quando a Missa exequial não é permitida, pode-se usar uma leitura dentre
aquelas que estão incluídas no Leccionário dos Defuntos, a não ser que seja um
dia do Tríduo Pascal, do Natal do Senhor, da Epifania, da Ascensão, do
Pentecostes, do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo ou outra solenidade de
preceito (IGRE 6).
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sobretudo nas famílias e comunidades rurais.
A urbanização rompeu com vários aspectos destes ritos. Para
isso, o novo ritual propõe um segundo esquema através de dois
momentos: na capela mortuária (geralmente próxima ou junto
ao cemitério) e na sepultura.
Na capela mortuária geralmente é realizada uma Celebração
da Palavra exequial. Este segundo momento não oferece a
Celebração Eucarística. Ela se realizará posteriormente sem a
presença do corpo do falecido. É o que geralmente acontece
com as missas de sétimo dia. Não houve missa de corpo
presente, mas é celebrada a missa na intenção do irmão que
faleceu, próximo ao sétimo dia de seu falecimento.
Através dos ritos de encomendação e de sepultamento, a
Igreja mostra sua presença e
acompanha
com suas orações o
irmão que morreu.
Nos cantos e orações que trazem em sua teologia o caráter
pascal;
Na Celebração da Palavra que resgata a presença de Cristo
na hora da dor e da morte;
Nos sinais sacramentais como a água, a luz, a cruz, as flores,
que resgatam os Sacramentos celebrados durante a vida,
sobretudo pelos sinais do Batismo;
Nos gestos sacramentais, principalmente os de aspergir e
incensar, que purificam o corpo e o abençoam;
No fechamento do caixão e na despedida dos familiares e
amigos;
No cortejo até a sepultura cantando e orando;
Na oração junto à sepultura e na benção da mesma.
Mesmo neste esquema mais simplificado, o ritual traz a
presença da Igreja que
acompanha
, na fé, na presença e na
oração, o seu irmão que partiu.
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O terceiro esquema, mais simplificado ainda, propõe apenas
um ritual de exéquias na casa do defunto. É um ritual pouco
usado, visto que o velório é feito em capelas mortuárias
autorizadas pelas autoridades sanitárias. Mesmo assim, o ritual
traz uma Liturgia da Palavra e orações de encomendação feitas
todas na casa do defunto. Este esquema também mostra a
presença da Igreja que
acompanha
com a oração e a súplica
pedindo que Deus acolha na eternidade o irmão que faleceu.
A pandemia da Covid 19 rompeu com vários elementos
litúrgicos. Em relação às exéquias, a primeira orientação da
CNBB foi a de não mais realizar os ritos fúnebres com missa,
mas apenas uma cerimônia simples de encomendação.
O vírus, além de provocar muitas inseguranças, trouxe
muito medo. Uma boa parte dos padres resistiam em marcar
presença nas celebrações de exéquias. Os que colocaram a
missão acima de suas vidas corriam o risco de serem
contaminados e fato é que muitos padres, diáconos e agentes de
pastoral, perderam suas vidas ceifadas pelo coronavírus.
Em outras situações, como acompanhamos em outros países,
sobretudo em Bérgamo (Itália), os mortos eram carregados em
comboios para serem cremados em cidades vizinhas. Noutros
lugares, os caixões fúnebres eram colocados em valas comuns,
como foi em Hart Island (Nova York) e Manaus, no Brasil. Em
ambos os casos, não foi possível fazer um ritual de
encomendação. A pandemia provocou o distanciamento social.
E, orientados pelas autoridades sanitárias, a Igreja fechou suas
portas, não pode celebrar a vida do irmão que partiu e, em
muitas situações, também não foi possível aspergir o caixão do
falecido e, muito menos, o seu lugar de sepultura.
A pandemia provocou o isolamento social e, este, não
permitiu que a Igreja pudesse fazer um verdadeiro ato de
acompanhamento
tão importante e necessário para encomendar a
Deus a vida do irmão e para consolar e confortar os que
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perderam seu ente querido. A pandemia tirou, pela proibição da
aproximação entre as pessoas, a família e os amigos de
realizaram o ritual de exéquias que permite fortalecer a fé na
esperança da ressurreição final. Embora o costume de enterrar
seus mortos seja algo conatural ao ser humano e os funerais uma
venerável e não inútil tradição cristã, segundo Santo Agostinho,
as exéquias são mais úteis aos vivos do que aos mortos
6
.
A celebração ritual das exéquias permite à família do falecido
amenizar a dor e o sofrimento, ouvir palavras de esperança que
brotam da Sagrada Escritura, dos cantos, das orações, das
palavras do padre e elaborar melhor o luto da morte. Mas tudo
isso foi suprimido, ou na melhor das situações, foi simplificado e
ficou uma lacuna que precisa ser elaborada.
É preciso, como escreve a filósofa italiana Donatella Di
Cesare, fazer um ritual público para elaborar o luto. É
repugnante a modalidade do sepultamento, ferozmente asséptico,
impiedosamente apressado. Incomoda o expurgo da morte na
cidade. [...] Não podemos aceitar que o distanciamento resulte
em um sumário isolamento das vítimas
7
.
O rito nos torna humanos, a pandemia, ao invés, nos
desapropria do luto, escreve a jornalista italiana Concita de
Gregorio num artigo publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos
(IHU). Concita assim afirma: a maior tragédia nesta grande
tragédia são as mortes solitárias. Sobre os funerais ela é mais
incisiva: O rito do funeral nos falta. Porque no funeral a vida toda
passa diante de nós. [...] Quem somos, sem o rito que nos consagra
humanos. E todos, todos conhecemos nestes dias a dor inominável
de não poder viajar para nos despedir do grande amigo
8
.
6 CNBB,
Nossa Páscoa
, p.10.
7 http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/598252-um-ritual-publico-para-elaborar-
o-luto Acesso em 10.7.2020.
8 http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597543-morrer-sozinhos-a-epidemia-
tambem-nos-desapropria-do-luto-o-rito-que-nos-torna-humanos Acesso em
10.7.2020.
FAVRETO, Clair.
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A pandemia rompeu com um elemento importante da vida
cristã que é a celebração das exéquias, momento importante de
passagem, de fé na vida eterna e de elaboração do luto pela
perda do ente querido.
b) O resgate da eclesialidade da liturgia exequial
As celebrações exequiais são sempre celebrações litúrgicas da
Igreja (CIC 1684). O cristão não morre sozinho. Sua partida
está cercada da comunidade dos crentes, a qual, por sua vez,
encarrega-se de encomendá-lo à comunidade eclesial
9
.
Na celebração exequial é a comunidade que está presente
para orar e suplicar a Deus pela vida do irmão falecido. Naquele
defunto deitado no caixão fúnebre está um corpo em que o
Espírito Santo habitou e é este corpo que é chamado à
ressurreição da vida eterna como afirma São Paulo (1Cor 6,19-
20). Portanto, na celebração das exéquias, a Igreja continua
cuidando daquele corpo, pois foi o corpo em que derramou a
água no Batismo, ungiu com óleo dos catecúmenos e dos
enfermos, alimentou com o pão eucarístico, impôs as mãos para
ser crismado e ordenado, abençoou para se unir em
matrimônio, perdoou os seus pecados. Aquele corpo foi
instrumento da eficácia dos sacramentos, uma vez convertido
em cadáver continua sendo objeto de cuidado solícito da mãe
Igreja
10
. É por isso que a Igreja continua aspergindo,
incensando e iluminando aquele corpo e, mesmo sendo o corpo
de um morto, continua tratando-o com respeito. Para a Igreja,
o corpo de um cristão é sagrado, pois é todo o homem, alma e
corpo formando uma unidade vital, que é objeto de salvação
11
.
9 Alfredo POUILLY,
A celebração da morte do cristão
, In: CELAM,
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mistério pascal
, p.214.
10 Alfredo POUILLY,
A celebração da morte do cristão
, In: CELAM,
A celebração do
mistério pascal
, p.214.
11 J. LLOPIS,
Exéquias
, In: Dionísio BORÓBIO (Org.),
A celebração da Igreja 2
:
Sacramentos, p.618.
94
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A celebração exequial resgata, portanto, a dimensão eclesial,
a dimensão comunitária da liturgia. A celebração deixou de ser
ato exclusivo do ministro e adquiriu um tom mais eclesial e
comunitário. Já não se reza apenas pelo defunto, mas também
pelos vivos provados pela dor. A dimensão comunitária faz
parte da identidade cristã, até na hora da morte
12
.
O isolamento social provocado pela pandemia, porém,
rompeu também com toda a dimensão eclesial. A comunidade
cristã não pode mais participar dos rituais. Os próprios avisos de
falecimento afirmavam que a cerimônia seria restrita à família
ou parte dela. Portanto, os vizinhos, os amigos, os colegas de
trabalho e outros tantos, não puderam participar. Como Igreja,
ia apenas o padre e ele fazia tudo sozinho: cantava, invocava as
orações, proclamava os textos da Sagrada Escritura, aspergia...
Mas o padre sozinho não é Igreja. Embora a família poderia ser
considerada igreja, as celebrações exequiais em tempos de
pandemia provocaram muitos questionamentos, pois os
ministérios (leitor, cantor e outros) foram dispensados; vários
sinais simbólicos de exéquias foram suprimidos, as cerimônias
foram simplificadas... e tudo isso rompe com o sentido mais
profundo de toda a liturgia, isto é, de uma assembleia reunida
como Corpo Místico de Cristo, sendo conduzida pelos seus
mais variados ministérios litúrgicos (SC 7).
Passados alguns meses da pandemia, em algumas paróquias
onde as autoridades sanitárias não restringem totalmente o
isolamento social, as exéquias são realizadas apenas no cemitério
e de maneira simples. Depois do falecimento, o defunto é
guardado na funerária ou colocado na capela mortuária do
cemitério que fica fechada a maior parte do tempo. Com
restrições, a família e alguns amigos se reúnem para fazer
velório de duas a três horas. Mais tarde, o padre chega, faz a
encomendação simples e já há a deposição do corpo na
sepultura.
12 CNBB,
Nossa Páscoa
, p.16.
FAVRETO, Clair.
Liturgia das Exéquias em tempos de pandemia
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Revista Teopráxis, Passo Fundo, vol.37, n.129, Jul./Dez./2020, ISSN: 2763-5201
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Como afirmamos anteriormente, a liturgia das exéquias, tão
rica para elaborar um rito de passagem, isto é, de entregar o
irmão a Deus e de sentir a presença das pessoas mais caras do
falecido, fica empobrecida. Tudo é realizado de maneira simples
e rápida pelo medo do contágio do coronavírus. O isolamento
social fere a dignidade de ser Igreja e de realizar a profundidade
e a riqueza que são próprias da liturgia das exéquias: celebrar a
dinâmica pascal.
3 Celebrar as Exéquias é viver a Páscoa de Cristo
A Congregação para o culto divino e os sacramentos,
quando propôs a revisão do ritual de exéquias de 1614, o que
estava em uso, tinha a preocupação de que o novo ritual (1969)
deveria corresponder a duas exigências:
a)
teológica
: que fosse acentuado mais o carácter pascal da
morte cristã, isto é, que a liturgia das exéquias, e toda a
compreensão teológica dela que se encontra na instrução do
próprio ritual, pudesse dar esta atenção a fim de recuperar o
sentido da nossa vida cristã: a vida não termina na morte, ela
continua na eternidade.
b)
antropológica
: o de perceber a diversidade das situações
de acordo com os países, os ambientes e a idade do falecido.
Esta preocupação já tinha sido expressa pela Sacrosanctum
Concilium, que trata da Liturgia, quando da revisão dos ritos
fúnebres disse: as exéquias devem exprimir melhor o caráter
pascal da morte cristã. Adapta-se mais o rito às condições e
tradições das várias regiões, mesmo no que respeita à cor
litúrgica (SC 81). No parágrafo seguinte trata das crianças:
faça-se a revisão do rito de sepultura das crianças
enriquecendo-o de missa própria (SC 82).
96
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Aqui no Brasil, a CNBB produziu um material próprio para
as celebrações exequiais
13
. No capítulo que aprofunda a
celebração cristã da morte, traz a seguinte afirmação:
No início, as exéquias cristãs caracterizavam-se por sua forte
dimensão pascal. No entanto, com o passar do tempo, os cristãos
foram se deixando influenciar por outras ideias e sentimentos.
Perderam a certeza da salvação e passaram a ver a morte como
acontecimento trágico e amedrontador. Esta situação perdurou até
o século XX quando, de novo, a Igreja, por meio do Concílio
Vaticano II, prescreveu que o rito das exéquias deve exprimir
mais claramente a índole pascal da morte cristã (SC 81)
14
.
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II recuperou a
força da expressão o mistério pascal de Jesus Cristo para
significar o ser e a missão de Jesus no mundo e a continuação
da sua obra através da Igreja para, na hora da morte, poder
exprimir o
caráter pascal da morte cristã
.
O subsídio da CNBB, baseando-se no Catecismo da Igreja
Católica e tendo como base as definições do Vaticano II, assim
se expressa: As exéquias não fazem parte nem dos sacramentos
nem dos sacramentais. São celebrações
parassacramentais
. Elas
tem em vista exprimir o
caráter pascal
da morte cristã. Anunciam
à comunidade reunida a vida eterna, ao mesmo tempo que
realçam o caráter de provisoriedade da vida aqui na terra (cf.
CIC 1684-1685)
15
.
Numa outra passagem da Sacrosanctum Concilium
encontramos esta rica relação entre as duas liturgias: aquela que
celebramos agora e a definitiva que virá na glória. Na liturgia
da terra nós participamos, saboreando-a já, da liturgia celeste,
que se celebra na cidade santa de Jerusalém, para a qual nos
encaminhamos como peregrinos, onde o Cristo está sentado à
13 CNBB.
Nossa Páscoa: subsídios para a celebração da esperança
. São Paulo: Paulus, 2003.
14 CNBB,
Nossa Páscoa
, p.11.
15 CNBB,
Nossa Páscoa
, p.7.
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direita de Deus... (SC 8).
Os documentos mencionados nos ajudam a entender que a
Igreja se preocupa com a vida e, ao celebrar as exéquias, quer
ajudar a compreender que a vida é mais do que um corpo físico,
a vida é divina, ela está voltada para o eterno. Desta forma, a
liturgia exequial nos faz mergulhar no Mistério de Cristo e
acreditar que a vida não termina na morte, mas ela é uma
passagem para a vida eterna.
A morte! Ah, a morte! Como compreendê-la? Bem! Não
vamos fazer um tratado teológico-escatológico da morte.
Gostaríamos apenas de trazer duas situações muito presentes na
sociedade de hoje, como duas marcas e que, talvez, as tenhamos
já experienciado. De um lado é possível perceber a negação da
morte. De outro lado, a morte pode ser ocasião de espetáculo.
Estas questões serão confrontadas com a fé cristã e iluminadas
com a vida do Cristo ressuscitado.
a) Negação da morte
De um lado, percebemos que há a
negação da morte
. Na
sociedade atual a morte é vista como um fim tenebroso. Por
isso, se nega a morte ou ao menos a sociedade procura torná-la
o mais ausente possível. Em muitas situações, sobretudo quando
a morte acontece em Unidades Hospitalares de Tratamentos
Intensivos, ela é escondida, pois a família e os amigos não
participam, não
acompanham
a partida do ente querido. Em
outras situações a família somente vê o seu ente querido já
vestido, maquiado, embalsamado... que parece mais uma pessoa
dormindo do que um defunto.
Há situações em que a morte não é revelada como, por
exemplo, quando uma criança perde a mãe, alguém diz que ela
foi passear. Esta criança, todos os dias fica esperando sua mãe
voltar do passeio. No entanto, ela não volta mais. E assim
teríamos outros tantos exemplos.
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Na mesma linha vão as teologias em torno da morte:
chegou a sua hora; Deus quis assim; Deus queria uma
pessoa boa lá no céu... São afirmações que nunca deveriam ser
ditas para justificar a morte de alguma pessoa. Deus não definiu
nem dia, nem hora, nem local, nem situação de morte para
nenhuma pessoa. E, muito menos, Deus não quer mortes
trágicas. Se uma pessoa bebe e dirige, ou dirige em alta
velocidade e de maneira imprudente, esta pessoa está muito
mais suscetível a um acidente com possibilidade de morte dela e
dos ocupantes, do que um motorista prudente e responsável. Se
uma pessoa morre de acidente por imprudência, como podemos
afirmar que chegou a sua hora? Deus não quer que ninguém,
mesmo o mais imprudente motorista, morra de acidente. Por
isso, não tem a hora da morte. A hora, é morrer de idade
avançada e de morte natural. Quando alguma pessoa é
imprudente e não cuida do seu corpo, pode antecipar a sua
morte. Portanto, a hora é cada um que traça e não Deus.
Outra questão que nos intriga é toda esta cultura de
permanecer jovem. Para isso, são ingeridas tantas drogas no
organismo, são injetados tantos anabolizantes e outros produtos
para parecer sempre jovem, com tudo em cima. A vida tem o
seu processo natural. Reconhecer e assumir a morte é admitir os
limites da própria existência, bem como a falência do sistema
contemporâneo, incapaz de saciar uma civilização desejosa de
felicidade e de vida sem limites. Para muitas pessoas, a
experiência da morte continua sendo uma ameaça e um
extremo desconforto, um atentado à autossuficiência pretendida
pela sociedade moderna.
b) Espetacularização da morte
Por outro lado, a morte é vista como um
espetáculo de
curiosidade
, um show para expectadores. Quando acontece um
acidente de trânsito, quase sempre os que estão passando nem
conhecem a vítima, mas, curiosos, já estão fazendo vídeos e
FAVRETO, Clair.
Liturgia das Exéquias em tempos de pandemia
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postando nas suas redes sociais. Às vezes a própria vítima é
exposta sem escrúpulos. Não há o respeito pela pessoa que
perdeu a vida e pela família que chora a morte. Atitudes assim
ferem a dignidade das pessoas.
Outra situação é quando a mídia faz espetáculo a partir da
morte de alguém. Os mais próximos das vítimas nem podem
fazer luto pelo seu familiar porque a mídia já está querendo
impressionar a todos. E se for a morte de uma pessoa famosa
então há, inclusive, uma programação especial para
espetacularizar a morte.
Tanto a maquiagem da morte, quanto sua espetacularização,
contribuem para a banalização da morte e, com ela, perderam-
se muitas atitudes rituais que ajudavam a enfrentá-la de maneira
mais próxima e natural possível.
Diante da morte, a Igreja sempre procura levar uma palavra
de conforto, de fé e de esperança para aquelas pessoas enlutadas,
porque a Igreja acredita na vida eterna. Queremos trazer dois
aspectos importantes dos quais a Igreja acredita e que podem
nos ajudar a caminhar nesta vida tendo como horizonte a vida
eterna.
a) A morte como nascimento para a vida eterna
Já afirmamos que a Igreja, quando celebra a liturgia das
exéquias, por meio de seus textos sagrados, cantos, orações,
sinais, gestos rituais e pessoas, ajuda a comunidade cristã a
acompanhar
e fazer sua última saudação ao um filho seu que
faleceu. A celebração se torna, portanto, consolo e esperança
para os vivos. Ao mesmo tempo, porém, a Igreja intercede a
Deus pela vida do falecido, suplica a Deus a intercessão
espiritual daquele que partiu para que esteja em comunhão com
Cristo (CIC 1690). A própria Instrução Geral do Ritual de
Exéquias exprime isto quando exorta os sacerdotes da Igreja:
...O sacerdote deve ter diante dos olhos, não só a pessoa de
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cada morto e as circunstâncias de sua morte, (...) deve
considerar a dor e as necessidades da vida cristã dos familiares
(IGRE 18).
A comunidade que celebra, ou a Igreja quando dirige suas
orações diante da morte de uma pessoa, sempre procura suscitar
a esperança dos vivos na ressurreição final. Para os batizados é
profissão de fé: ...Creio em Jesus Cristo....; ...que ressuscitou
ao terceiro dia...; Creio na ressurreição da carne e na vida
eterna. Noutra oração do Creio: Professo um só batismo para
remissão dos pecados. E espero a ressurreição dos mortos e a
vida do mundo que há de vir.
Na compreensão paulina, sobretudo da carta aos Romanos,
há toda uma teologia que relaciona o Sacramento do Batismo
com a morte e ressurreição de Cristo (Rm 6,1-11). Pelo
batismo fomos sepultados juntamente com ele na morte, para
que, como Cristo foi ressuscitado dos mortos por meio da glória
do Pai, assim também nós caminhemos em uma vida nova
(Rm 6,4). Participar da morte de Cristo significa fazer parte da
vitória definitiva que ele estabeleceu sobre o pecado (Rm 6,6s),
e pela qual os cristãos podem ser considerados mortos para o
pecado, porém vivos para Deus, no Cristo Jesus (Rm 6,11).
A morte, na teologia paulina, já foi destruída no dia do
Batismo. Lá o pecado e a morte foram sepultados na água. E, na
água batismal, o cristão já nasceu para esta vida nova que se
torna definitiva quando o corpo cessar seu ciclo terreno. Neste
momento, o cristão nasce para a vida eterna. Toda liturgia
exequial, portanto, celebra esta nova vida em Cristo. Alguns
exemplos das orações que encontramos no Ritual das Exéquias.
b) Vida nova em Cristo: orações do Ritual das Exéquias
O ritual das exéquias traz várias sugestões de orações para
momentos distintos da liturgia. Vamos escolher algumas das
orações que nos ajudam a compreender o que a Igreja reza a Deus.
FAVRETO, Clair.
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Na oração da vigília pelo defunto:
Deus Pai todo-poderoso,
que, pelo Batismo, nos configurastes com a morte e ressurreição do
vosso Filho, concedei benignamente que o vosso servo N., liberto
desta vida mortal, seja associado ao convívio dos vossos eleitos. Por
Cristo, nosso Senhor
.
Na celebração da Palavra durante o velório:
Senhor, nosso
Deus, que, pelo vosso amor quisestes que o nosso irmão N., através
da morte, fosse configurado com Cristo, que por nós morreu na cruz,
pela graça renovadora da Páscoa do vosso Filho, afastai do vosso
servo todo o vestígio da corrupção terrena, para que, marcado já na
sua vida mortal com o selo do Espírito Santo, ressuscite para a vida
eterna da vossa glória. Por Cristo, nosso Senhor
.
Na celebração das exéquias sem missa:
Senhor, nosso Deus,
sempre disposto a compadecer-Vos e a perdoar, escutai benignamente
as súplicas que Vos dirigimos pelo vosso servo N., que (hoje)
chamastes deste mundo à vossa presença; e, porque acreditou e
esperou em Vós, conduzi-o à sua pátria verdadeira, para tomar parte
nas alegrias eternas. PNSJC
.
Na oração da coleta na Missa de Exéquias:
Senhor, Pai santo,
Deus eterno e onipotente, humildemente Vos pedimos por este nosso
irmão N.: perdoai-lhe as suas culpas e concedei-lhe o descanso eterno
na paz da vossa presença, em companhia dos vossos Santos. Fazei que
da escuridão da morte passe ao esplendor da vossa luz e viva convosco
para sempre na glória do vosso reino. Por Cristo, nosso Senhor
.
Na oração sobre as oferendas na Missa de Exéquias:
Deus de
bondade infinita, que purificastes na água do Batismo o vosso servo
N., purificai-o também agora no Sangue de Cristo, por este sacrifício
de reconciliação, e recebei-o nos braços da vossa misericórdia. Por
Cristo, nosso Senhor
.
Na oração depois da comunhão na Missa de Exéquias:
Alimentados neste sacramento do vosso Filho, que por nós foi
imolado e ressuscitou glorioso, humildemente Vos suplicamos,
Senhor, pelo vosso servo N., para que, purificado pelo mistério pascal,
alcance a glória da ressurreição futura. Por Cristo, nosso Senhor
.
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Na exortação que antecede a aspersão e a incensação
(quando há) e a oração de encomendação no final da Missa de
Exéquias:
Pelo batismo, este nosso irmão tornou-se verdadeiramente
filho de Deus, membro de Cristo ressuscitado e templo do Espírito
Santo. A água que agora vamos derramar sobre o seu corpo nos
recorda essa admirável graça batismal, que o preparou para ser
concidadão dos Santos no Céu. (O incenso com que vamos perfumar
os seus despojos será símbolo da sua dignidade de templo de Deus.)
O Senhor aumente em nós a esperança de que este nosso irmão,
chamado a ser pedra viva do templo eterno de Deus, ressuscitará
gloriosamente com Cristo
.
Na oração de bênção da sepultura:
Senhor Deus, criador do
céu e da terra, que, pelo Batismo, salvastes o homem do cativeiro da
morte e o unistes ao triunfo pascal de Cristo vosso Filho, para que
também nós, membros do seu Corpo, nos tornássemos participantes
da sua ressurreição, abençoai a sepultura do vosso servo N., e fazei
que nela tenha um sono tranquilo e ressuscite no último dia com os
vossos Santos. Por Cristo, nosso Senhor
.
Foram escolhidas estas orações do Ritual das Exéquias, mas a
maioria delas relaciona a morte à ressurreição em Cristo ou à
glória futura ou à vida eterna. Várias delas também fazem
referência à morte que foi vencida pelo Batismo e a nova vida
que o cristão passa a viver. Todos elas, portanto, recuperam este
elemento teológico importante que faz ver a morte dentro de
toda a dinâmica pascal.
Conclusão
Partindo das Orações e da Instrução Geral do Ritual das
Exéquias, o texto procurou aprofundar a importância da
presença da Igreja nas exéquias de seus filhos. Em tempo de
pandemia, porém, nem sempre foi possível esta presença e este
acompanhamento ou, em muitas situações, a celebração exequial
foi realizada de forma reduzida e até simplificada e à distância.
FAVRETO, Clair.
Liturgia das Exéquias em tempos de pandemia
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Revista Teopráxis, Passo Fundo, vol.37, n.129, Jul./Dez./2020, ISSN: 2763-5201
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As orações das exéquias procuram afirmar a fé da
comunidade cristã na vida eterna. Em tempos de calamidades,
se faz ainda mais necessário afirmar esta teologia. Nossos olhares
estavam atônitos vendo tantas mortes frias, cruéis e dolorosas.
Sem poder fazer um ritual digno é preciso afirmar esta
perspectiva pascal que todo o Ritual das Exéquias tão bem
coloca por meio de toda a sua eucologia.
Muitos familiares não puderam fazer velório e despedida
digna, outros nem o adeus conseguiram dar. A Igreja nos
consola, pois ela acredita e prega que todos nós poderemos, na
eternidade, nos encontrar novamente com estes irmãos que já
partiram. Quem sabe uma celebração com Liturgia de Exéquias
por todos estes irmãos que já partiram, num lugar sagrado,
simbólico, poderia amenizar a perda, elaborar o luto e fortalecer
a fé na ressurreição à vida eterna.
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: outras expressões celebrativas do mistério pascal e
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FAVRETO, Clair.
Liturgia das Exéquias em tempos de pandemia
AS ORAÇÕES DO MISSAL ROMANO
EM TEMPOS DE CALAMIDADES
Ms. Dom Aloísio Alberto Dilli*
DOI: https://doi.org/10.52451/teopraxis.v37i129.11
Recebido: 18 de fevereiro de 2019 | Aprovado: 07 de maio de 2019
Resumo:
Caros leitores. Foi-nos solicitado um artigo, dentro do contexto
da pandemia da covid-19, sobre o sentido das orações do Missal Romano,
ligadas às calamidades, e se elas continuarão no novo missal (3ª edição pós-
conciliar), que todos aguardamos. Tentando contribuir para esta reflexão,
inicialmente pretendemos analisar alguns desafios que o tempo da pandemia
nos coloca e que esperam por respostas criativas e sábias em vista da vivência
de nossa fé e sua expressão na liturgia oficial e em outras formas de encontro
com o Senhor e os irmãos, sobretudo em tempos de exceção. A seguir,
dedicaremos atenção aos textos propostos pela Igreja
em tempo de guerra ou
calamidade
, sem deixar de analisar o novo texto emitido, recentemente, pela
Santa Sé:
Missa em Tempo de Pandemia
. Também apresentaremos algumas
linhas sobre a preparação do
Novo Missal Romano
e, finalmente, partilhamos
uma oração pessoal que foi composta durante a pandemia.
Palavras-chave:
Novo Missal Romano. Liturgia. Missa em tempos de
pandemia. Oração.
1 Desafios à liturgia em tempos de pandemia
A experiência de reclusão em nossas casas, diante da
presença do Coronavírus Covid-19, desafiou-nos a descobrir
novas maneiras de convivência humana, em muitos aspectos da
vida, como aconteceu com as celebrações comunitárias em
nossos templos. As dificuldades de nos reunirmos nas igrejas fez
valorizar mais a presença do Senhor entre nós por outras formas
* Bispo da Diocese de Santa Cruz do Sul/RS. Mestre em Liturgia pelo Pontifício
Instituto Litúrgico Santo Anselmo, em Roma. Membro da Comissão Episcopal
para os Textos Litúrgicos (Cetel) da CNBB. Bispo referencial da Liturgia da
CNBB Sul 3. Email: d.aloisio@yahoo.com.br
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e expressões, especialmente, quando nos reunimos em seu amor,
como pequenos grupos orantes:
Onde dois ou três estiverem
reunidos em meu nome, ali eu estarei, no meio deles
(Mt 18,20).
Sempre é tão confortante, quando professamos:
Ele está no
meio de nós!
. Essa realidade torna-se também viva quando
oramos em nossas casas, em contexto familiar, como Igreja
doméstica.
Começamos também a perceber mais a presença do Senhor
na caridade com os irmãos, sobretudo os mais necessitados:
Todas as vezes que fizestes isso a um destes pequeninos que são
meus irmãos, foi a mim que o fizestes
(Mt 25,40). Na mesma
linha foi o pedido do Papa Francisco:
A hóstia consagrada
contém a pessoa de Cristo. Por isso somos chamados a buscá-la
diante do tabernáculo na igreja, mas também naquele tabernáculo que
são os últimos, os sofredores, as pessoas sós e pobres. Foi o próprio
Jesus quem o disse
. Assim damo-nos conta que as mãos que
elevamos ao alto, em oração, devem ser as mesmas que se
estendem aos irmãos em necessidade; isso nos faz perceber que
o serviço da caridade é inerente ao nosso ser cristão e não uma
questão opcional. Em tempos de pandemia a carência de muitos
irmãos aflora com mais evidência, fazendo, por exemplo, que os
tapetes mais lindos de
Corpus Christi
se tornem os cobertores e
agasalhos a serem doados para quem passa frio; da mesma
forma, os alimentos para os que estão em situação de fome, os
produtos de higiene aos que não os possuem, etc.
Entre os meios privilegiados de encontro com o Senhor, a
Palavra de Deus deve receber destaque particular, pois é Deus
mesmo que fala quando se lêem as Sagradas Escrituras na Igreja
(Cf. SC 7), tornando a Palavra viva, eficaz e eterna (Cf. Is
55,10-11; Hb 4,12; 1Pd 1,23). Emerge, portanto, a importância
das celebrações da Palavra de Deus, seja em nossas famílias
como em pequenas comunidades ou grupos.
Dentro do atual contexto, muitos que estavam habituados a
rezar praticamente apenas através da celebração eucarística
DILLI, Aloísio Alberto.
As orações do Missal Romano em tempos de calamidades
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entraram numa certa crise, com o decretado fechar as portas de
nossos templos, o que pode revelar o grande valor que se dá à
celebração da missa, tornando-se assim um dado a ser
apreciado, mas pode também externar um sintoma de que não
conseguimos
encontrar o Senhor
em tantas outras formas
celebrativas e orantes de nossa vida cristã, dentro e fora dos
templos. Talvez nos habituamos demais à eficácia dos ritos em
si mesmos (ritualismo) e confiamos no seu efeito
ex opere
operato
(efeito por si mesmo), tão típico da pré-reforma
litúrgica do Vaticano II, quando bastava mais assistir os ritos
que participar plena e ativamente dos mesmos (SC 11, 14, 21...).
Em nossos templos, mesmo de portas fechadas, em boa parte
do presente Ano Litúrgico, celebramos a Liturgia oficial,
inclusive os mistérios da Semana Santa, em forma mais
privativa, mas tentamos fazer também a experiência da fé e do
espírito de comunhão, rezando
com
e
pelo
Povo de Deus, em
tempos de exceção. Faz bem recordar neste momento o que
rezamos na apresentação das oferendas, em nossas celebrações
eucarísticas:
Receba o Senhor por tuas mãos este sacrifício, para a
glória do seu nome, para o nosso bem e de toda santa Igreja
(O
destaque é nosso).
Muitos fiéis nos acompanharam e acompanham pelos
diversos meios de comunicação, usados com mais ou menos
criatividade e riqueza de simbolismo, seja nos templos quanto
nas casas; sem ignorar que também apareceram eventuais
extravagâncias midiáticas que, em vez de ajudar, prejudicam a
Liturgia da Igreja.
Diante do fenômeno do coronavírus, fomos desafiados a dar
respostas celebrativas, mesmo que o distanciamento físico
afetasse aspectos essenciais de nossa Liturgia, sobretudo a
participação comunitária. A experiência atual nos coloca uma
importante pergunta: - Uma celebração assistida na TV ou
pelas Redes Sociais tem o mesmo valor que a participação
presencial num ato litúrgico na comunidade ou mesmo nas
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celebrações da Palavra em nossas casas? Creio que nossa resposta
deve iniciar dizendo que todas as formas podem ser importantes
e certamente têm seu valor; mas, ao mesmo tempo, não
podemos afirmar que
tudo é a mesma coisa
. Há graus de
participação que são diferentes e consequentemente também de
valor.
Primeiro grau
: Esta forma está mais ligada ao
assistir
uma
celebração por TV, Redes sociais ou
ouvir
pela rádio. O
assistente
ou
ouvinte
normalmente não se sente diretamente
envolvido e comprometido com o ato litúrgico, pois sua
participação não é tão ativa e plena por não estar presente com
os outros. Não se nega com isso que esta forma também possa
trazer frutos espirituais (meditação, oração, comunhão
espiritual, catequese...), sobretudo em épocas de exceção.
Segundo grau
: São as formas que recuperam o valor da
oração em comum, realizada na casa (em família), de modo
especial ao redor da Palavra de Deus. Certamente vale mais
celebrar
, mesmo se em grupo reduzido, como Igreja doméstica,
do que simplesmente assistir ou ouvir celebrações. Aqui se
destaca a importância dos subsídios em diversos níveis, que
valorizam a Bíblia (Leitura Orante). O Papa Francisco também
recomenda vivamente a oração do Terço em família.
Terceiro grau
: Esta é a forma celebrativa normal e mais
valiosa, pois ela acontece na comunidade-Igreja, à qual as pessoas
estão ligadas pelo batismo. É o encontro presencial com Deus e
com os irmãos. É o lugar da comunhão e participação mais
plena. Ali os cristãos alimentam sua fé, sua comunhão com a
Igreja e com Deus:
Não esqueçamos que a vida cristã se faz com
pessoas reais, presentes fisicamente, ocupando um espaço que é
sagrado pela presença do humano e do divino
(Pe. Ari A. dos Reis).
Atualmente não podemos rezar plenamente na comunidade.
É tempo de exceção; não porque os padres ou os bispos
nos
tiraram a eucaristia
, mas fazemos o que é possível, mesmo não
sendo o ideal para os cristãos, pois neste momento temos que
DILLI, Aloísio Alberto.
As orações do Missal Romano em tempos de calamidades
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Revista Teopráxis, Passo Fundo, vol.37, n.129, Jul./Dez./2020, ISSN: 2763-5201
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olhar para a defesa da vida - dom e compromisso (Campanha da
Fraternidade 2020). Estamos todos conscientes que o normal e
o mais pleno é celebrar com a comunidade. Por isso, ao passar a
pandemia, voltaremos com saudade para nossas comunidades. É
nelas que nos alimentamos com o Pão da Palavra e da
Eucaristia.
2 O Novo Missal Romano
Antes de falar diretamente sobre as missas em várias
necessidades, como de pandemia e outras, convém apresentar
algumas informações sobre o chamado
Novo Missal Romano
.
Como membro (a partir de 2011) da equipe da CETEL
(Comissão Episcopal dos Textos Litúrgicos) podemos informar
que nossa tarefa tem o seguinte objetivo geral: apresentar para a
Igreja do Brasil uma tradução que seja o mais possível fiel ao
texto original latino, proveniente da Santa Sé (Editio Typica),
tornando-se a fonte das celebrações litúrgicas; seja
compreensível para os fiéis nas diversas regiões de nosso extenso
país; e tenha linguagem leve, fluente e poética para ser rezada e
cantada. O grande desafio, portanto, é manter equilíbrio entre a
fidelidade ao texto latino e uma linguagem mais próxima da
compreensão do povo. Este trabalho está em fase conclusiva,
aguardando aprovação final da CNBB na próxima Assembleia
Geral, em 2021, adiada por causa da pandemia. Depois o texto
vai a Roma e aguardará a aprovação final da Congregação para
o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, segundo as
novas orientações da Carta Apostólica
Magnum Principium
do
Papa Francisco; para depois ser editado pela CNBB, no Brasil.
Em tempos de novo missal, é importante termos diante de
nós uma pequena síntese histórica do Missal de Paulo VI: com a
reforma litúrgica do Concílio Ecumênico Vaticano II surgiu a
primeira edição
do chamado
Missal de Paulo VI
, em 1970. O
mesmo sofreu adaptações na edição latina, em 1975 (
segunda
edição do Missal de Paulo VI
), sendo traduzido e emitido no
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Brasil, em 1992, o qual ainda está em uso, atualmente. Portanto,
hoje estamos falando da
terceira edição do Missal de Paulo VI
,
solicitada ainda por João Paulo II (
Liturgiam Authenticam
) para
todas as Conferências, em 28.03.2001, e cuja tradução iniciou
no Brasil, somente em 2008.
A nova edição que todos aguardamos continua basicamente
com o mesmo estilo das anteriores, contudo, há nova tradução
com os critérios acima apontados. O trabalho maior e mais
demorado consistiu na tradução dos mais de três mil textos
latinos, frase por frase, tentando respeitar a unidade da Liturgia
Romana, onde está a base, a fonte de nossa fé cristã (
lex orandi
lex credendi lux operandi
). Foram acrescentados também os
textos dos novos santos/as inscritos no calendário litúrgico,
além de outros acréscimos e enriquecimentos.
3 Missas por várias necessidades e em tempos de
pandemia
Entre as
missas por várias necessidades
, comentaremos
primeiramente a que é proposta
em tempo de guerra ou
calamidade
, a qual já consta em nosso missal atual (2ª edição) e
que aparece novamente na 3ª dição que estamos aguardando,
com alguma mudança de tradução, mas não do conteúdo
fundamental.
A atual situação do coronavírus covid-19, diante de muitos
pedidos em toda Igreja, fez surgir uma nova proposta de Missa,
mais adequada
em tempo de pandemia
, a qual também
comentaremos abaixo e que deverá constar no novo missal.
3.1 Em Tempo de Guerra ou Calamidade
1
Nosso missal atual não contém uma missa específica para
1 Missa
pelo Bem Público
, missal atual - da 2ª edição no Brasil, n.23.
DILLI, Aloísio Alberto.
As orações do Missal Romano em tempos de calamidades
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Revista Teopráxis, Passo Fundo, vol.37, n.129, Jul./Dez./2020, ISSN: 2763-5201
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tempos de pandemia; apenas em sentido geral de calamidade,
mais ligada à situação de guerra, invocando a paz e a concórdia.
Mesmo assim, fazemos rápido comentário aos seus textos.
A primeira
antífona de entrada
apresenta texto de Jeremias (Jr
29,11.12.14) que revela um Deus que deseja a paz, que liberta
da aflição e tira do cativeiro; a segunda
antífona de entrada
revela
um Deus que escuta o clamor dos que suplicam, em meio aos
terrores que os cercam.
As duas orações da
coleta
, a oração
sobre as oferendas
e a
oração
depois da comunhão
falam, sobretudo, da realidade da
guerra e do consequente ódio e sofrimento, em meio aos quais
é suplicada a Deus a graça da paz, da justiça e do amor, reflexos
da identidade divina e dos verdadeiros cristãos. Deus é invocado
como autor e amigo da paz ou a própria paz.
3.2 Missa em Tempo de Pandemia
A presença do coronavírus covid-19, que assola o planeta,
fez com que surgissem insistentes solicitações para que houvesse
uma missa específica, durante este tempo, para implorar a Deus
o fim da pandemia. A resposta da Congregação para o Culto
Divino e a Disciplina dos Sacramentos veio através do Prot. N.
156/20 (30/03/2020), que propõe as orações para uma
Missa em
tempo de pandemia
(a tradução portuguesa dos textos veio da
Santa Sé).
Na apresentação do decreto encontramos a seguinte frase do
salmista:
Não terás medo da epidemia que se alastra na escuridão
(cf. Sl 90,5-6). Esta palavra bíblica convida para uma grande
confiança no amor fiel de Deus que não abandona seu povo em
tempos de provação, como da pandemia. Essa é a teologia que
perpassa os textos litúrgicos da temática presente. Diante da
apreensão, da insegurança e do medo humano desponta a
confiança em Deus que é fiel e que acompanha seu povo.
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A
antífona de entrada
cita Isaías (Is 53,4), fazendo referência
ao exemplo de Jesus Cristo, o Servo de Javé, que tomou sobre si
as nossas dores.
3.2.1 Oração coleta
Deus eterno e onipotente,
nosso refúgio em todos os perigos,
olhai benignamente para as nossas aflições e angústias;
como filhos, com fé Vos pedimos:
concedei o eterno descanso aos que morreram,
conforto aos que choram,
cura aos doentes,
paz aos moribundos,
a força aos que trabalham na saúde,
a sabedoria aos nossos governantes
e a coragem para chegarmos amorosamente a todos
glorificando juntos o Vosso Santo Nome.
Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho,
Que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo.
Esta é a
oração coleta
, que contém a parte mais significativa
do conteúdo dessa missa, a qual reconhece Deus como nosso
refúgio em todos os perigos. A prece de filhos externa esta
confiança na sua benignidade, em meio às aflições, com diversas
preces: pelo descanso eterno dos que morreram, pelos que
choram, pela cura dos doentes, pela paz dos que estão na agonia
da morte, pelos que cuidam da saúde, pela sabedoria dos
governantes, e a coragem de encontrar-nos com todos para
glorificar juntos o seu Santo Nome.
A
oração sobre as oferendas
pede que Deus receba os dons
apresentados na tribulação e os transforme com a força de seu
poder em fonte de consolação e de paz. A
antífona da comunhão
DILLI, Aloísio Alberto.
As orações do Missal Romano em tempos de calamidades
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traz presente Mt 11,28:
Vinde a mim, todos os que estais cansados
e carregados de fardos, e eu vos darei descanso
. A
oração depois da
comunhão
apresenta a eucaristia como remédio da vida eterna,
que conduz à glória celeste.
3.2.2 Liturgia da Palavra
Primeira Leitura:
Rm 8,31b-39
Salmo Responsorial:
Sl 122,1-2
Aclamação ao Evangelho:
2Cor 1,3b-4ª
Evangelho:
Mc 4,35-41
4 Oração em tempos de pandemia
2
Ó Deus, Pai de misericórdia.
Louvado sois por todas as criaturas, expressão de fraternidade
universal. Sobretudo vos louvamos porque criastes o ser humano à
vossa imagem e semelhança e não o abandonastes ao poder da morte
em sua atitude infiel.
Somos profundamente agradecidos pela vinda de vosso Filho
Jesus Cristo, que nasceu entre nós e mereceu-nos novo sentido para a
vida, recriando-nos com uma dignidade sem par, que nos tornou
filhos e herdeiros, vocacionados a participar de vossa vida divina. Pela
sua vida, cruz e ressurreição fomos salvos. Até nossas dores e
angústias, pandemias e a própria morte foram iluminadas pela
esperança de vitória e pelo dom da vida nova e eterna.
Redimidos por vosso Filho e iluminados pelo Espírito Santo,
fazei que a experiência da pandemia nos ensine a retomar o sentido e
os valores mais profundos de nossa vida: a filiação divina e a relação
fraterna, que o mundo sempre mais está ignorando.
Pai de misericórdia, experimentamos neste tempo de quarentena o
quanto somos dependentes de vós e da solidariedade dos outros,
2 Composta em 02/04/2020.
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nossos irmãos e irmãs. Fortificai nossa fé na vossa constante presença
samaritana, consolai os que mais sofrem e abençoai os que se doam
pela saúde corporal e espiritual dos outros.
Ó Deus, Pai de misericórdia, finalmente vos pedimos que surjam
novos valores na vida do planeta nossa casa comum - para
substituir a visão egoísta que endeusa o poder de mercado, o
consumismo insaciável e o bem-estar como objetivo último da vida.
Que despontem sábias lideranças mundiais em meio à crise, também
em nossas famílias, comunidades e na sociedade em que convivemos,
para suscitar valores que respeitem a dignidade da vida, que
promovam a justiça, a paz, a fraternidade e tantos outros que
emergem do Evangelho, onde vosso Filho ensina: Um só é vosso
Mestre e todos vós sois irmãos (Mt 23,8b). Pelo mesmo Cristo,
nosso Senhor. Amém.
Referências Bibliográficas
BÍBLIA SAGRADA
. Tradução oficial da CNBB. Brasília: Ed. CNBB, 2018.
DOCUMENTOS DO CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. São
Paulo: Paulus, 2014, 7ªed. In:
Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a
Sagrada Liturgia
, p.33-79.
FRANCISCO, Papa.
Carta Apostólica Magnum Principium
. Roma: Libreria
Editrice Vaticana, 2007.
MISSAL ROMANO
. São Paulo: Paulinas, 1992, 2ªed.
DILLI, Aloísio Alberto.
As orações do Missal Romano em tempos de calamidades
O ESPAÇO DA CELEBRAÇÃO EM TEMPOS
DE ISOLAMENTO SOCIAL
Ms. Ir. Penha Carpanedo*
DOI: https://doi.org/10.52451/teopraxis.v37i129.12
Recebido: 23 de janeiro de 2019 | Aprovado: 26 de maio de 2019
Resumo:
A casa onde moramos, desponta como lugar seguro em tempo de
isolamento social. Mas ela é, por tradição, um espaço eclesial que abriga a
Igreja doméstica e sua liturgia. No centro da casa está a mesa da comunhão
diária, sustentada pela partilha da refeição, pela convivência, pela memória
das tantas refeições que Jesus fez com os seus.
Palavras-chave:
Casa. Isolamento. Reunião. Mesa. Escuta. Prece.
1 A casa como lugar seguro
Estamos no meio de uma crise sanitária sem precedentes,
agravada por um desgoverno que nega os possíveis e necessários
cuidados, colocando-nos em extrema dificuldade, sobretudo os
pobres que não dispõem de recursos mínimos para manter-se
em isolamento. É uma situação que, de alguma forma, atinge
todas e todos nós. Em cinco meses chegamos ao alarmante número
de cem mil vidas ceifadas, nomes apagados, histórias interrompidas,
entre as quais figuram rostos de pessoas conhecidas, de parentes e
de tantos amigos e amigas. E em meio a este luto coletivo a
instabilidade continua, com a situação econômica e política
piorada, sem qualquer certeza de solução num futuro próximo.
Mas os sábios dizem que nunca se deve desperdiçar uma
crise. Sem escamotear a crise, podemos fazer dela uma fonte de
transformação. A história nos ensina que é possível renascer das
* Pertence às Pias Discípulas do Divino Mestre. Redatora da Revista de Liturgia.
Membro da Rede Celebra de animação litúrgica. Mestre em Liturgia. email:
redacao@revistadeliturgia.com.br
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cinzas. Há quem diga, que depois desta dramática experiência
não seremos mais os mesmos, as mesmas, que o mundo terá que
ser reinventado desde a forma de gerenciar a economia até os
modos de viver dentro de nossas casas.
Na Igreja vivemos a impossibilidade de nos reunir
presencialmente para as diversas atividades pastorais, gritando
mais forte o fato de não podermos participar plenamente da
Eucaristia. Talvez, as alternativas que surgiram para suprir esta
privação, estejam revelando, quão limitada é a nossa
compreensão da ceia memorial do Senhor e isso deverá nos
levar a buscar o sentido mais profundo da eucaristia que inclui o
lava-pés do serviço e do amor fraterno. Aliás, estamos tendo a
oportunidade de contemplar a entrega do Senhor, no trabalho
arriscado de tantos profissionais da saúde, na luta para obter o
auxilio emergencial, na partilha e na solidariedade em socorrer
os mais frágeis, na batalha cotidiana pela sobrevivência em
condições adversas.
E enquanto a instabilidade permanece a palavra de ordem é
ficar em casa para não contrair nem contribuir para disseminar
o vírus. Ninguém deve se arriscar, nem mesmo para ir à Igreja.
A fé pode ser cultivada e celebrada em casa. Este espaço
pequeno, tão pouco importante aos olhos de quem faz os
grandes relatos da história, pouco significativo para a economia
e para a politica, de repente vem à tona como o lugar seguro e
se revela como espaço simbólico, eclesial e litúrgico. Isso de
voltar para a casa, remete ao tempo de Jesus e das primeiras
comunidades cristãs, que tinha a casa como lugar de reunião e
de evangelização.
2 A casa da Igreja
Jesus foi um rabino itinerante, missionário. Com ele
caminhavam os doze, outros discípulos, um grupo de mulheres
(Lc 8,1-3; Mc 15,40s). Em suas andanças parava nas casas que o
CARPANEDO, Penha.
O espaço da celebração em tempos de isolamento social
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Revista Teopráxis, Passo Fundo, vol.37, n.129, Jul./Dez./2020, ISSN: 2763-5201
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recebiam oferecendo abrigo, alimento, aconchego. Jesus falava
às multidões, mas era na casa que Ele conversava com os
discípulos e discípulas na intimidade. A palavra casa nos
evangelhos é quase sempre uma referência ao lugar onde Jesus
se encontrava com os seus discípulos e discípulas e os formava
(cf. Mc 1,17; 9,28). A última ceia de Jesus foi celebrada numa
casa (Mc 14,15) e foi na casa que depois de sua ressurreição Ele
apareceu aos 11 quando estavam à mesa [Mc 16,14-18] ou
quando estavam reunidos com as portas fechadas (Jo 20,19). A
casa extrapola a família natural. Jesus deixa claro, que a sua
família, sua mãe e seus irmãos são aqueles que ouvem a palavra
de Deus e a põem em prática (Lc 11,28).
Essas casas certamente se tornaram referências para as
comunidades cristãs depois da ressurreição. Imaginemos, por
exemplo, a casa de Marta, Maria e Lázaro, em Betânia, onde
Jesus tantas vezes se hospedou a caminho de Jerusalém (cf. Lc
10,38-42); ou a casa de Pedro em Cafarnaum onde Jesus
morava (cf. Mc 1,2; 3,20). Nas comunidades de Paulo são
conhecidas as casas de Lídia que acolheu Paulo e onde a Igreja
se reunia (cf. At 16,14-15); também a casa de Prisca e Áquila
um casal importante na itinerância missionária de Paulo, que
abriu a sua casa para o apóstolo e na qual a comunidade cristã se
reunia regularmente (cf. 1Cor 16,19). Em Jerusalém, podemos
lembrar a casa de Maria mãe de João Marcos para onde Pedro se
dirigiu depois da sua libertação milagrosa (At 12,12-16). A
Igreja de Jerusalém se reunia nas casas e também no templo, tão
importante para o povo de Israel como lugar de revelação: em
suas casas partiam o pão, compartilhavam a comida com alegria
e simplicidade de coração (At 42,46).
Estas casas cedidas para servir de lugar de reunião da
comunidade, passavam por uma adequação em função do
número de pessoas e das ações que ali se realizavam. Sem perder
a fisionomia da casa abria-se o necessário espaço para abrigar a
comunidade. Não se tinha a intenção de criar um espaço
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sagrado, pois sagrada era a comunidade reunida, ela mesma
lugar da manifestação do Ressuscitado. A mais antiga Casa-
igreja de que se tem notícia, situada na atual Síria, numa cidade
de nome Dura Europos, era uma residência familiar que foi
ampliada para prestar este serviço.
Com o tempo a Igreja foi se estruturando e grandes templos
foram construídos, à medida que a própria Igreja e a sua liturgia
vão se modificando sob o domínio do clero, praticamente sem
participação do povo e sem ministérios leigos. Quanto mais o
povo deixa de ser sujeito e a liturgia já não se configura como
uma ação comunitária da fé, mais o espaço da celebração passa a
atender à necessidade de olhar, em vez de participar ativamente.
Com o movimento de volta às fontes do Concilio Vaticano
II, reabilitando o modelo de Igreja povo de Deus, caminhos se
abriram para as pequenas comunidades. Foi uma verdadeira
revolução do ponto de vista eclesial e litúrgico, em que o povo
passa a ser sujeito eclesial e sujeito também da ação litúrgica.
Aqui na América Latina, a recepção do Concílio, sobretudo a
partir de Medellín, criou espaço para uma experiência concreta
da Igreja povo de Deus nas Comunidades Eclesiais da Base, que
se reúnem em pequenos grupos, muitas vezes nas casas, num
salão comunitário, em espaços mais simples, em movimento
circular. Contudo não é fácil em 50 anos, passar de um modelo
milenar, para um novo jeito de ser Igreja. Há sempre a
tendência de voltar ao velho sistema.
3 A volta pra casa
Com o isolamento social veio à tona uma avalanche de
missas com o padre, mas sem o povo, oferecida via mídia e
recebida como resposta satisfatória por grande parte do povo
católico. No entanto, boa parte dos fiéis tem se perguntado se
em vez disto, não seria mais interessante reunir a família e fazer
da pequena igreja da casa um lugar de encontro com Jesus
CARPANEDO, Penha.
O espaço da celebração em tempos de isolamento social
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Revista Teopráxis, Passo Fundo, vol.37, n.129, Jul./Dez./2020, ISSN: 2763-5201
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conforme ele mesmo prometeu: Onde dois ou três estiverem
reunidos em meu nome, estarei no meio deles (Mt 18,20).
Aliás, os fiéis nunca deixaram de fazer da casa, de alguma
maneira, um lugar de viver e celebrar a fé. É muito comum
encontrar nas casas, sobretudo dos pobres, um altarzinho, uma
imagem, uma vela e a prática diária da oração, em geral, com
expressões da piedade popular já que a liturgia se tornou
inacessível ao povo. Daqui podemos começar a partir da
herança de nossos pais e avós. Quantos e quantas de nós não se
recorda do diminuto ofício cotidiano, da manhã e da noite,
com Deus me deito, com Deus me levanto, com a graça de
Deus e o Divino Espírito Santo?
Aos poucos podemos ir desenvolvendo uma liturgia
doméstica, feita de pequenos ritos em estilo simples, presidida
pela mãe ou por outra pessoa da família. Por esta celebração
podemos alegrar-nos na presença de Jesus, escutar e meditar a
sua palavra e, junto com Jesus, erguer ao Pai os nossos corações
em preces, partilhar um pão em ação de graças, invocar uma
benção. É uma liturgia que pode renovar a esperança e a
confiança de que Deus não nos abandona, mesmo quando a
morte nos ameaça.
A liturgia doméstica se adapta ao espaço da casa, buscando
nela o melhor para se criar um círculo, seja na sala, ou numa
varanda, ou num terraço, ou no quintal... Em qualquer caso, é
importante cuidar que as pessoas estejam confortáveis e unidas
entre si. Se for dentro de casa é importante estabelecer um
ponto de referência que pode ser uma vela, a bíblia, um ícone
ou a cruz, uma flor, sobre uma mesinha ou sobre um tecido
posto no chão. Não se trata de transportar para a casa o modelo
da igreja maior. Mas o espaço organizado e bonito, ainda que
com toda a simplicidade, corresponde à linguagem própria da
liturgia que expressa a fé por meio de sinais sensíveis (cf. SC 7).
Na casa, talvez o espaço mais sagrado, seja a mesa, onde
todos se encontram para partilhar o pão, dom de Deus e fruto
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do trabalho de cada um, cada uma. Infelizmente já não é tão
comum priorizar a refeição como lugar de convivência. A
televisão, o celular, o trabalho nos capturam e indicam outra
direção. Poderia ser este um bom começo, se não sempre, pelo
menos de vez em quando: preparar uma boa comida, arrumar a
mesa, alguém pode fazer uma prece de agradecimento a Deus
pelo pão nosso de cada dia e pelo dom de estarmos juntos.
Comer e beber na alegria e na comunhão tem enorme sentido
espiritual. Recorda as tantas vezes que Jesus sentou-se com seus
para comer e beber, em ação de graças, sinalizando a chegada
do Reino.
Esta experiência forçada pela pandemia soa como
alternativa, já que não podemos nos juntar à comunidade; ao
mesmo tempo, aponta para um futuro, que já se faz presente, de
uma Igreja que redescobre formas concretas de exercer o
sacerdócio comum dos fiéis, na vida e na liturgia. Oxalá a
experiência de celebrar no restrito ambiente da casa, nos
devolva definitivamente o imprescindível da participação
efetiva e ativa, e livre a Igreja de tratar o povo como mero
espectador (Cf. SC 48).
Referências Bibliográficas
BÍBLIA SAGRADA
. Tradução oficial da CNBB. Brasília: Ed. CNBB, 2018.
DOCUMENTOS DO CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. São
Paulo: Paulus, 2014, 7ªed. In:
Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a
Sagrada Liturgia
, p.33-79.
CARPANEDO, Penha.
O espaço da celebração em tempos de isolamento social
A ORAÇÃO EM TEMPOS DE
DISTANCIAMENTO SOCIAL
Ms. Pe. Rene Zanandréa*
DOI: https://doi.org/10.52451/teopraxis.v37i129.13
Recebido: 03 de dezembro de 2018 | Aprovado: 11 de abril de 2019
Resumo:
A oração dos cristãos se intensificou durante a experiência de
distanciamento social provocada pela pandemia da Covid-19. Jesus rezava e
ensinou a rezar desmistificando e libertando a própria oração. A Igreja
precisa aprender de Jesus a rezar com o cotidiano e as Sagradas Escrituras;
rezar mais pelos outros do que para si própria.
Palavras-chave:
Oração. A oração de Jesus. Oração Cristã. A Oração do
Papa Francisco. Distanciamento social.
Introdução
Jesus rezava e ensinou a rezar. Nos momentos cruciais de
sua missão dialogou com o Pai. Em momentos limite, sua
franqueza e, ao mesmo tempo, sua confiança no Pai revelam a
firmeza e a determinação que sua oração proporcionava: Agora
estou muito perturbado. E o que vou dizer? Pai livra-me desta
hora? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim. Pai,
manifesta a glória do teu nome! (Jo 12,27-28).
Agora a humanidade se depara com uma experiência ímpar.
A pandemia da Covid-19 tem forçado os povos do mundo
inteiro ao isolamento. E, não raras vezes, têm feito a experiência
de se reinventar, inclusive espiritualmente. Se o fiel crente reza
no dia-a-dia é provável que nesses tempos a oração se fez mais
intensa. Mas, a Palavra de Deus tem feito parte da oração
cotidiana dos cristãos?
* Padre da Diocese de Vacaria. Mestre em Teologia pela Escola Superior de Teologia
(EST) São Leopoldo/RS. Professor da Itepa Faculdades. Áreas: Sacramentos, Liturgia,
Comunicação, Organização Paroquial. Email: renezanandrea@yahoo.com.br
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No presente artigo recolhemos relatos de algumas
experiências de oração vividas de modo distinto nesses tempos
de distanciamento social. Essas experiências nós as encontramos
em ações noticiadas nas mídias sociais, mas, também, através de
entrevistas. Em Jesus, o Nazareno, buscamos inspirações: Ele se
retirava para rezar e dá indicativos da oração autêntica. Por fim
propomos as Sagradas Escrituras e o olhar para o cotidiano da
vida como inspirações para a oração cristã.
1 A oração no deserto do distanciamento social: relatos
de experiências
A pandemia do coronavírus impôs o isolamento social no
Brasil a partir de março de 2020. Em outros continentes isso se
deu bem antes. Surgiram alguns sentimentos que foram
mutando com o passar dos dias. Pensava-se, por exemplo, que,
com a cooperação de todos, tudo retomaria sua normalidade
depois de algumas semanas. Foi necessário repensar essa
intuição depois de se perceber o prolongamento desse estado de
distanciamento.
Também o cultivo da fé sofreu seus impactos. A necessidade
de fechar igrejas causou constrangimentos nos líderes religiosos,
embora parecesse ser para um período breve. Mas foi necessário
celebrar a Semana Santa, o Tríduo Pascal e a Ressurreição do
Senhor ainda de portas fechadas e os fiéis foram orientados a
participar virtualmente e a ritualizar sua presença colocando
na frente de sua casa os sinais que expressavam essa celebração
da centralidade da fé cristã.
1.1 A Missa transmitida nas redes sociais
As atividades comunitárias foram quase todas suspensas ou
adiadas. Com isso o cerne da vida comunitária, sua
interatividade e proximidade física, ficaram bloqueados. Com a
ZANANDRÉA, Rene.
A oração em tempos de distanciamento social
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Revista Teopráxis, Passo Fundo, vol.37, n.129, Jul./Dez./2020, ISSN: 2763-5201
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restrição das celebrações abertas ao público se iniciaram as
transmissões
on-line
na maioria das comunidades paroquiais.
O alcance e a abrangência dessas transmissões ultrapassam as
fronteiras da paróquia e acabam por alcançar outros lugares,
mas, não necessariamente, chegam aos paroquianos locais.
Atingir os paroquianos, permanece um desafio. Afinal, nem
todos os que costumavam frequentar as igrejas usam as redes
sociais; nem todos aprenderam a manusear os equipamentos de
informática e têm acesso à
internet
. Basta ver que, mesmo
atingindo outras realidades além das fronteiras geográficas da
paróquia, o número de conexões durante a Missa é
absolutamente inferior ao número de paroquianos.
Dentre os inúmeros desafios, nas Missas transmitidas pelas
redes sociais aparecem a qualidade técnica (áudio,
enquadramento de imagem, qualidade das conexões) e a
interação com a comunidade. Houve certa estranheza porque
não se tinha conhecimento de quem estava assistindo pela
rede social e como reagia às celebrações. Isso tudo exigiu dos
ministros uma maior responsabilidade e cuidado redobrado no
preparo da liturgia.
Apareceram iniciativas como de pedir aos que acompanham
as transmissões para que enviem suas intenções de oração, na
rede social. E os internautas corresponderam e expressaram
certa assiduidade, interagindo sistematicamente com as
transmissões. Iniciativas como a leitura dessas intenções e o
pedido de envio de fotos para compor um painel na Igreja, por
exemplo, resultou em certa fidelização e interação mais
palpável. Foram fixadas fotografias de fiéis nos bancos de
algumas igrejas, sinalizando a memória dos ausentes. Tais
métodos têm sido amplamente adotados e dado o efeito de as
pessoas se sentirem mais envolvidas com as Missas. Há
iniciativas de editoras distribuindo os subsídios litúrgicos que
produzem e paróquias disponibilizando material digital para
auxiliar os fiéis a rezarem em casa.
124
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As celebrações
on-line
dão visibilidade e, não raras vezes, isso
acabou gerando dificuldades entre os membros das equipes,
tornando evidente tensões que já existiam, embora veladas.
Outro desafio constatado é a criatividade despudorada,
criatividade selvagem, atitudes que ferem o princípio cristão
da centralidade no Mistério Pascal de Jesus Cristo.
Mas, embora tantos desafios e, em especial a realidade de
uma Assembleia Litúrgica menos completa, precisamos
reconhecer que, nesse tempo de exceção, as Missas transmitidas
pelas redes sociais têm ajudado a alimentar a fé e a esperança de
tantos que levam a sério o cuidado com a vida, ficando em casa.
E quando passar a pandemia, como nossas comunidades vão
retornar? Os fiéis terão saudades da comunidade? Pode ser que
alguns se percam e continuem isolados. Como re-encantar para
a vida comunitária? E aquelas pessoas que perderam seus
familiares, seus empregos, empobreceram?
1.2 Experiências de oração pessoal e familiar
O distanciamento social forçou a ficar em casa. Para além de
ter onde morar, ter o que comer e vestir, a espiritualidade, a
esperança constituem o rol das necessidades básicas de toda
pessoa. A Igreja das casas está se reinventando pois todos
precisam continuar tendo razões para viver. E essas verdadeiras
Igrejas domésticas se conectaram entre si, unindo pessoas,
famílias, grupos e comunidades em encontros de oração e
formação, afirma Moisés Sbardelotto.
Para elaborar as linhas a seguir, realizamos uma pesquisa
através de uma rede social obtendo respostas de doze pessoas. A
contribuição vem de religiosas, de fiéis leigos e de presbíteros
1
.
Num primeiro contato pedimos que, de forma bem aberta,
partilhassem o modo como estão rezando nesses tempos de
1 Os depoimentos incorporados ao texto serão identificados, porém mantendo o
anonimato dos entrevistados.
ZANANDRÉA, Rene.
A oração em tempos de distanciamento social
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distanciamento social. O segundo contato foi para saber da participação
ou não das Sagradas Escrituras na oração pessoal e familiar.
Quase por unanimidade as pessoas afirmaram que a oração
se tornou mais intensa: percebi que passei a dedicar mais
tempo para conversar com Deus, falar dos meus medos,
preocupações, pedir proteção e a superação dessa crise relatou
uma entrevistada. Outra disse que, em família, não tinham o
hábito de fazer a oração juntos, diariamente, [exceto] nos finais
de semana, antes de dormir. Mas, nesse período [de pandemia],
todos os dias, às 10 horas [da noite], eu coloco o relógio
despertar e a gente reza juntos. Esse foi um ponto positivo nesse
período.
A oração é um espaço onde nos encontramos conosco
mesmos e com o Senhor. É o que nos fortalece. Se a gente não
tem uma vida de oração, nessas tribulações da vida a gente
desiste e perde a razão de viver, relatou uma pessoa
entrevistada. E outra prossegue relatando que já rezava o meu
Rosário, fazia visita quase diariamente ao Sacrário e participava
de boa parte das Celebrações Eucarísticas [mas] foi muito
difícil Parecia que tinham me tirado a Igreja. Tive que
começar a me reinventar na oração. E foi muito bom.
Vários entrevistados revelaram elementos que compõem sua
oração, seu conteúdo. Eis algumas respostas: agradecer por
tudo que Ele tem me proporcionado; como núcleo [de
religiosas] nos comprometemos a estar em unidade umas com
as outras e em sintonia com o povo que, nesta situação, tem
muita incerteza, desânimos, dúvidas e choque por tantas vidas
ceifadas por um vírus invisível e fatal.
Sobre os métodos de oração, trazemos algumas
manifestações: costumo rezar o Terço, ouvir reflexões sobre a
vida e a necessidade de alimentar a fé e a esperança; em minha
família a reza do Terço tornou-se mais regular e os momentos
juntos ganharam mais prioridade; consegui rezar os vinte
Mistérios meditados e [com mais tempo] consegui rezá-lo
126
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melhor; o silêncio favorece muito minha conexão com Deus,
bem como um espaço orante, com Bíblia, imagem de Cristo e
de Nossa Senhora. Outras citaram a Missa na casa religiosa e a
Celebração da Palavra na comunidade aos domingos. Um padre
testemunhou ter descoberto uma força ainda maior [] vinda
da Eucaristia. [] Nunca tinha celebrado a Eucaristia sozinho.
Foi desafiador no início, mas muito gratificante, agora. []
Celebrei várias vezes com minha família (nunca havia feito só
com meus pais). Também a oração antes do almoço foi citada
com o testemunho de que já sentimos o efeito [e] a nossa casa
começou a ser mais Igreja. Várias respostas indicaram a
relevância da oração no contato com a obra do Criador: é
muito bom se dar conta que Deus está presente ali tinha dias
que parecia que tudo rezava comigo, sabe?. A oração permite
perceber um Deus que corrige e salva. Quase que a totalidade
das falas citaram as celebrações via redes sociais como forma de
rezar. Foram citadas as transmissões via
Facebook
e TVs de
inspiração católica, a produção de
lives
formativas e os materiais
enviados eletronicamente que ajudam a rezar. Há situações em
que parece que Deus transpassa da tela para o coração da gente.
São experiências que agora a gente começou a valorizar e Deus
[] derramou muito mais amor do que já tinha para que todos
experimentássemos [como que] dizendo pra gente: você não
está sozinho.
Os entrevistados apontaram, também, desdobramentos da
oração na convivência e no serviço. Uma religiosa testemunhou
que percebe Deus agindo em resposta ao serviço que presta a
uma comunidade terapêutica: independentemente do que
aprontaram [] o fato de eles se manterem em pé é um jeito
de sentir que Deus está conosco. Um sentimento comum é a
falta do convívio em comunidade, das celebrações dominicais,
da partilha da vida; estamos distanciados, impossibilitados de
nos encontrarmos para rezarmos juntos. Outras experiências
ressaltam a mesma importância da coletividade: minha fé não
ZANANDRÉA, Rene.
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se abalou porque no [movimento juvenil tal] tenho cada vez
mais forças para não me deixar abalar [] e sair para o mundo
com aquele intuito de mudá-lo, acredito que isso seja possível
sim; a convivência com o outro padre é muito bacana onde
um ajuda o outro. Aparece a preocupação com os problemas
do isolamento: as pessoas estão muito doentes e têm vindo
procurar orientação psicológica [espiritual]. [Temos] que estar
bem preparados. As pessoas, as famílias estão se fechando muito
e, se não trabalhar, vai estourar em doenças. [] Irmãos no
sacerdócio não ligam pra saber como está o outro, não visitam.
[Eu] tenho procurado ligar. Um outro padre disse sentir falta
das reuniões e formações comunitárias, das celebrações onde se
pode abraçar e querer bem, se acolher na porta com abraços
agora a gente se acolhe só com o cotovelo. Mas, testemunhou
alguém, tudo isso nos levou a despertar e valorizar mais a
solidariedade, a empatia e fazer do distanciamento um ato de
amor para com os demais.
A oração alimenta a esperança, mantém em pé,
testemunham os entrevistados: fiéis leigos afirmam ter a
certeza de que Deus continua caminhando conosco e a cada dia
nos dispõe e nos dá coragem de recomeçar na esperança;
vamos tentando passar isso também para as outras pessoas na
fé e esperança por dias melhores. Um jovem presbítero
relatou que o isolamento forçado o fez chorar e sentir
desânimo na missão. Então rezou como ainda não tinha
rezado: tempo em silêncio para falar com Deus e ouvi-Lo
[] nunca tinha passado tempo significativo em frente ao
sacrário [e da] imagem de Nossa Senhora. Mas foi o tempo da
graça, me encontrei [], como um retiro podendo revisitar
momentos da infância, família, comunidade, escola, seminário...
Revisitei meus erros e pensei sobre os obstáculos. Também o
Papa Francisco foi lembrado quando uma fiel leiga disse que
suas mensagens despertaram para a necessidade da oração. A
família ganhou novas percepções: tem seus erros e defeitos,
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mas aqui tem Deus, aqui é que Deus mora e quer a gente mais
perto. E pudemos experimentar essa presença de Deus em nossa
vida. Uma entrevistada intui que nunca mais vai ser igual,
depois dessa pandemia. O participar das celebrações, o fazer
uma oração não vai ser igual a antes. O valor é muito maior,
hoje, da família, do ser das pessoas, da natureza.
Nosso segundo contato com os entrevistados buscou saber
como contemplam (ou não) a Palavra de Deus, já que apenas
duas entrevistadas a citaram na primeira resposta. Disseram:
com mais tempo em casa pude fazer com mais calma a oração
da Palavra de Deus; em meus momentos de orações, não
todos, gosto de ler um trecho da Bíblia; geralmente acompanho
a liturgia diária e, a partir da leitura, faço um momento de
reflexão. Alguns disseram que seguem os passos do Método de
Leitura Orante: gosto muito; às vezes utilizando o MLO e às
vezes simplesmente partilhando em comunidade [religiosa];
sempre que possível, faço a leitura orante. Os padres
entrevistados são unânimes em afirmar que o contato diário
serve para consumo próprio mas, também, para partilhar em
comunidade através das homilias: faço a opção de todas as
manhãs, rezar com a liturgia diária ao invés da liturgia das
horas; a liturgia diária me prepara também para as celebrações
e me motivam a buscar sempre reflexões e estudos
exegéticos/hermenêuticos para compreender o sentido mais
profundo do texto. Inúmeras outras falas testemunham a
importância dos textos sagrados para a oração: o contato com a
Palavra me traz esperança e acalento neste momento difícil; e
me faz ver o quanto Deus é amoroso e misericordioso; a
Palavra de Deus vem como luz, abre horizonte, mostra
caminhos; acompanho a liturgia diária, principalmente com o
Evangelho e o Salmo; geralmente a Palavra de Deus, mesmo
sendo da liturgia do dia, parece que se encaixa naquilo que
estou vivendo, a situação daquele dia; a Sua Palavra me traz
paz, segurança, me faz tomar posição tentando viver lá em meio
ZANANDRÉA, Rene.
A oração em tempos de distanciamento social
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aos desafios do dia-a-dia, me dá forças, faz com que nunca me
sinta só; muitas vezes eu disse, após rezar com a Palavra:
ainda bem que eu tenho Deus que me ajuda, que me entende,
que me levanta, me faz recomeçar; acompanho a transmissão
da missa diariamente, ouço com atenção a proclamação dos
textos Bíblicos e reflexões procuro colocar em prática o que a
Palavra de Deus me transmite.
O isolamento social está forçando a espiritualidade e a
oração cristã a se reavivarem. É notório que a oração pessoal e
familiar tem tomado elementos mais palpáveis da vida. Mais
adiante veremos que Jesus ensina assim. Portanto temos um
longo e belo caminho pela frente.
1.3 O mundo inteiro está rezando diferente
Neste terceiro (e breve) item queremos mencionar as
incontáveis iniciativas de oração pelo mundo afora e que têm
feito uso de uma gama sem fim de recursos eletrônicos e com
sintonia global.
É impossível não mencionar aqui a oração que o Papa
Francisco fez pelo mundo inteiro na praça da Basílica São Pedro
na tarde cinzenta de 27 de março. Essa iniciativa do Sumo
Pontífice e o jeito como rezou, impactou o mundo. A cena
televisiva mostrava um senhorzinho que caminhava sozinho.
Mas ele não estava só porque o mundo inteiro estava presente
naquela subida, naquela oração.
Vimos um Papa diferente, que reza diferente, mas tendo
presente as preocupações evangélicas de sempre. Francisco
disse, na homilia: Na nossa avidez de lucro, deixamo-nos
absorver pelas coisas e transtornar pela pressa. Não nos
detivemos perante os teus apelos, não despertamos face a
guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres
e do nosso planeta gravemente enfermo. Avançamos,
destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis
130
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num mundo doente. Agora nós, sentindo-nos em mar agitado,
imploramos-Te: Acorda, Senhor!. [] Com a tempestade,
caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o
nosso eu sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a
descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum
a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos. []
Não somos autossuficientes, sozinhos afundamos: precisamos do
Senhor como os antigos navegadores, das estrelas. Convidemos
Jesus a subir para o barco da nossa vida. [] Ele serena as
nossas tempestades, porque, com Deus, a vida não morre
jamais.
Muitas outras iniciativas de oração unindo os cinco
continentes se fizeram saber. Mencionamos aqui como
ilustração o evento de oração
on-line
intitulado eu não
consigo respirar. Aconteceu no dia 23 de julho por iniciativa
da vida religiosa consagrada. Teve o objetivo de fortalecer a fé
e testemunhar a presença de Deus unindo o mundo que
enfrenta a pandemia do Covid-19 [e esteve] direcionada
especialmente às pessoas dos países que estão sofrendo
drasticamente com as consequências do coronavírus.
Para participar as pessoas precisaram se inscrever, pois o
encontro mundial aconteceu em modalidade de videoconferência
pela plataforma
Zoom
. A presidente da União Internacional das
Superioras Gerais (UISG), Ir. Jolanta Kafka, descreveu o
momento vivido como de santa inquietação pela privação de
projetos e de poder administrar a própria vida. Um tipo de
pobreza e de incerteza que levam a confiar em Deus mais
sinceramente, a aceitar que a insegurança eduque a uma busca
intensa de Deus, a ancorar o coração nEle. Ela lembrou que o
confinamento ajudou a redescobrir o próximo, com gestos
concretos de ajuda mútua, em nível local ou através da
solidariedade global. Por isso, a oração
on-line
se manifesta
como mais uma iniciativa para oferecer o acompanhamento
ZANANDRÉA, Rene.
A oração em tempos de distanciamento social
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recíproco, mesmo que de forma virtual, mas que vai muito além
da comunidade congregacional.
A experiência da pandemia tem possibilitado perceber a
caducidade de vários valores que considerávamos primários e
que os percebemos secundários e vice-versa. O Papa Francisco,
lembrou disso na oração de 27 de março: a tempestade
desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas
e supérfluas seguranças com que construímos os nossos
programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades.
Mostra-nos como deixamos adormecido e abandonado aquilo
que nutre, sustenta e dá força à nossa vida e à nossa
comunidade. Oxalá essa experiência de distanciamento social
também nos ajude a rezar diferente. Se faz necessário aprender
com Jesus. É o que buscamos a seguir, revisitando trechos
evangélicos que mostram esse Caminho.
2 A oração de Jesus: inspiração para a oração da Igreja
Por ser uma das formas de contato com a divindade, a
oração se relaciona com a experiência de sentido e de
totalidade. Não se trata apenas de um movimento vertical, mas
também horizontal. E isso se faz exigência no que diz respeito à
coerência da oração cristã para que seja, de fato, cristã.
A experiência de sentido e de transcendência acontece na
práxis (ação-reflexão), segundo Jon Sobrino. Mas o mais que
nasce dessa práxis deve ser considerado para que se manifeste a
experiência de gratuidade e, assim, o cristão se encontre
consigo mesmo
2
.
A oração é uma experiência de gratuidade. Esse ato ocioso
nos lembra que o Senhor está além das categorias do útil e do
inútil. A gratuidade de Deus nos provoca para uma experiência
que liberta da alienação. O cristão comprometido com o Reino
2 Jon SOBRINO,
A oração de Jesus e do cristão
, p.9.
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precisa encontrar os caminhos de uma oração autêntica, que vai
além do discursivo. O encontro com esse Deus gratuito nos
despoja, despe.
A oração comunitária se dirige a Deus e se faz dentro de um
contexto bem determinado. Os conceitos cristãos de Deus,
Reino, seguimento, gratuidade, etc também estão sob determinada
condição histórica. Portanto não podem ser considerados como
abstratos e intemporais, mas situados historicamente já que se
deduzem da história concreta de Jesus, afirma Sobrino.
2.1 A oração de Jesus
A oração dos cristãos se inspira na oração de Jesus. Ora, se
Jesus é o Filho, o Primogênito, o primeiro dentre os crentes, é
também o primeiro dos orantes
3
. E, uma vez que Jesus rezou
desde o seu contexto histórico, se deduz que a oração é uma
faceta da vida e que a oração responde às tramas e aos dramas
humanos.
Um dado fundamental é que Jesus rezava. E o conteúdo e o
contexto de sua oração estão bem situados e assim deve ser a
oração cristã. Jesus não foi ingênuo em relação à oração; não a
exercitou por mera rotina ou tradição. E, além disso, Ele
desmistificou a oração.
Continuando a reflexão com Jon Sobrino vemos que Jesus,
em sua oração, observa e denuncia os perigos inerentes à
oração
4
. Vamos a algumas situações que dão exemplo disso. Em
Lc 18,11, um fariseu agradece por não ser como os outros. Jesus
condena essa oração por ser autoafirmação egoísta. Falta a
necessária alteridade com o polo referencial que precisa ser
Deus. Desse modo a oração é um mero mecanismo narcisista e
gratificante; é autoengano. Atualmente o Papa Francisco
também tem chamado a atenção da Igreja para que supere a
3 Jon SOBRINO,
A oração de Jesus e do cristão
, p.11.
4 Jon SOBRINO,
A oração de Jesus e do cristão
, p.13.
ZANANDRÉA, Rene.
A oração em tempos de distanciamento social
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tentação da auto referencialidade.
Outro texto mostra a hipocrisia da visibilidade das
manifestações religiosas: supõe que se consegue a fama de ser
homem bom, justo. Em Mt 6,5a: para serem vistos pelos
homens. A oração supõe a atitude de pobreza diante de Deus,
mas a oração do fariseu pretende uma expressão de grandeza.
Jesus mostra que a autêntica e boa fama é conferida por uma
oração que é expressão das obras de justiça e caridade.
Quando vocês rezarem, não usem muitas palavras [].
Eles pensam que serão ouvidos por causa do seu palavreado
(Mt 6,7s). Jesus critica a oração mecânica e mágica dos
palavreados que veem na repetição de fórmulas uma correta
relação com Deus. Ele rejeita a oração que não é expressão do
mais profundo do ser que ora e a autonomia absoluta que se dá
à oração (sacralizando-a em fórmulas).
Jesus também critica a oração alienante. A oração sem ação é
vã. Meramente clamar Senhor, Senhor não é expressão de
uma práxis. É no fazer o que seja a vontade de Deus, que se
manifesta a ultimidade de sentido
5
. É o que vemos em Mt
7,21: não basta chamar ao Senhor. Só entrará [no Reino]
aquele que põe em prática a vontade do meu Pai, que está no
céu.
E em Lc 12,38-40: "Tenham cuidado []. Eles []
exploram as viúvas e roubam suas casas e, para disfarçar, fazem
longas orações. O que se condena aqui é a oração que se
converteu em mercadoria. Faz lembrar Oséias (4,6ss) que diz
que os sacerdotes se alimentam das vítimas oferecidas pelo
pecado e por isso lhes convém que o meu povo continue
pecando. O mau uso do templo, sua perversão é o alvo da
crítica de Jesus.
Por fim a citação de Lc 3,21 em que Jesus, depois de
batizado, estava rezando. E do céu veio uma voz: Tu és o meu
5 Jon SOBRINO,
A oração de Jesus e do cristão
, p.15.
134
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Filho amado! Em ti encontro o meu agrado. E mais adiante
(Lc 9,29), enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua
roupa ficou muito branca e brilhante. Mais que palavras de
Jesus temos aqui uma reflexão de Lucas. Nas narrações do
batismo e da transfiguração aparecem fenômenos maravilhosos
que enfeitam o essencial: a unção com o Espírito, a consciência
de Jesus sobre a sua própria missão, a filiação única de Jesus.
Todas essas passagens mostram Jesus consciente e
conhecedor das falsificações típicas da oração. Doutro lado os
Evangelhos mostram Jesus em atitude de oração. Vemos Jesus
que abençoa a mesa, observa o culto sabático e reza junto com a
comunidade. Vemos Jesus rezando quando precisa tomar
decisões sintonizado com acontecimentos históricos e em
conexão explícita com o Pai. O vemos rezando em momentos
de decisões importantes como eleger os doze, ensinar o Pai
Nosso, etc. Vai ao monte, a um horto, ao deserto. Distancia-se
de sua atividade pública, embora isso não signifique separação
da práxis da vida. A oração lhe era habitual, reza em situações
históricas concretas.
Há, ainda ocasiões em que Jesus condensa o mais profundo
de sua vida e missão numa oração: Eu te louvo, ó Pai, Senhor
do céu e da terra, porque ocultaste essas coisas aos sábios e
doutores e as revelastes aos pequeninos (Mt 11,25; Lc 10,21).
Jesus dá graças porque fez-se o que parecia impossível: quem
parecia poder compreender não compreende, mas
compreenderam os que pareciam não consegui-lo. Jesus reza ao
Pai dizendo muito obrigado porque aconteceu algo
inesperado e maravilhoso, uma atividade histórica com
profunda experiência de sentido.
Outra oração referencial de Jesus é a do Horto: Pai [],
afasta de mim este cálice; porém, não o que eu quero, mas o
que tu queres (Mc 14,35; Mt 26,39; Lc 22,41)}. Quando a crise
questiona o sentido de sua vida, Jesus vai para a oração, coloca-
ZANANDRÉA, Rene.
A oração em tempo de distanciamento social
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se diante do Pai. A oração do Horto condensa a crise de Jesus
durante toda a sua vida. É uma oração que desemboca numa
ação histórica: a decisão de ser fiel até o fim.
Enfim, a oração de Jesus vai se manifestando na busca da
vontade do Pai, na alegria da chegada do Seu Reino, na
aceitação fiel da Sua vontade até o fim e na confiança
incondicional a Ele. Orar, para Jesus, é expressar-se em
totalidade. A oração de Jesus é como é, porque nasce de uma
determinada compreensão de alguém que lhe é referência: um
Deus bem determinado.
2.2 A oração da Igreja
Sem esquecer que antes de ser templo, a Igreja foi casa e aí
começou a experiência cristã, também é verdadeiro o
pensamento de S. João Crisóstomo: Se é verdade que tu podes
rezar em casa, não te será, todavia, possível rezar do mesmo
modo como se reza na assembleia. Para Goffredo Boselli, a
Liturgia é escola de oração: O verdadeiro culto cristão
empenha o homem em sua inteireza. E a manifestação ritual do
culto existencial acontece através de um culto de palavra, ou
seja, a oração
6
. Significa que, quanto mais o homem é
plenamente palavra, ou relação, tanto mais ele é plenamente ele
mesmo. E a liturgia é um importante lugar onde o cristão é
educado à oração. E é Deus quem educa seu povo para a oração
através da Liturgia. É Deus, antes de tudo, que ensina seus filhos
a rezarem.
A oração litúrgica segue um movimento, uma dinâmica.
Três elementos que se sucedem: escuta, interiorização,
interpretação. A liturgia educa para a oração indicando a
primazia da escuta da Palavra de Deus contida nas Escrituras
7
.
Significa que a palavra humana é segundo ato, como resposta. É
6 Goffredo BOSELLI,
O sentido espiritual da Liturgia
, p.142.
7 Goffredo BOSELLI,
O sentido espiritual da Liturgia
, p.148.
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importante a consciência de que é Deus a origem da oração; Ele
é a sua causa e razão. Assim, toda a oração litúrgica deve ser
fortemente marcada pela primazia da Palavra de Deus. Se a
liturgia fala a língua das Escrituras, com o tempo o fiel poderá
se alimentar da Palavra, memorizá-la, criar dentro de si um
coração bíblico, afirma Boselli.
Depois, a oração nascida da escuta da Palavra deve ser
interiorizada por cada orante. Se a liturgia não educa para a
interiorização, ela não atinge seu fim educativo. Ela deve
predispor tempo de escuta e tempo de silêncio.
Mas a oração é também ato de interpretação, tentativa de
decodificar e tomar consciência de algo obscuro. Ao rezar
preciso saber colocar em relação o sentido objetivo do texto e o
sentido subjetivo que o texto indica. Assim, a liturgia, como
sábia pedagoga, educa o cristão a ir além da própria liturgia, a
fim de alcançar, na oração, a comunhão com Deus.
A oração cristã, é ato gratuito. Assim como Deus desce ao
nosso encontro, nós, deixando-nos tomar pela mão e
abandonando o nosso eu encontramos no absolutamente
Outro a referência para nossa ação e reflexão. Desse modo a
vontade de Deus faz um caminho em nós, como ensina o Papa
Francisco: da cabeça (entendimento) ao coração (sentimento) e
do coração às mãos (ação).
3 Rezar e de preferência com a Palavra inspirada
Recentemente escutei um professor dando alguns conselhos
a respeito da oração, numa palestra
on-line
. Foi importante
constatar com ele que a pior forma de oração é não rezar. Disse
ainda que existe uma coisa fundamental na oração que é o
silêncio; que rezar requer humildade, entrega, confiança em
Deus; sugeriu rezar com mantras: cante várias vezes e depois
deixe que Deus te fale ao coração; recomendou a oração em
família: como é importante seja no almoço, ou na janta...
ZANANDRÉA, Rene.
A oração em tempos de distanciamento social
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Revista Teopráxis, Passo Fundo, vol.37, n.129, Jul./Dez./2020, ISSN: 2763-5201
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quando se reza em família, Deus desce pra fazer morada naquela
casa; e, muito importante, recomendou a Leitura Orante da
Palavra de Deus: comece lendo, simplesmente.
Um retrato das comunidades, no livro dos Atos dos
Apóstolos, testemunha a perseverança dos primeiros cristãos
em ouvir o ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna,
no partir o pão e nas orações (At 2,42). Isso que costumamos
chamar de pilares, se constitui em ideal de Igreja e projeto
para um mundo possível.
Uma significativa parcela da população reza. Porém, o fato
de poucos terem citado a oração com as Sagradas Escrituras na
primeira rodada de entrevistas, deve preocupar. Reafirma uma
intuição de que os cristãos católicos ainda não valorizamos o
bastante a primazia da Palavra de Deus na oração que necessita
ser diálogo. Doutro lado uma parcela significativa de
entrevistados informou que reza com o calendário bíblico da
Igreja. E é louvável quando, também nas celebrações da Igreja
seja nos Sacramentos ou sacramentais ou nas demais celebrações
da vida os textos escolhidos sejam precisamente os indicados
pelo calendário litúrgico. O Ano Litúrgico, grosso modo, já
estava constituído desde o século IV e vai sendo aperfeiçoado ao
longo dos tempos.
Será importante reaprendermos com Jesus. Ele reza
especialmente na observação do cotidiano, com a Lei e os
Profetas e na escuta à vontade do Pai.
Isso se constitui desafio para as nossas liturgias que precisam
ser menos aéreas, das nuvens, teóricas (palavrório). Urge
trabalhar, orientar e formar para que os agentes da liturgia
possibilitem a oração encarnada, que contemple e valorize o
veio da Palavra e o veio da encarnação, a sensibilidade do
cotidiano com suas vitórias e desafios. Também as reflexões
(homilias) precisam ser bíblicas, que busquem entender o texto
no seu contexto originário e que provoquem conversão no
tempo presente.
138
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Há que se promover oração e uma liturgia que possibilite ao
humano perceber-se pobre, que encontra suas seguranças não
nas coisas, mas na busca intensa e sincera de Deus; uma oração
e uma liturgia que eduque a ancorar o coração nEle e a
redescobrir o próximo, com gestos concretos de ajuda mútua;
oferecer o acompanhamento recíproco, mesmo que de forma
virtual, mas que vai muito além do nosso pequeno círculo
existencial.
Há uma gama enorme de pessoas que estão em busca.
Citando um teólogo ortodoxo, Tomás Halik afirma que
sabemos onde a Igreja está, mas não sabemos onde não está
8
.
E sugere que nos desafiemos a procurar novamente Cristo.
Aproveitar a pandemia como
Kairós
: um momento oportuno
para nos fazermos ao largo e procurar uma nova identidade
para o Cristianismo, num mundo que muda radicalmente sob
os nossos olhos.
Na gratuidade de Deus, buscar inspiração para ações
gratuitas também. Na música ComunicArt, o Pe. Zezinho
(CD Alpendres, Varandas e Lareiras de 1999) canta: Todos
os dias faço uma oração [] por mim, pelo mundo, por algum
irmão [] com um Salmo ou [] me renovo pela oração.
Rezo pra que as coisas mudem, mas, sem ódio, sangue ou
opressão []. Quero que a revolução da paz seja feita no meu
coração.
E o mesmo padre, durante uma homenagem que recebeu
em Aparecida/SP em julho/2014 disse que precisamos rezar
olhando as situações presentes (notícias mundiais e locais;
acontecimentos cotidianos); é preciso saber para quem e porque
ora; rezar não pode ser algo que eu tiro da minha devoção; não
pode ser só algo que eu estou com vontade de falar; precisa
partir da necessidade do povo, do mundo; precisamos orar mais
8 Tomás HALIK,
O Sinal das Igrejas Vazias
: para um cristianismo que volta a
partir, p.16.
ZANANDRÉA, Rene.
A oração em tempos de distanciamento social
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pelos outros do que por nós mesmos; é um serviço que a Igreja
presta; se somos chamados a anunciar Jesus, temos a grave
obrigação de saber porque oramos; e mais: saber orar do jeito
da Igreja (com seu ensino); um cristão não pode ser favorável ao
aborto, ao divórcio; um cristão não pode determinar o que
Deus deve fazer ou não; o Reino de Deus cresce, não porque se
tem dinheiro mas cresce porque você serve/ajuda o outro. E
encerra: nosso canto não é nosso, nosso talento não é nosso,
nossa palavra não é nossa. Se não for dado à Igreja não é bom, é
desperdício. Que Deus nos encontre sempre fiéis; que nos faça
gente que mais ouve do que fala; e, se falar, falemos coisas que
valham à pena.
Nosso tempo pede por uma Igreja que reza e ensina a rezar
a partir da Revelação, com o olhar para a Utopia do Reino e
com os pés firmados no tempo presente onde Deus nos plantou.
Da mesma forma como a chuva e a neve [], a minha palavra
que sai de minha boca não volta para mim sem efeito [], a
missão para a qual eu a mandei (Is 55,10).
Atendamos ao apelo da Igreja que há tempos insiste na
Lectio Divina
como método bastante apropriado para acolher
em nós a Palavra de Deus. É tão relevante essa indicação que
está proposta nas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora
2019-2022 e em alguns outros documentos da Igreja no Brasil.
Oxalá o deserto dessa pandemia faça germinar em nós um
jeito novo de rezar, parecido com o de Jesus; e comprometa a
liturgia da Igreja na tarefa que é sua: ensinar a rezar pelo jeito
como reza (mistagogia).
Concluindo
O Papa Francisco, na audiência geral do dia 19 de agosto de
2020, disse: A resposta à pandemia é dupla: por um lado, é
essencial encontrar uma cura para um vírus pequeno, mas
terrível que põe de joelhos o mundo inteiro; por outro temos de
140
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curar um grande vírus, o da injustiça social, da desigualdade de
oportunidade, da marginalização e da falta de proteção para os
mais débeis. Nesta dupla resposta de cura há uma escolha que,
segundo o Evangelho, não pode faltar: é a opção preferencial
pelos pobres. E esta não é uma opção política; nem mesmo uma
opção ideológica, uma opção de partidos Não. A opção
preferencial pelos pobres está no centro do Evangelho. E o
primeiro a fazê-lo foi Jesus, como vemos na Carta aos
Coríntios: Ele sendo rico se fez pobre para nos enriquecer. Fez-
se um de nós e, por isso, no centro do Evangelho existe esta
opção, no centro do anúncio de Jesus
9
.
As convicções desse Papa só podem ser inspirações
alcançadas na oração fundamentada na Palavra de Deus.
Francisco reza pelo mundo e com o mundo, sua história. A
oração cristã fundamentada nos textos sagrados consegue
libertar e encorajar. Liberdade e encorajamento que foram
experimentadas por incontáveis testemunhas da Ressurreição
como, por exemplo, Dom Pedro Casaldáliga que viveu sem
luxo e quis ser sepultado no chão, à beira do rio em São Félix
do Araguaia, na mais bonita de todas as catedrais do mundo: a
criação (a citação é a legenda de uma foto do local onde foi
sepultado, postada numa rede social no dia 12/8/2020).
Referências bibliográficas
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Carmelitas Descaças do Mosteiro Santa Tereza de São Paulo. Brasília: Ed.
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O itinerário da Palavra de Deus: ouvido, coração e mãos
(Homilia, 31/1/2018).
FRANCISCO, Papa. Texto integral da homilia do Papa Francisco neste 27
de março. Acesso em: https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2020-
9 Vídeo:
Festa da Comunicação na Igreja
, em 2h03min28seg.
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03/papa-francisco-homilia-oracao-bencao-urbe-et-orbi-27-marco.html
HALIK, Tomás.
O Sinal das Igrejas Vazias: para um cristianismo que volta a
partir
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.
Publicação do dia 20/7/2020. Acesso em:
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SOBRINO, Jon.
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. Trad.: Maria Joana de Brito.
São Paulo: Loyola, 1981. (original: México, 1977).
Vídeo:
Festa da Comunicação na Igreja
- 25/07/2014. Link:
https://www.youtube.com/watch?v=Nppf3bT6wxo.
CANTO E MÚSICA LITÚRGICA
como cultivar uma espiritualidade unificadora
em meio aos desafios da pandemia?
Ms. Eurivaldo S. Ferreira*
Frei Telles Ramon, O. de M.**
DOI: https://doi.org/10.52451/teopraxis.v37i129.14
Recebido: 03 de março de 2019 | Aprovado: 09 de junho de 2019
Resumo:
Em meio à pandemia aumentaram os mecanismos de transmissão
para as celebrações paroquiais e diocesanas. A porção do povo de Deus saiu
do caráter territorial jurídico caracterizado pela Igreja Particular e passou
para o além-fronteiras da realidade cibernética. Os elementos simbólico-
rituais da celebração litúrgica deixam de ter sua relação de proximidade
devido ao distanciamento social. As assembleias, sem poderem participar
ativamente dos ritos através dos sentidos ficaram privadas do paladar, do
olfato, do olhar, do escutar e do tato, percepções reais que aguçam à
participação em tempos normais. As chamadas telas dos aparelhos eletrônicos
dividem o olhar com outros aplicativos seja de chamadas, entretenimento e
informação ou comerciais. Em meio a tudo isso, como garantir que os
elementos simbólico-rituais cumpram sua função significativa de agregar às
liturgias seu poder revelador mistérico? Como desvelar o segredo dos ritos
por meio das telas sem a participação ativa das assembleias? A música
litúrgica se coloca como um desses elementos altamente simbólicos e
* Mestre em Teologia, com concentração em Liturgia, pela PUC/SP. Especialista
em Liturgia pelo IFITEG-GO. Graduado em Teologia pela PUC/SP. Músico.
Membro da Rede Celebra de Animação Litúrgica. Membro do Corpo Eclesial de
Compositores da CNBB. Membro do Universa Laus. Agente da Pastoral
Litúrgica na Paróquia Santo Antônio do Bairro do Limão, Arquidiocese de São
Paulo. Email: euriferreira@gmail.com
** É presbítero da Ordem de Nossa Senhora das Mercês, com atuação da Diocese de
Santo André/SP. Membro do Corpo Eclesial de Compositores da CNBB. É
redator do Subsídio litúrgico-catequético da CNBB Igreja em Oração.
Produziu as gravações dos álbuns: Hino da CF 2018, CF 2019 e CF 2020 e
Cantos quaresmais. Pela Ed. Paulus gravou os seguintes álbuns: Chamaste-me,
Senhor, Cristo, Clarão do Pai, O Mistério em Canto, Povo de Deus, povo
sacerdotal e Ao Coração de Cristo. Email: freitellesramon@msn.com
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reveladores dos mistérios da fé. Ela ajuda a comunidade a vivenciar as ações
rituais, sendo o próprio rito ou acompanhando as ações rituais. Nesse nosso
artigo fazemos alguns questionamentos sobre a produção, a execução e os
embates do campo musical que trouxeram a pandemia e as celebrações
virtuais. Como nenhum setor estava preparado para isso, a intenção não é
apontar autorias ou até mesmo provocar a polêmica, mas sim elucidar e
retomar alguns pontos conquistados após o Concílio Vaticano II e que
podem ser revistos e colocados em prática à medida em que o que está em
jogo é a participação ativa, plena, consciente, frutuosa, interna e externa do
povo de Deus através das celebrações litúrgicas.
Palavras-chave:
Liturgia. Música litúrgica. Assembleias. Espiritualidade.
Pandemia.
Introdução
A liturgia entendida e vivida como fonte de espiritualidade
foi uma das grandes e preciosas redescobertas do Concílio
Vaticano II. A Constituição Conciliar
Sacrosanctum Concilium
(SC) nos recorda a identidade original da Sagrada Liturgia: Ela
é a primeira e necessária fonte onde os fiéis hão de beber o
espírito genuinamente cristão (SC 14).
Ao participarmos da liturgia, nos é dada a oportunidade de
aderir e interiorizar o jeito de ser de Jesus Cristo que, pela ação
do Espírito Santo, forma em nós um homem novo, uma mulher
nova, pela força pascal de Jesus e nos transforma integralmente,
seja na nossa realidade pessoal e social.
Com essa evolução e redescoberta, ou seja, volta às
origens, a liturgia deixa de lado aquele arcabouço rígido e
pesado que decorre de uma compreensão ritualística e formal e
passa para uma assimilação e experiência vital da liturgia como
caminho mistagógico - uma porta de entrada eficaz para se
adentrar no Mistério de Cristo, o qual realiza no ser humano a
transformação pascal, que nos faz encontrar nossa real
identidade em Cristo.
Dentre as ações rituais, sinais sensíveis, palavras e gestos,
FERREIRA, Eurivaldo S.; RAMON, Telles.
Canto e Música Litúrgica
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destacamos a força do canto e da música na liturgia. A música
litúrgica é aquela que, com sua letra (poesia) e melodia, cumpre
o papel de ser parte integrante da ação litúrgica, ou sendo o
próprio rito, ou acompanhando a ação ritual. Além disso, o
canto e a música litúrgica devem ser a expressão da fé de uma
comunidade, pois se trata de viver a experiência de se entrar no
mistério pascal quando se canta.
1 Da música de igreja à música litúrgica
Reconhece-se uma música litúrgica por sua natureza ritual.
Não basta apenas que o texto diga palavras religiosas ou de
cunho sagrado. A esta música nós chamamos de música
religiosa, mas não está apta para servir a liturgia. Recorremos,
então, à história para podermos identificar a evolução da música
que adentrou aos templos até chegarmos no conceito da música
que habitualmente empregamos hoje.
A partir de estudos acadêmicos é possível verificar e aprofundar
a classificação da música que serviu aos cultos litúrgicos durante
um período considerável da história da Igreja. E com a reforma
protestante (séc. XVI) todos os cantos passariam então a ser
chamados de música de Igreja. Tratava-se então de
compreender que se falava da música destinada ao culto, mas
com uma percepção bem limitada, o que excluía, por sua vez, a
música herdada das comunidades judaico-cristãs, por exemplo.
Já a música sacra, denominação mais comum para a música
das igrejas cristãs, além de simbolizar uma característica de
música, foi a que mais concorreu para o serviço litúrgico.
Trata-se de uma música que foi composta para servir a liturgia
com adaptações ou adequações que, por sua natureza, teve
origem na música erudita. Mas a mesma música sacra que servia
às ações litúrgicas era também objeto de comemorações
públicas ou privadas, externas às ações rituais cristãs, apreciadas
até hoje em teatros, concertos e outras ocasiões.
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É a partir do Concílio Vaticano II que entre os católicos se
adota o termo música pastoral, com o intuito de identificar a
música aliada à função pastoral das comunidades locais. A
intenção é que esta música seja um ponto de ligação entre as
diversas atividades da Igreja e sua diaconia. Mas pastoral
também é um termo geral, o que não especifica muito a
linguagem musical que se deseja para a música ritual.
Como alternativa à música pastoral estudos pós-conciliares
adotaram a expressão música ritual para a música propriamente
que se relaciona com os ritos e as ações litúrgicas. Um grupo
internacional de estudos ligados à música da Igreja pós-
conciliar chamado Universa Laus designa esta música como
sendo uma música ritual cristã, pois denomina o que se faz nos
ritos, já que a eles está ligada.
Um termo também bastante ocorrente é música litúrgica
ou música ritual, o que possibilita alargar a compreensão por
tratar da música de culto da tradição judaico-cristã. Esta música
tem ênfase no rito, nas palavras, nas ações, no espaço físico e na
melodia em si. Portanto, é um termo mais adequado e
apropriado para a música do culto cristão. É a partir dessa
terminologia que ampliamos nossa discussão.
É bom também lembrar que todas as religiões possuem
músicas que estão ligadas às suas ações rituais e que diferem da
música de outros ambientes não religiosos. Mas a música ritual
não é propriedade apenas das religiões. Os povos indígenas, por
exemplo, possuem um repertório imenso de música ritual, e
essas músicas nem sempre estão ligadas às formas de celebrações
religiosas, mas sim ao contexto cultural e do ambiente em que
vivem. São conhecidas do folclore brasileiro as músicas que
acompanham festejos populares, como músicas de chegada, de
partida, de velórios, de comemorações, de danças de rua, de
brincadeira e diversão etc. Esse repertório foi pouco a pouco se
inserindo na musicalidade do povo brasileiro, chegando até
mesmo a fazer parte da música popular brasileira.
FERREIRA, Eurivaldo S.; RAMON, Telles.
Canto e Música Litúrgica
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2 A música litúrgica possui propriedade e fins específicos
Digamos que é de suma importância que todos os que estão
envolvidos com a música litúrgica nas dioceses, paróquias e
comunidades cristãs tenham consciência, antes de tudo, da
compreensão da natureza funcional e da característica ritual da
música litúrgica. Daí nasce o entendimento de que a criação de
novas composições não é um assunto encerrado, mas sim, que
exige estudo, aperfeiçoamento e aprofundamento em algumas
áreas de competência e que ajudam em muito a formar
especialistas e compositores nesta área.
O Estudo 79 da CNBB:
A música litúrgica no Brasil
vai
afirmar que é isso que, em cada caso, definirá as escolhas a
serem feitas em termos de texto, melodias, ritmos, arranjos,
harmonias, estilos de interpretação etc. O importante é que
determinada criação musical sirva para a comunidade celebrante
desempenhar bem o rito que realiza (n.197). E ainda continua
dizendo que esta funcionalidade da música litúrgica, ao
delimitá-la com precisão, em nada vem a prejudicar sua
qualidade como arte musical, nem bloquear a inspiração do
artista litúrgico (n.198). Por isso, ao falarmos de produção de
novas músicas litúrgicas, devemos levar em consideração os
aspectos acima, pois são alertas positivos já assegurados pelos
bispos que reuniram numa obra os estudos técnicos sobre a
música litúrgica. Passamos então a tratar de conteúdos específicos
para as letras dos cantos que cantamos em nossas celebrações.
Isso significa dizer que a Igreja não se fechou à criação de
novas composições, mas que se faça com clareza o incremento
de repertório significativo para se preencher eventuais lacunas.
Não se trata de compor por compor. O compositor, outro
importante ministério na vida da Igreja, é aquele sujeito que,
com a arte das palavras, da poesia, da música e da harmonia,
oferecerá à comunidade de fé uma música litúrgica feita de
textos enriquecidos com uma tal beleza, cujo valor, verdade e
148
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graça não são medidos apenas pela sua capacidade de suscitar a
participação ativa, nem (só) por seu valor estético-cultural, mas
(principalmente) pelo fato de permitir aos que creem implorar
os Kyrie eleison dos oprimidos, cantar os Aleluias dos
ressuscitados, sustentar os Maranatha dos fiéis na esperança do
Reino que vem (Universa Laus).
Quanto às músicas tradicionais, aquelas que atravessam
gerações, é importante lembrar da importância de determinada
música em tempos específicos de nosso cotidiano. Não se canta
Noite feliz no mês de fevereiro, por exemplo; as marchinhas
de carnaval são mais próprias do período de carnaval; assim
como as músicas caipiras retomam com sua força própria nos
festejos juninos; um grupo de soldados desfila ao som dos
dobrados; muitas músicas populares nasceram em meio a
manifestações sócio-políticas no conjunto da nossa construção
democrática. Portanto, podemos falar de um tesouro audível
que guardamos e que, de tempos em tempos, nós o resgatamos
para servir a esta ou àquela situação.
Da mesma forma é o canto tradicional religioso ou litúrgico
que perdura por tempos na Igreja. Este nunca deixará de ter sua
função para a comunidade de fé. O que seriam nossas sextas-
feiras santas sem o Vitória, tu reinarás? Esses cantos ressurgem
com certa força e vibração em tempos fortes da Igreja, por isso
pertencem ao que chamamos de reserva simbólica, já que
retornam em certas ocasiões e nos trazem a memória de um
tempo litúrgico ou uma comemoração específica pelos quais
alimentamos nossa fé.
3 Desafios e critérios para a música litúrgica
Contudo, carece-nos esclarecer, e aqui chegamos ao ponto
central de nossa reflexão, quais são os desafios que nos
colocaram esse período de pandemia para a música litúrgica,
para os ministros que ocupam esse papel nas celebrações e para
FERREIRA, Eurivaldo S.; RAMON, Telles.
Canto e Música Litúrgica
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a Igreja em geral. Antes de tudo, recordemos os critérios básicos
que direcionam para que o canto e a música estejam ligados à
ação litúrgica: a beleza expressiva da oração, a participação
unânime da assembleia nos momentos adequados e o caráter
solene da celebração.
Em sua Revista de Liturgia escreveu Ir. Penha Carpanedo que
O ícone mais representativo da participação litúrgica requerida
pela reforma do Concílio Vaticano II é uma assembleia cantando
a uma só voz. É quando a fé de uma comunidade reunida se
expressa em sinais como o canto e a música, alguns dos quais
mais sensíveis de nossa cultura, especialmente quando
enriquecidos com nossos ritmos e com nosso gingado
1
.
Ademais, acrescentamos que
A música não é um acessório na liturgia, mas é parte integrante
do rito. Com seu significado visa suscitar na assembleia uma
atitude de fé que brota do coração, seja no simples canto a
capella, seja quando produzida ou acompanhada pelo som dos
instrumentos, incluindo os de percussão. Desse conceito podemos
extrair ótimos resultados quando o que está em jogo é a grande
influência que exercem o canto e a música na vida de muitas
comunidades
2
.
Ao reforçarmos os três critérios básicos elencados acima,
superamos, por exemplo, aquelas músicas que se veiculam com
certas marcas da subjetividade, do devocional de caráter
estilizado, do sentimentalismo, pois essas estão distantes da
objetividade da fé. A música é parte integrante da ação litúrgica
(cf. SC 112), tem caráter teológico, está a serviço da letra no seu
contexto ritual [canto de abertura, por exemplo, tem a ver com
ritos iniciais e o tempo litúrgico, canto de comunhão tem a ver
com o evangelho do dia e o tempo litúrgico].
1 Penha CARPANEDO, In:
Revista de Liturgia
cantando a uma só voz, n.251, p.3.
2 Penha CARPANEDO, In:
Revista de Liturgia
cantando a uma só voz, n.251, p.3.
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A função da melodia aliada aos instrumentos musicais é
reforçar o sentido da letra. Quando se canta as chamadas Partes
Fixas da missa, o texto presente no Missal Romano deve
prevalecer sem alterações e acréscimos desnecessários. Esse
conjunto de textos próprios da missa requer melodias simples e
objetivas, que enfatizem o que diz a letra.
4 Quem canta? Como se canta a música litúrgica?
Quanto à forma de cantar, o canto litúrgico não pode
reproduzir o estilo dos programas de auditório. Não se trata de
um show em que os atores projetam sua voz e fazem sua
performance; trata-se de uma assembleia em oração, e o canto é
expressão desta oração. Portanto, é necessário cuidar da
adequada formação litúrgica e espiritual de todos que atuam
nesse campo pastoral da Igreja (cantores, instrumentistas,
compositores, poeta, letristas e técnicos). É fundamental que
tenham conhecimento da natureza eclesial da liturgia, do seu
sentido teológico e espiritual, das orientações quanto à forma e
sentido de cada rito. E que não seja apenas uma formação
teórica e técnica, mas que proporcione uma verdadeira
experiência do celebrar.
Ao lado da música litúrgica estão também outros elementos
altamente simbólicos e significativos para o alimento da fé da
comunidade. É importante se ter consciência da própria
sacramentalidade de toda ação litúrgica. Às ações de uma
assembleia correspondem as ações simbólicas, a composição
simbólica do espaço, dos objetos, das vestes litúrgicas. A
harmonia desses elementos contribui e muito para que o
mistério possa ser revelado com nobre simplicidade. No que diz
respeito à música, temos no Brasil um repertório variado,
consistente e acessível, incluindo o Hinário Litúrgico da
CNBB. É necessário se visitar esse arcabouço, como já o
dissemos no começo de nosso artigo.
FERREIRA, Eurivaldo S.; RAMON, Telles.
Canto e Música Litúrgica
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Certamente a pandemia deixou nossas assembleias vazias, e o
corpo eclesial celebrativo não pôde se reunir para fazer sua ação
de graças de louvor ao Pai, pelo Filho, no Espírito, através da
principal celebração litúrgica: a Eucaristia. É louvável que
muitos ministros do canto e da música litúrgica estão se
esmerando para que seja assegurada minimamente possível uma
música de qualidade nas celebrações que são transmitidas via
redes sociais ou aplicativos virtuais. Vimos muitos grupos,
cantores e instrumentistas se empenhando nisso. Mas também
notamos muito empobrecimento nessa área. Contudo, isso não
é fruto apenas da pandemia ou do distanciamento social que nos
trouxe a pandemia. Antes mesmo isso já era percebido.
Circulou entre nós vídeos em que músicos discutiam com o
padre que estava presidindo a celebração, pois este padre queria
pedir músicas para serem cantadas de improviso ali na hora da
celebração. Outro ainda em plena transmissão rejeitava o
repertório escolhido pelo cantor, criticando o conteúdo da letra.
Pelo menos foram os dois exemplos que nos vieram à mente,
mas o leitor certamente deve ter visto outros vídeos desses
circulando. Diante desses dois exemplos questionamos o
modelo operativo que ocupa a música litúrgica ou a música nos
contextos dos templos e dos nossos dias. Não se trata de simples
casuísmo. Não é cantar por cantar ou cantar para simplesmente
preencher um espaço vazio. A música litúrgica não se destina a
este fim. Ela é fruto de um conjunto ritual e esse propósito deve
ser obedecido, seguido e vivido por quem se propõe a trilhar
nesse ministério.
5 Pequenas assembleias reunidas
Por outro, lado nos perguntamos: quem é esta pequena
assembleia reunida para celebrar o Dia do Senhor e fazer sua
transmissão a tantos quantos se destinam a assisti-la? Não
imaginemos que os cantores e instrumentistas presentes nessas
152
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transmissões deixam de ser assembleia pelo simples fato de
estarem exercendo uma função ministerial. Certamente trata-se
de uma assembleia reduzida, dois ou três, um grupo de
familiares talvez, que se reuniu para animar essas transmissões.
Verdadeiro serviço exerceram esses que, doando seus
talentos, puderam fazer com que o povo tivesse acesso a essas
celebrações via redes sociais. Embora não seja o ideal: o virtual,
o distante, mas também nos entristece o fato de que não
estávamos preparados para isso. Nossos irmãos evangélicos,
neopentecostais ou protestantes estão há anos-luz à nossa frente
quando o assunto é transmissão midiática. De certa forma, eles
já vêm fazendo isso há muito tempo com assembleias cheias e
comunicação imediata que satisfaz e atende bem a seu público.
Logicamente não é o desejado pela Igreja: celebrações sem
assembleias, isto é, sem povo. Onde estiverem dois ou três
reunidos, eu estarei no meio deles, assim disse Jesus. As
celebrações só têm sentido se ali estiver reunido o povo de
Deus. Um é quem preside esta assembleia, os demais servem a
esta mesma assembleia, cada um fazendo somente aquilo que
lhe compete, embora sendo membros desta mesma assembleia.
A função ministerial da assembleia é ser assembleia.
Analisando mais profundamente essas celebrações sob o
ponto de vista de sua ministerialidade, o mais estranho que nos
pareceu é que alguns presidentes interagem com o usuário da
mídia social como se ali este usuário estivesse presente,
esquecendo-se que minimamente havia em torno dele uma
assembleia fisicamente presente, isto é, o pequeno grupo de
cantores e instrumentistas que se propôs a cantar aquela celebração.
6 Das liturgias à dura realidade social
Há de se levar em conta também o conteúdo textual das
músicas que se oferecem nessas celebrações. Há muito conteúdo
textual nessas músicas que não possui sequer perspectivas sérias
FERREIRA, Eurivaldo S.; RAMON, Telles.
Canto e Música Litúrgica
153
Revista Teopráxis, Passo Fundo, vol.37, n.129, Jul./Dez./2020, ISSN: 2763-5201
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dos conceitos de Igreja do Concílio Vaticano II. Além disso,
nota-se certo hibridismo textual, por exemplo numa música
veiculada o texto afirma que a comunhão é para nos preservar
em ti. Muito mais que isso, o ato de comungar
sacramentalmente sob as espécies do pão e do vinho é para
sermos um com o outro. E quando recebermos o corpo e o
sangue dele oferecidos, o Espírito faça de nós um só corpo e um
só espírito. Fazei de nós um só corpo e um só espírito,
afirmamos no meio da oração eucarística. Note que não se trata
de conceitos antropológicos, mas são conceitos teológicos que
têm consequências no cotidiano das pessoas de fé. Não se trata
de uma preservação no sentido de conservação, como se o
nosso corpo fosse uma espécie de museu que preserva a
comunhão sacramental recebida. Como não se tem a Teologia
como base para a construção da letra, fica difícil se apropriar dos
conceitos básicos da fé quando se refere a letras de música que
cantam questões sacramentais. Sobre este tema requer uma
catequese aprofundada e outro artigo careceria para refletirmos
o assunto.
Outra coisa ainda é dizer que para cada tipo de música se
percebe uma interpretação diferente por parte dos cantores,
como se estivessem num show, cheios de expressões faciais e
corporais que nada condizem com a letra. Aliás, digamos que
muito mais que sonoridade vocal, alguns cantores investem em
extrair das assembleias apenas as mãos balançando ao alto, pulos
e palmas. Isso é infantilizar as assembleias e empobrecer o
sentido gestual-musical que se requer quando se canta com a
assembleia a fim de lhe assegurar a afinação e a participação. O
que está em jogo quando se canta é a voz. Dela se origina o
sentido da participação pelo sentido vocal requerido pela
reforma litúrgica pós-conciliar: que a voz acompanhe com a
mente aquilo que se faz enquanto rito. Deixemos a tarefa
saltitante e eufórica para os programas de auditório e para os
cantores populares em geral quando estes estão em seus shows.
154
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Quando também estão em jogo nessas transmissões a
imagem, o que importa mesmo é mostrar como eles são capazes de
fazer superproduções, vídeos magníficos com câmeras maravilhosas
de última geração e tecnologia de vanguarda. Muitos desses
clipes rolam indiscriminadamente nas redes sociais e estão
arquivadas no Youtube para se mostrar o quanto eles são
artistas, aproveitando-se do elemento religioso e da fé a fim de
mostrarem seus talentos, inclusive muitos padres embarcaram
nessa. Sem contar que o ostensório com a hóstia consagrada
virou objeto de verdadeiro marketing apelativo que toca o lado
extrassensorial das pessoas, evocando nelas emoções múltiplas.
Carece resgatar o sentido verdadeiro da nobre simplicidade,
expressão utilizada pela reforma litúrgica. A música litúrgica, o
espaço litúrgico, as vestes litúrgicas e todas as ações rituais
precisam beber desta fonte. Eis o critério para o qual
deveríamos convergir. Mas me parece que há tempos algumas
celebrações no Brasil querem mais competir com celebrações de
basílicas romanas do que viver a simplicidade de assembleias
populares com rostos sofridos e marcados pela dor, pelo luto,
pela miséria e pela falta de esperança com as quais marcaram o
povo brasileiro nesse tempo de pandemia, sobretudo ao serem
atingidas por um governo que tratou a saúde pública como um
caso privado ou particular, isto é, cada um que se salve a si
mesmo com as condições que possui.
7 Textos musicais que assegurem aprofundar a linguagem
ritual
Em certa ocasião, Márcio Antônio de Almeida, especialista
em musicologia disse numa de suas exposições que importa
olharmos para o modelo operativo do canto litúrgico, o que é
próprio de cada canto. Variam nesses modelos os cantos de
Abertura e Comunhão, com suas flexibilidades próprias. A regra
da oração vale para a regra do que se crê, e vice-versa. No
conteúdo desses dois tipos de cantos deve prevalecer aquilo que
FERREIRA, Eurivaldo S.; RAMON, Telles.
Canto e Música Litúrgica
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Revista Teopráxis, Passo Fundo, vol.37, n.129, Jul./Dez./2020, ISSN: 2763-5201
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a Igreja possui em sua mais antiga tradição da fé, isto é, o
conteúdo da fé explícito nesses cantos deve condizer com o
conteúdo da fé propostos pelos ritos celebrativos. É dos ritos
que se originam as letras, a poesia, o texto.
Notamos que certos conteúdos expressados em muitas letras
de cantos estão mais para um apelo midiático, isto é, para
seduzir pessoas, e isto deve ser imediato, ali, na hora, caso
contrário não surte efeito. De certa forma, o imediatismo é a
linguagem do momento: as mensagens devem ser instantâneas
pelos aparelhos e pelas mídias, o ouvinte ou o leitor do outro
lado do mundo deve me responder imediatamente; eu fico
monitorando se ele recebeu, leu ou não respondeu a mensagem
enviada. Isso vai tornando os indivíduos seres sensíveis, pois
tudo está muito ligado à flor da pele. Não consigo esperar mais,
a paciência não é mais um adjetivo aliado às tecnologias. A
cultura do superficial dita as regras do tempo atual, e nada se é
aprofundado. Perguntamos: vale a pena ficar mesmo na
superfície? Por que o Mistério profundo é a nossa dúvida? Por
que não se vai atrás do essencial e se abandona o que é
passageiro, transitório? Mesmo que não queiramos, as
celebrações via redes sociais ou midiáticas caíram nisso. Como
escapar dessa crise do não aprofundamento das questões
mistéricas? Há caminhos de volta?
Para Márcio ainda precisamos formar uma geração de
músicos cantores e instrumentistas a partir de uma educação
para o rito e para a linguagem ritual pela qual se vivencie o rito
como substrato de nossas produções litúrgico-musicais. A isso
nós chamamos de mistagogia, com a qual começamos nosso
artigo ao relembrarmos como se apreende a experiência vital
que passa pelos ritos e pela linguagem litúrgica. Esse jeito de
aprender e vivenciar a fé é o patamar para avançarmos no bem
celebrar, isto é, celebramos porque sabemos o que celebramos,
para quem celebramos e aonde celebramos. Isso abrange muitos
elementos da celebração, e a música litúrgica é um deles. Por
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exemplo: quando o assunto é letra poética, há mais preocupação
com a poesia do que com os significados dos ritos para a vida
daquela assembleia litúrgica. Márcio ainda recordou que é
preciso conhecer bem o que se celebra para poder devolver às
nossas assembleias o genuíno conceito de ter pelo menos o
direito de evocar suas tradições e costumes, e isso pode ser
conduzido com devidos critérios pela música litúrgica.
Para concluir
O cenário atual, a música litúrgica, o contexto da pandemia
e pós-pandemia, os aparatos tecnológicos devem, acima de
tudo, nos apontar caminhos bíblico-teológico-litúrgicos na
busca de acertar com critérios para se poder celebrar bem a
liturgia com cantos que condigam com a fé da Igreja, com
elementos simbólico-gestuais que sejam significativos para a
vida do povo celebrante, com sinais que sejam verdadeiros e
não subjetivos, seja virtual ou presencialmente.
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FERREIRA, Eurivaldo S.; RAMON, Telles.
Canto e Música Litúrgica
O DIGITAL E A VIVÊNCIA DA FÉ
(re)descobertas em tempos de pandemia
Dr. Moisés Sbardelotto*
DOI: https://doi.org/10.52451/teopraxis.v37i129.15
Recebido: 24 de fevereiro de 2019 | Aprovado: 11 de junho de 2019
Resumo:
A pandemia do coronavírus transformou a vida e a prática da
Igreja de diversos modos. Diante da suspensão de missas e de outros
encontros eclesiais em várias dioceses e paróquias do mundo inteiro, a
comunidade cristã voltou seu olhar e suas energias para o ambiente digital.
Por isso, é importante atentar e refletir sobre algumas questões
comunicacionais que surgem diante deste sinal dos tempos da pandemia e
que incidem sobre a relação entre a Igreja e o ambiente digital. Este artigo
destaca quatro pontos específicos que apontam para (re)descobertas no modo
de viver e celebrar a fé no ambiente digital: a concepção das mediações
litúrgicas e tecnológicas; de comunicação e relação; de participação e
presença; e de comunidade. Como conclusão, aponta-se que o maior desafio
pastoral é superar a lógica da substituição pela lógica da complexificação,
da complementariedade, da interligação, buscando promover uma complexa
ecologia comunicacional pastoral e também litúrgica.
Palavras-chave:
Internet. Mídias digitais. Comunicação. Vivência da fé.
Liturgia.
* Mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio
dos Sinos (Unisinos), com estágio de pesquisa (bolsa PDSE/Capes) na Università
di Roma La Sapienza, na Itália. Possui graduação em Comunicação Social -
Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É
professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Comunicação da Unisinos, onde realiza estágio pós-doutoral (bolsa
Fapergs/Capes). Seu livro mais recente é Comunicar a Fé: Por quê? Para quê?
Com quem? (Vozes, 2020). Membro do Grupo de Reflexão sobre Comunicação
da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e colaborador do Instituto
Humanitas Unisinos (IHU). Participou da Comissão Especial para o Diretório de
Comunicação para a Igreja no Brasil, aprovado pela CNBB em 2014. De 2008 a
2012, coordenou o escritório brasileiro da Fundação Ética Mundial
(Stiftung
Weltethos
), fundada por Hans Küng. Email: msbardelotto@yahoo.com.br
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Introdução
Em tempos de isolamento e confinamento, a Igreja, nas suas
várias expressões, se viu desafiada a ser mais ousada e criativa
ao repensar o estilo e os métodos evangelizadores (cf. EG 33). A
pandemia do coronavírus está transformando a vida e a prática
da Igreja de diversos modos. Diante da suspensão de missas e de
outros encontros eclesiais em várias dioceses e paróquias do
mundo inteiro começando pelo Vaticano, em que as
celebrações litúrgicas do próprio Tríduo Pascal não foram
abertas ao público a comunidade cristã voltou seu olhar e suas
energias principalmente para o ambiente digital.
Em muitos países, Estados e cidades que fecharam
praticamente tudo, a Igreja pôde continuar sendo e talvez até
mais em saída, como pede Francisco. Desta vez, porém,
pelas estradas digitais, que, como diz o papa na sua mensagem
para o Dia Mundial das Comunicações Sociais (DMCS) de
2014, também estão congestionadas de humanidade, muitas
vezes ferida: homens e mulheres que procuram uma salvação ou
uma esperança.
João Paulo II também já dizia que a internet pode oferecer
magníficas oportunidades de evangelização (DCMS 2002). Seu
sucessor, Bento XVI, afirmava que o ambiente digital não é
um mundo paralelo ou puramente virtual, mas faz parte da
realidade cotidiana de muitas pessoas e, por isso, se a Boa
Nova não for dada a conhecer também no ambiente digital,
poderá ficar fora do alcance da experiência de muitos (DMCS
2013).
Hoje, o Papa Francisco também reitera que a internet pode
oferecer maiores possibilidades de encontro e de solidariedade
entre todos; e isto é uma coisa boa, é um dom de Deus.
Segundo ele, a rede digital pode ser um lugar rico de
humanidade: não uma rede de fios, mas de pessoas humanas
(DMCS 2014).
SBARDELOTTO, Moisés.
O digital e a vivência da fé
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Revista Teopráxis, Passo Fundo, vol.37, n.129, Jul./Dez./2020, ISSN: 2763-5201
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Neste momento inédito e histórico na vida da Igreja e das
religiões em geral, entretanto, muitas vezes houve
aproximações apressadas ou distanciamentos receosos ao
ambiente digital. Isso dificulta que a pastoral, no caso cristão, se
encarne com mais profundidade na cultura emergente. Por
isso, é importante atentar e refletir sobre algumas questões
comunicacionais que surgem diante deste sinal dos tempos da
pandemia e que incidem em aspectos teológicos, eclesiológicos
e pastorais da relação entre a Igreja e o ambiente digital. O
pensamento do Papa Francisco, especialmente em suas
mensagens para o Dia Mundial das Comunicações Sociais,
contribui nesse sentido.
Neste artigo, destaco quatro pontos específicos que apontam
para (re)descobertas ou que demandam (re)significações no
modo de viver e celebrar a fé no ambiente digital: a concepção
das mediações litúrgicas e tecnológicas; de comunicação e
relação; de participação e presença; e de comunidade.
Especialmente em tempos de isolamento social, por meio da
conexão em redes digitais, essas experiências são vivenciadas de
formas inovadoras, e, portanto, o modo como a Igreja as pensa
e as enuncia também precisa ser problematizado.
1 As mediações tecnológicas da liturgia
A combinação entre o distanciamento exigido pela
pandemia e o fenômeno digital escancarou as casas ao mundo,
fazendo com que as pessoas fossem convocadas ao céu aberto
da comunicação, inclusive para viver uma nova eclesialidade
(
ekklesía
, do grego, chamar para fora), ressignificada pelo
fechamento dos templos e pela conectividade das redes. Essa
conjuntura problematizou não só a compreensão da fé, mas
também a sua própria experiência, a partir de novas mediações
tecnológicas.
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Entretanto, em todo tempo e lugar, e para toda pessoa, a
experiência de fé sempre ocorre mediada. Como afirma o
Evangelho, ninguém jamais viu a Deus; o Filho [...] foi quem
o deu a conhecer (revelou, contou, narrou) (Jo 1,18). Ou seja,
a experiência da fé cristã nasce mediada desde a sua origem,
pelo encontro com a existência humana de Jesus. Com o seu
corpo, os seus gestos, os seus discursos, a sua história, a sua
cultura. E, por sua vez, a pessoa que faz essa experiência a faz
pela mediação do seu próprio corpo seus afetos, sentimentos,
sensações.
Ao longo da história humana, há também uma série de
outras mediações da experiência de fé. A nossa relação
imediata com o rito nunca é tão direta como pensamos. Ela é,
por sua vez, mediada por
media
mais escondidas, mais antigas,
mas igualmente eficazes, que se chamam catecismo, teologia,
espiritualidade, devoção
1
.
E há também mediações propriamente técnicas e
tecnológicas. Trata-se de artifícios e artificialidades que não são
naturais, mas inventados pelas pessoas na relação que
estabelecem entre si e com o sagrado. Os gestos, a fala, a
linguagem, os símbolos, os objetos, a arte, a arquitetura, a
música, a escrita, a imagem, o digital: é mediante essa
complexa ecologia comunicacional, na qual tudo está
estreitamente interligado (
Laudato si
, n.16), que a experiência
de fé se torna possível.
O ser humano, portanto, emerge historicamente não apenas
como
religiosus
, mas também como
technologicus
e, hoje, até
como
homo digitalis
. Essa articulação entre a dimensão religiosa
e a dimensão tecnológica é constitutiva da experiência religiosa.
E a liturgia também revela uma importante dimensão
comunicacional e tecnológica, que o digital não inventa
ab
1 Andrea GRILLO, Spazio e tempo 3.0: affinità e incomprensioni fra tradizione
ecclesiale e multimedialità. In:
Rivista di Pastorale Liturgica
, Brescia, n.338,
jan./fev. 2020, p.19, tradução nossa.
SBARDELOTTO, Moisés.
O digital e a vivência da fé
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Revista Teopráxis, Passo Fundo, vol.37, n.129, Jul./Dez./2020, ISSN: 2763-5201
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ovo
, mas apenas explicita de forma mais evidente e complexa
2
.
Portanto, é preciso também olhar de forma mais complexa
para a ecologia tecnocomunicacional em que a liturgia, em
sentido amplo, é praticada e vivida hoje. As mídias digitais
podem até reconciliar os sujeitos e as comunidades com o uso
diferenciado da linguagem. A
experiência de complexidade
de
que o rito tem necessidade constitutivamente
é ampliada
antes que reduzida
pelas
new media
, graças à sua
multimedialidade e a formas complexas de participação, nas
quais palavra, música, movimento colaboram em raiz
3
. Trata-
se, como continua o autor, de novas formas de experiência,
que modificam os hábitos, as linguagens e as ideias dos homens
e das mulheres.
2 Comunicação e relação, não apenas transmissão,
encenação ou exibição
Circula nas redes um
meme
que, em tom bem-humorado,
revela um pouco a experiência durante o tempo de isolamento
social: Tenho medo de abrir a geladeira e ter uma
live
lá
dentro, isto é, mais uma transmissão ao vivo...
Isso também vale para a Igreja. Diante do ineditismo do
confinamento litúrgico, a resposta quase automática de
inúmeras dioceses, paróquias e movimentos foi promover mais
transmissões de missa ou outros momentos de reflexão,
formação e oração via TV, rádio e internet. Em muitos casos,
percebe-se um esforço muito grande, por parte de padres,
religiosos/as ou leigos/as, muitas vezes diante de limitações
tecnológicas várias, para que tais ambientes de encontro possam
ser oferecidos e, assim, se consiga superar o isolamento e
encurtar as distâncias.
2 Norberto VALLI, Liturgia e tecnica: storia di amore e diffidenza. In:
Rivista di
Pastorale Liturgica
, Brescia, n.338, jan./fev. 2020, p.14-18.
3 GRILLO, op. cit., p.23, grifo e tradução nossos.
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As potencialidades do digital, por outro lado, podem trazer
consigo alguns riscos para a vida de fé. Como, por exemplo, o
de fomentarem um certo automatismo e simplismo das
respostas pastorais diante de um cenário sem precedentes como
o atual. Assim, no afã de transmitir celebrações e ritos, corre-se
o risco de transformar a celebração da missa em um mero
espetáculo, em uma encenação a ser exibida. E ainda de
esquecer que há uma pessoa do outro lado da tela, que também
é chamada a participar ativa e efetivamente da liturgia,
mesmo que a distância.
O risco, em suma, é ignorar o outro em sua humanidade.
Busca-se uma conexão, mas evitando ou dispensando o contato.
Assim, a outra pessoa passa a ser considerada como uma mera
espectadora apassivada, coisificada, como um número a mais
a ser contabilizado pelos índices de audiência e de visualização.
Nas celebrações transmitidas, cabe especialmente aos presbíteros
tomarem consciência de que o que estão celebrando não é uma
missa privada. O
Código de Direito Canônico
deixa bem claro
que as ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações
da própria Igreja [...] ou seja, o povo santo (cân. 837).
Também não são apenas um monólogo encenado diante
das câmeras e performatizado única e exclusivamente pelo
padre. Entretanto, percebe-se, em muitos vídeos e subsídios
religiosos disponibilizados nas redes nesse período, a
explicitação de uma certa autorreferencialidade, que chama a
atenção apenas para seus próprios autores, na busca de aumentar
a visibilidade pessoal ou institucional. Junto com isso, muitas
vezes, manifesta-se ainda um clericalismo midiático, senão até
um exibicionismo clericalista, em que toda a comunicação
pastoral em rede gira em torno do padre ou da celebração da
missa (também centrada no padre).
Pelo contrário, a celebração da eucaristia, como afirma a
Instrução Geral do Missal Romano
(IGMR), é sempre ação de
toda a Igreja (n.5). Trata-se de um gesto comunitário,
SBARDELOTTO, Moisés.
O digital e a vivência da fé
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presidido pelo presbítero, mas celebrado conjuntamente pelo
povo, por pessoas concretas, de carne e osso, que, no ambiente
digital, estão presentes a distância e precisam ser levadas em
consideração para poderem participar ativamente do rito. Ainda
mais em rede, é preciso que se estimule a ação de toda a
comunidade na celebração (IGMR 35).
Portanto, mais do que um foco estreito na transmissão, é
preciso levar em conta o processo comunicacional e
interacional que se estabelece no ambiente digital. Isso não
significa menosprezar a qualidade técnica da transmissão: pelo
contrário, ela é fundamental para auxiliar o fiel a vivenciar o
rito e a experimentar a graça de Deus. Contudo, mais
importante ainda é possibilitar a construção de relações
interpessoais em rede, e não apenas reunir pessoas para ouvir e
pessoas para ver.
Embora sabendo que há alguém diante de mim (neste
caso, do outro lado da câmera e da tela), o foco na mera
transmissão e em seus aspectos técnicos pode deixar de lado
justamente a necessidade de estabelecer em rede uma relação
humanizada e humanizante com pessoas humanas. Como
afirma Francisco, o panorama atual convida-nos, a todos nós, a
investir nas relações, a afirmar também na rede e através da
rede o caráter interpessoal da nossa humanidade (DMCS 2019).
Para isso, é preciso
ir ao encontro, escutar e dialogar
com as
pessoas que estão do outro lado da tela e com quem a Igreja
busca se comunicar: quem são? O que desejam, o que buscam,
de que precisam? Como fomentar que elas também possam ser
ouvidas, especialmente neste tempo de tantas dúvidas e
angústias? Como possibilitar que elas também possam
comunicar algo sobre a fé? De que modo podemos
potencializar a sua voz com nossos meios (serviços, aplicativos,
plataformas etc.)?
Particularmente nestes tempos, portanto, é preciso ousadia e
criatividade pastorais, mas sempre voltadas para o bem do outro
164
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e da comunidade. É melhor evitar avançar tecnologicamente se
isso significa retroceder teológica e eclesialmente, por falta de
discernimento. Isso se reflete no modo como aquilo que vem
sendo transmitido é
anunciado
e
enunciado
.
3 Participação e presença, não mera assistência, audiência
ou ausência
O digital traz à tona os limites da nossa linguagem,
especialmente em relação ao modo como conseguimos ou não
expressar novas experiências humanas e sociais trazidas pelo
processo de digitalização. Mas, principalmente, os limites da
própria linguagem eclesiástica ao tentar expressar aquilo que se
faz e se diz liturgicamente.
Durante o tempo de isolamento social, a Igreja se viu
obrigada a estabelecer um confinamento litúrgico. Foi o caso
da Prefeitura da Casa Pontifícia, que, durante a Quaresma deste
ano, avisou em seu site que, devido ao atual estado de
emergência sanitária internacional, todas as Celebrações
Litúrgicas da Semana Santa realizar-se-ão sem a presença física
de fiéis.
Várias dioceses brasileiras também publicaram notas e
decretos dispensando os fiéis da obrigatoriedade de participar
fisicamente das celebrações dominicais em suas comunidades.
Outros documentos afirmavam ainda que as celebrações seriam
feitas sem povo (
sine populo
). Em todos esses casos, frisava-se que
a participação poderia ocorrer por meio das transmissões ao
vivo de tais celebrações em sites, redes sociais digitais, TVs e rádios.
É importante relembrar que a IGMR indica três formas
diferentes de celebração da missa:
1) a missa com povo,
2) a missa concelebrada e
3) a missa com assistência de um só ministro.
SBARDELOTTO, Moisés.
O digital e a vivência da fé
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Portanto, neste tempo inédito, a Igreja propôs a celebração
desta última, entendida, de acordo com a IGMR, como a missa
celebrada por um sacerdote, ao qual assiste e responde um só
ministro (n.252), mas agora transmitida pelas mídias.
A CNBB chegou até a publicar algumas indicações sobre
como se preparar para a missa em casa durante a quarentena
imposta pelo coronavírus. Sugeria-se, por exemplo, preparar a
própria casa e criar um ambiente celebrativo e se convidava a
participar ativa e efetivamente da liturgia transmitida pelos
meios de comunicação. Essa conscientização é importante, pois
a mera conexão não significa necessariamente participação.
Não se trata de uma ação automática: para participar, é preciso
agir ativamente, conscientemente. E, para isso, é preciso educar
pedagogicamente os fiéis para essas novas formas de
participação, a fim de evitar um risco mais alto de retorno à
privatização
do ato e do texto
4
litúrgicos em geral.
Entre o que se diz e o que se faz, portanto, surge um
paradoxo: se uma missa sem povo ou sem a presença de fiéis
é transmitida ao vivo justamente para que o povo e os fiéis
possam
participar ativa e efetivamente
, é possível continuar
afirmando a
ausência
desse mesmo povo? Será que a mediação
digital permite uma forma de presença ou, pelo contrário,
reforça a ausência do povo? As tecnologias
despresencializariam
o contato humano?
Especificar que se trata de uma ausência da presença física
também não resolve o problema. Se a presença não é física, de
que tipo ela é? Espiritual? Psíquica? Mental? Mística? Mas todas
essas presenças não são também perpassadas sempre por uma
experiência corporal, material, tátil, sensível, em suma, física?
Ao estabelecermos um
con-tato
em rede, deparamo-nos com
novas experiências de tato, em que não abrimos mão de
nossos corpos, afetos, sensações, sentimentos.
4 GRILLO, op. cit., p.22, grifo e tradução nossos.
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Francisco mesmo já afirmou: O uso da
social web
é
complementar ao encontro em carne e osso, vivido através do
corpo, do coração, dos olhos, da contemplação, da respiração do
outro. Se a rede for usada como prolongamento ou expectativa
de tal encontro, então ela não trai a si mesma e permanece
como um recurso para a comunhão (DMCS 2019).
Exemplo disso foi o histórico momento de oração
extraordinário ministrado pelo Papa Francisco no dia 27 de
março, na Praça de São Pedro, no Vaticano. Uma experiência
que também nos leva a repensar o que entendemos por
presença
e
participação
.
Quando havia convidado para esse momento de oração, no
Ângelus do dia 22 de março, Francisco relembrou que o rito
seria celebrado com a praça vazia, devido à pandemia. E disse:
Convido todos a participarem espiritualmente através dos
meios de comunicação. E essa participação envolvia até a
possibilidade de receber uma indulgência plenária junto com a
bênção
Urbi et Orbi
. Ou seja, não era uma mera assistência ou
audiência dos gestos e das palavras do papa, mas algo mais
profundamente ativo por parte de quem acompanhasse o rito
pelas mídias.
Portanto, embora as pessoas não estivessem lá fisicamente,
certamente estavam presentes em oração a partir dos mais
variados pontos cardeais do globo e participaram
com todo o seu
corpo
dessa experiência de fé, tocadas fisicamente por aquilo
que estavam vendo, ouvindo e sentindo pelos meios de
comunicação.
Apenas para dar uma dimensão disso, calcula-se que a área
da Praça São Pedro pode reunir fisicamente cerca de 300.000
pessoas. Naquela sexta-feira, durante a homilia do papa,
estavam reunidas pela transmissão do Vatican News no
YouTube mais de 84.000 pessoas na conta em italiano, 170.000
na conta em português, 270.000 na conta em inglês, 520.000 na
conta em espanhol. Mais de 1 milhão de pessoas. Isso sem falar
SBARDELOTTO, Moisés.
O digital e a vivência da fé
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Revista Teopráxis, Passo Fundo, vol.37, n.129, Jul./Dez./2020, ISSN: 2763-5201
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das contas em outros idiomas e de todos os outros milhões de
pessoas que acompanhavam por outros sites, pelas redes sociais
digitais e por canais de TV e de rádio espalhados em todo o
planeta (os jornais italianos noticiaram que apenas o canal
RaiUno reuniu mais de 8,6 milhões de espectadores, apenas na
Itália, durante o rito
5
).
Portanto, mesmo em nossas conexões em rede, mediados
por tecnologias digitais, estamos todos
fisicamente presentes
em
pontos geográficos diferentes. Ou seja, o ambiente digital
subverte a noção de espaço e de lugar. O papel dos próprios
templos de pedra passa por uma transformação.
Historicamente, em diversas tradições religiosas, o templo
era considerado como um
axis mundi
eixo, pilar, centro do
mundo , um ponto específico no espaço geográfico que dava
acesso a uma abertura aos céus, ao mundo dos deuses. Ou
seja, um espaço sagrado. Daí a importância do Templo de
Jerusalém, da Basílica de São Pedro, da Grande Mesquita de
Meca, dentre outros.
Na internet e nas redes digitais, porém, o templo se torna
ubíquo, seu acesso é público e se dá por toda parte. Em um
mundo conectado, em que todo e qualquer ponto dá acesso à
rede, o centro do mundo, espaço sagrado por excelência, não
está mais localizado em um ponto geográfico, mas se encontra
em qualquer lugar onde se tenha acesso à internet e às redes
digitais. Agora, o centro é aqui onde quer que seja, onde
quer que se esteja
6
.
Entendemos que a afirmação da ausência se refere ao fato
de os fiéis não estarem no mesmo lugar geográfico que o
ministro que preside a celebração. O risco, porém, é que tal
linguagem leve a pensar que a referência central da celebração
da missa ou até da vida da Igreja é o padre ou os clérigos em
5 Cf. La Repubblica, 28 mar. 2020, disponível em: <https://bit.ly/3bVNIU9>.
6 Moisés SBARDELOTTO,
E o Verbo se fez bit:
a comunicação e a experiência
religiosas na internet. Aparecida: Santuário, 2012.
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geral. Entretanto, em toda a liturgia, Cristo é o único
Mediador (IGMR 5), que congrega a assembleia ao seu redor.
A celebração da missa é sempre uma
ação de Cristo e do povo de
Deus
(IGMR 16), por meio do sacerdócio ministerial próprio
do presbítero e, ao mesmo tempo, do sacerdócio real dos fiéis
(IGMR 4-5).
Durante o isolamento, o povo de Deus continuou podendo
se reunir em torno do altar, centro de toda a liturgia
eucarística (IGMR 73) e centro de convergência, para o qual
espontaneamente se dirijam as atenções de toda a assembleia
(IGMR 299), onde quer que ele esteja. A diferença agora é que
isso ocorre graças a novas formas de
presença física
e de
participação ativa
, mesmo que a distância, possibilitadas pelos
meios digitais.
Portanto, se convidamos o povo para participar a distância
de missas anunciadas como sem povo ou sem presença
(física) de fiéis, há toda uma teologia e uma eclesiologia a
serem repensadas, especialmente em relação a quem
verdadeiramente celebra a liturgia e a quem compõe a
assembleia celebrante e celebrativa. Isso nos leva a repensar o
que entendemos por comunidade, em tempos de redes digitais.
4 Comunidades em rede, não mera conexão de
indivíduos
Nesse período de isolamento social, a relação com os
irmãos e irmãs de caminhada de fé ganhou uma nova
importância. Foi um tempo para reconhecer ainda mais
fortemente que de perto ou a distância para ser eu mesmo,
preciso do outro, como afirma Francisco (DMCS 2019).
Por isso, este é um bom momento para perceber que uma
comunidade é mais do que uma mera congregação de
indivíduos. A missão cristã não é fomentar um individualismo
conectado. Ao contrário, uma comunidade é, principalmente,
SBARDELOTTO, Moisés.
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uma rede solidária, como afirma o papa, que requer a escuta
recíproca e o diálogo, baseado no uso responsável da
linguagem (DMCS 2019).
Assim, para promover uma boa pastoral digital, é
importante levar em conta três premissas fundamentais:
1) Embora mediados por máquinas, há sempre um outro
do outro lado da tela, uma pessoa, um ser humano. Tudo o que
a Igreja faz pastoralmente em rede deve considerar o rosto
dessa pessoa com quem ela se comunica, as suas alegrias e
esperanças, as suas tristezas e angústias.
2) O objetivo principal de uma pastoral no ambiente digital
mais do que bombardear mensagens religiosas, como diz o
Papa Francisco (DMCS 2014) é justamente fortalecer as
relações com pessoas de carne e osso presentes em rede e, com
elas, formar comunidade, a partir do comum que as une entre
si e com a Igreja, colaborando na construção da comunidade
eclesial.
3) Essa comunidade, também em rede, por melhores e mais
aperfeiçoadas que sejam as técnicas e tecnologias utilizadas, não
é convocada e congregada pelo comunicador cristão, por
maiores que sejam os seus esforços e por melhores que sejam as
suas qualidades, mas sim pelo próprio Deus, que toma a
iniciativa desse encontro e de cuja comunicação somos meros
prolongadores (cf. São Paulo VI,
Ecclesiam suam
).
A Igreja da América Latina do século passado ofereceu ao
mundo um dos principais frutos do Concílio Ecumênico
Vaticano II, as comunidades eclesiais de base (CEBs), um novo
modo de ser Igreja e de experimentar a comunidade. Hoje,
poderíamos dizer que estamos diante do surgimento de
verdadeiras
comunidades eclesiais digitais
(
ou CEDs
)
7
. Estas
atualizariam, com outros meios e em outros ambientes, a
7 SBARDELOTTO, Moisés.
E o Verbo se fez rede:
religiosidades em reconstrução
no ambiente digital. São Paulo: Paulinas, 2017.
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mesma busca e necessidade de experiência religiosa, de vínculo
interpessoal e também de cidadania eclesial, especialmente para
leigos e leigas que agora encontram na rede um espaço de
autonomia (infelizmente, com suas inúmeras distorções e
extremismos também).
As CEDs, assim como as CEBs históricas, apontam para
uma eclesialidade nova-ainda-não-experimentada em meio às
variações históricas das formas comunitárias da Igreja. O
ambiente digital, assim, diante do ineditismo deste momento
histórico para a Igreja, possibilita novas formações eclesiais e
comunitárias em rede, muitas vezes, ultrapassando as
configurações espaço-temporais da estrutura eclesiástica local
(paróquia, diocese etc.). Isso aponta para uma busca de relações
outras
em ambientes
outros
, criando e até inventando,
positivamente, experiências de vivência e comunicação da fé.
Conclusões
Para superar a mera assistência/audiência, a mera transmissão
e o mero individualismo em rede, é preciso buscar formas que
permitam um verdadeiro encontro, uma verdadeira escuta e um
verdadeiro diálogo como fez Jesus com os discípulos de
Emaús (cf. Lc 24,13-35) com as pessoas que se conectam com
as redes digitais da Igreja.
O maior desafio pastoral é superar a lógica da substituição
pela lógica da complexificação, da complementariedade, da
interligação. Se o digital não se opõe ao real, é preciso buscar
promover uma
complexa ecologia comunicacional pastoral e
litúrgica
, na qual tudo esteja estreitamente interligado (LS 16).
Para isso, em primeiro lugar, é preciso ter sempre em mente
por que e com quem a Igreja faz todos os seus esforços
comunicacionais. O lugar de encontro muda de acordo com
as pessoas e os tempos e hoje ganha novos sentidos e
desdobramentos no ambiente digital. Onde dois ou mais
SBARDELOTTO, Moisés.
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estiverem reunidos em meu nome, Eu estou aí no meio deles
(Mt 18,20). O importante não é o onde, mas sim reunir-se em
comunidade em nome de Jesus seja em rede ou fora dela.
Encarnar digitalmente a ação evangelizadora significa
reconhecer que, também em rede, o amor de Cristo nos uniu
como irmãos e irmãs, e que Ele está no meio de nós mesmo
quando estamos a distância e mediados por aparelhos
eletrônicos.
Referências Bibliográficas
GRILLO, Andrea. Spazio e tempo 3.0: affinità e incomprensioni fra
tradizione ecclesiale e multimedialità. In:
Rivista di Pastorale Liturgica
,
Brescia, n.338, jan./fev. 2020, p.19-23.
VALLI, Norberto. Liturgia e tecnica: storia di amore e diffidenza. In:
Rivista di Pastorale Liturgica
, Brescia, n. 338, jan./fev. 2020, p.14-18.
SBARDELOTTO, Moisés.
E o Verbo se fez bit:
a comunicação e a
experiência religiosas na internet. Aparecida: Santuário, 2012.
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E o Verbo se fez rede:
religiosidades em reconstrução no ambiente
digital. São Paulo: Paulinas, 2017.